Fundo no assunto O retorno do Homo Esuriens: o Homem FamintoInsegurança alimentar é o termo utilizado para descrever a situação em que uma pessoa não tem acesso regular a alimentos em quantidade e qualidade suficientes para suprir as necessidades do corpo. Ela é um processo progressivo onde primeiro os adultos começam a pular refeições ou diminuir as porções de alimentos, para logo as crianças passarem pela mesma experiência.
Existem 3 níveis de insegurança alimentar: insegurança leve (incerteza e preocupação - a família não sabe o que vai comer amanhã), insegurança moderada (redução quantitativa e qualitativa - a família começa a comer menos e pior, pulando alguma refeição), insegurança grave (escassez de alimentos a níveis perigosos para a sobrevivência - a família fica dias sem comer).
Uma das inúmeras consequências da fome é que o indivíduo passa a ter uma “visão de túnel”, onde só consegue pensar em estratégias para conseguir a próxima refeição. A razão lógica passa a ficar em segundo plano e o cérebro instintivo entra em ação. Segundo José Roberto de Toledo, editor executivo da revista Piauí, no podcast Foro de Teresina, essa visão faz o indivíduo entrar num ciclo de empobrecimento em direção à miséria, já que é impossível planejar o futuro se você precisa saciar a fome hoje. Socialmente, há um aumento expressivo da violência, uma sobrecarga do sistema de saúde (já que o mal estar causado pela fome se confunde com doenças) e a ampliação da desigualdade.
Entre 2004 e 2013, o país contou com uma série de políticas públicas voltadas aos mais vulneráveis que reduziram significativamente a população em situação de insegurança alimentar, chegando a marca dos 3,6% da população em situação grave em 2013. Apesar de um número ainda expressivo (7,2 milhões de pessoas), essa redução tirou o Brasil do mapa da fome mundial e transformou o programa Fome Zero em uma referência para diversos países que adotaram as mesmas práticas.
De lá pra cá os números voltaram a aumentar, chegando a 9% da população em situação mais grave, regredindo quase duas décadas de avanço do combate à fome. Entre as razões para essa evolução está a crise econômica que se deu a partir de 2014 e que a pandemia só piorou. Houve aumento do desemprego no país, que deixou diversas famílias em situação de total precariedade.
Hoje, aproximadamente 24 milhões de pessoas vivem com menos de R$275 per capita por mês e 14 milhões de pessoas desempregadas. A má notícia é que esse quadro tende a piorar sem programas bem definidos de geração de emprego e transferência de renda. Além do desemprego, outro fator que influenciou o aumento expressivo de famintos foi a diminuição significativa do orçamento para programas sociais de combate à fome e à miséria, assim como a extinção do CONSEA (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional), órgão responsável pelas diretrizes das políticas públicas relacionadas à segurança alimentar.
Segundo o relatório, não é por falta de orçamento que não temos programas efetivos de segurança alimentar e transferência de renda. Um exemplo disso foi o Auxílio Emergencial que contou com um investimento de R$ 322 bilhões, o que representa 9 vezes o orçamento anual dos programas de segurança alimentar e diminuição da pobreza que tiveram sucesso no passado - como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), o Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), a Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB) e o Bolsa Família.
O novo Auxílio Brasil, criado pelo presidente Jair Bolsonaro para substituir o Bolsa Família, é um programa temporário, previsto para estar em vigor somente até dezembro de 2022. O programa levantou uma série de críticas e divergências, já que envolveu a PEC dos precatórios, feriu o teto de gastos para sua aprovação e deixou 22 milhões de pessoas de fora.
Como cidadãos, podemos contribuir para a redução da fome em nosso entorno, seja participando de ações voluntárias ou fazendo doações a instituições sérias e transparentes. Porém, como colocou Tereza Campello, ex-ministra de Desenvolvimento Social, “ninguém vai conseguir dar conta de milhões de famintos com doações e trabalho voluntário, o central deve ser política pública, que pode dar escalada”. Nesse sentido, nossa ação mais efetiva para reduzir a fome e a miséria se encontra em nossa consciência política e na escolha de dirigentes que tenham esta pauta em sua agenda.
Na contramão da fome está a questão do desperdício de alimentos. Perdemos uma quantidade absurda de comida boa para o consumo, seja por uma ineficiência na produção, no transporte e no armazenamento, seja pela cultura e hábitos de consumo da população. Por definição, a perda ou o desperdício de alimento acontece quando qualquer produto - seja um grão de soja ou uma fatia de pão - é perdido antes de ser ingerido por uma pessoa.
Apesar de haver uma perda inerente à cadeia produtiva, que inclui o consumidor final, temos um potencial de reduzir o desperdício em 50 milhões de toneladas de alimentos no ano, sendo que 15% desse valor está no elo final: nossa casa. O fato mais crítico que nos leva a desperdiçar uma média de 7,5 milhões de toneladas de alimentos ao ano é nossa cultura de abundância de comida. Os brasileiros acreditam que é importante ter fartura e valorizam refeições frescas e feitas no mesmo dia.
Como explicamos nesta matéria, o ato de receber familiares e amigos com excesso e variedade de alimentos nas refeições está associado não apenas ao zelo e cuidado familiar, mas também ao status. Em um país tão desigual, mesa farta é símbolo de riqueza. Ao mesmo tempo, 68% da população considera importante ter a despensa cheia, o que aumenta a probabilidade de perda de alimentos por prazo de validade.
Como cidadãos, podemos e devemos usar da solidariedade e do consumo consciente para atuar no combate a esses problemas sociais tão urgentes. Para tal, precisamos aumentar nosso engajamento transformando nossa indignação em ação, começando por uma melhor gestão alimentar em nossos lares para diminuir o desperdício.
Apesar da fome e do desperdício serem dois desafios independentes, e que resolver um deles não vai necessariamente resolver o outro, a redução do desperdício na cadeia de valor traz eficiências (sustentabilidade ambiental, redução do custo de produção do alimentos, maior disponibilidade de produtos) que afetam e contribuem para o combate à fome.
Existem desafios fundamentais em termos logísticos e financeiros ao se tentar conectar o desperdício com as pessoas passando fome e, ainda segundo o relatório Fome e Abundância - Incoerência Brasileira, um modelo de atuação pouco explorado atualmente e com grandes potenciais, é a organização do setor privado. A partir da articulação entre diferentes atores desse segmento, é possível criar uma maior mobilização para redução do desperdício, criar uma coordenação de abastecimento, aumentar o cooperativismo na Agricultura Familiar e dar apoio profissional a economias criativas.
Por meio do ESG (Environmental, social and corporate governance, em português Governança Ambiental, Social e Corporativa), o setor privado pode e deve utilizar seus recursos e influências para contribuir no combate aos dois problemas: fome e desperdício. |
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