Fundo no assunto Lego versus massinha de modelarDaqui alguns anos, certamente surgirá a pergunta de quais mudanças impostas pela pandemia de Covid-19 mais moldaram o futuro da humanidade. Ainda é difícil compreender profundamente seus impactos, mas sem dúvida podemos dizer que ela acelerou - e muito! - algumas tendências que já vinham se mostrando no horizonte. No mundo do trabalho, a possibilidade de atuar em qualquer lugar gerou marcas profundas e muitos não querem mais voltar para o modelo tradicional de frequentar o escritório 5 dias na semana.
Especialmente após a declaração de Elon Musk, em junho de 2022, de que o trabalho remoto não seria mais aceitável, a discussão sobre manter ou não o formato nas empresas tem sido intensa. O que ele e outros empregadores que ordenaram o retorno ao trabalho presencial não esperavam é que uma boa parte dos trabalhadores simplesmente se negasse a voltar ao modelo tradicional de 40 horas semanais presenciais, preferindo até mesmo pedir demissão.
É o caso de Ian Goodfellow, que ocupava um cargo de diretoria na Apple e se demitiu após a exigência da empresa de retorno ao escritório. Além da demissão de um de seus diretores, uma carta assinada por mais de 3 mil funcionários da gigante criada por Steve Jobs pediu a adoção definitiva do home office, com a promessa de abandonar a empresa em caso contrário.
A geração Z (nascidos entre 1997 e 2010), assim como os millennials (nascidos entre 1981 e 1996), têm liderado as exigências por um formato híbrido de trabalho. Um estudo realizado pela Citrix Systems mostrou que 90% dos participantes pertencentes a essas gerações, que hoje representam uma grande parcela da força de trabalho, buscam empregos que ofereçam um modelo mais flexível. Hoje, recrutadores aconselham seus clientes a não anunciarem vagas que exijam mais do que 3 dias de trabalho presencial para não perderem potenciais candidatos.
No Brasil, o modelo híbrido tem sido adotado por 56% das empresas, segundo um estudo do Google Workplace em parceria com a consultoria IDC Brasil. A pesquisa também revelou a importância deste modelo na escolha de emprego, onde 65% dos entrevistados que trabalham de forma presencial revelaram que mudariam de emprego para ir a um formato híbrido. Ao mesmo tempo, 58% das pessoas dizem se sentirem mais produtivas nesse formato. Mas a flexibilidade também traz desafios que não podemos negligenciar, como a construção de relações entre colegas de trabalho e a separação clara entre atividades pessoais e profissionais nos dias em que se trabalha remotamente, e tanto trabalhadores como empregadores precisam estar atentos a isso.
Outros impasses colocam empresas e trabalhadores em campos opostos. A onda de demissão voluntária conhecida como Great Resignation escancarou uma ferida que até recentemente vinha sendo tratada com panos quentes. Insatisfação geral, salários estagnados, falta de oportunidade de crescimento profissional e o sentimento de desrespeito no ambiente de trabalho estão entre os principais motivos deste fenômeno que, segundo um artigo publicado na Harvard Business Review, não teve início na pandemia, mas certamente foi intensificado por ela.
Os trabalhadores que saíram do mercado de trabalho chegaram a um ponto sem volta, como colocou Maria Antônia Sánchez-Vallejo, jornalista do El País. “Suas ocupações lhes impunham um pedágio psicológico, às vezes até físico, que já não parecem dispostos a pagar”, diz ela. Em especial após a pandemia, as pessoas passaram a avaliar com mais cuidado suas prioridades e aquele velho costume de dizer “sim” a tudo, a qualquer oferta, às longas horas de trabalho, às exigências de produtividade. Aprender a dizer “não” é resultado de uma busca por mais equilíbrio entre a vida profissional e pessoal.
Apesar de não haver uma resposta exata para essa onda de demissões, alguns enxergam este movimento como o “Grande Esgotamento”, ou mesmo a “Grande Reavaliação”, que teve uma outra epidemia como possível catalisadora: a Síndrome de Burnout, que te explicamos melhor nessa matéria.
Para aqueles que não deixaram seus empregos, a crise no trabalho deu lugar a um outro fenômeno: o “quiet quitting” (demissão silenciosa, em tradução livre). Ele diz respeito a limitar suas tarefas às estritamente necessárias, fazer aquilo que foi combinado na hora da contratação e nada mais, nem nada menos. O conceito vai para além da insatisfação ou não com o emprego, mas surge como reação à velha expressão “vestir a camisa da empresa”, que por muitas gerações significou “produtividade a qualquer custo”.
Para alguns especialistas, como os consultados na reportagem da InfoMoney, os motivos que desencadearam a “Grande Renúncia” convergem com os que estruturam a “demissão silenciosa”: cultura tóxica nas empresas, insegurança, cobrança excessiva de produtividade e entrega e falta de reconhecimento. Apesar de ser atribuída a geração Z, já que o movimento ficou famoso após ganhar as redes sociais, sobretudo o Tik Tok, pessoas de todas as idades estão aderindo, motivadas por uma reflexão mais aprofundada sobre o lugar do trabalho em suas vidas.
Parecido ao “quiet quitting”, outro movimento que viralizou no Tik Tok é o “acting your wage” (agir de acordo com seu salário, em tradução livre) que significa que seu esforço no trabalho corresponde ao pagamento que recebe. Ou seja, estamos novamente falando sobre o desejo de estabelecer limites e um certo nível de descontentamento em relação à cultura da empresa.
Alguns afirmam que esses movimentos não são novos e que esses termos tiveram repercussão pela necessidade das pessoas encontrarem novos vocabulários para se expressar. De toda forma, eles acabam chamando atenção para o que parece ser uma insatisfação bastante generalizada entre os trabalhadores, com impactos importantes nas dinâmicas das organizações.
Como comentamos nessa matéria, são muitos os termos que surgem no mercado de trabalho na busca de sintetizar queixas e sentimentos que atingem não só um indivíduo, mas um grupo todo, a ponto de se tornarem uma “tendência”. E como numa bola de neve, um movimento se desdobra em outro, ganhando novos contornos, buscando incorporar outras insatisfações, ou mesmo como resposta à tendência anterior, como é o caso do “quiet firing” e o “quiet hiring", ambos vindos por parte da empresa.
No primeiro caso, a tradução também seria “demissão silenciosa”, mas desta vez é a empresa que vai silenciosamente excluindo o colaborador, deixando de delegar tarefas, dar feedbacks e enganá-lo, com a intenção de que ele peça demissão por conta própria. O “quiet hiring” é exatamente o oposto. Traduzido para “contratação silenciosa”, nesse caso a liderança da empresa vai gradativamente demandando mais responsabilidade de sua equipe, sem necessariamente aumentar o salário. Isso tem colocado ainda mais lenha na fogueira no confronto entre empresa e funcionário, criando ambientes de trabalho insustentáveis.
Na medida que ambientes de trabalho se tornam altamente tóxicos, outros fenômenos comportamentais aparecem: como o reseenteism, que significa ficar em um emprego ainda que profundamente infeliz e insatisfeito, sem esconder isso de ninguém, e o leaveism, que descreve a conduta de trabalhadores que não conseguem se afastar das demandas do trabalho e exercer seu direito à desconexão, levando à uma estafa emocional ou mesmo ao desenvolvimento de doenças mentais.
Considerados ainda mais prejudiciais que o “quiet quitting”, tanto para trabalhadores como para a empresa, esses dois movimentos têm em suas raízes o medo de uma recessão econômica, a falta de melhores oportunidades e os atuais layoffs, que são as grandes demissões em massa, lideradas pelas Big Techs.
Esse pout pourri de termos só nos mostra a urgência de um diálogo profundo sobre as relações de trabalho, que precisa incluir todas as partes envolvidas para que soluções eficazes sejam encontradas. Esse cabo de guerra só tem um final, e não muito feliz: a corda uma hora vai arrebentar. |
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