Fundo no assunto O rito na origem de tudoDesde que evoluímos de Neandertais para Sapiens, somos dotados de uma impressionante capacidade de imaginação. Para Yuval Harari, autor do best-seller “Sapiens: uma breve história da humanidade”, essa talvez tenha sido a habilidade mais importante e crucial na expansão e consequente dominação da nossa espécie em todos os cantos do planeta. A Revolução Cognitiva possibilitou a evolução da nossa linguagem e a criação de realidades imaginadas que influenciam nossas vidas nos mais diversos aspectos e nos unem enquanto comunidade humana.
A partir desta nova capacidade inventiva, criamos mitos para explicar a nossa existência e ritos para expressar os valores e crenças adquiridos enquanto sociedade. Segundo a professora Esther Jean Langdon, a vida social foi e segue sendo estruturada pelos ritos e, citando os estudos da antropóloga Mary Douglas, “o homem é um animal ritual e os ritos permeiam a interação social, criando uma realidade que não seria nada sem eles”. Os rituais são, assim, um tipo especial de evento, mais formalizados e estereotipados, que criam uma ruptura no fluxo das ações cotidianas, desenhando um marco temporal e, de alguma maneira, manifestando simbolicamente ideais sobre o mundo.
Ritos estão sempre permeados de símbolos, seja por meio da linguagem, de gestos ou objetos. Os símbolos possuem uma importância elevada pois comunicam mais do que somente seu significado manifesto, eles possuem um aspecto oculto, transcendente, que está fora do alcance da razão, como coloca Carl Jung em um de seus livros mais famosos, O homem e seus símbolos. Nesse sentido, os símbolos possuem uma enorme riqueza de sentidos, inerentes ao inconsciente coletivo e aos arquétipos, que explicamos em mais detalhes aqui, com um potencial transformador da psique.
A mente humana ainda é um grande mistério para nós. Mas já é ponto pacífico que nossa psique contém uma parte consciente e outra totalmente inconsciente, ambas afetando profundamente nossos pensamentos, sentimentos e ações. Para Jung, nossa parte inconsciente se comunica através de símbolos e podemos ter acesso a este campo interpretando os símbolos que nos apresenta a partir dos sonhos, ou enviando mensagens a esta parte oculta a partir de atos simbólicos. E é aqui que os rituais e seus símbolos podem realizar verdadeiros feitos “mágicos”. Eles mudam nossa forma de perceber as coisas, criam novos sentidos, e isso influencia de forma significativa nosso inconsciente. Já falamos pra vocês, nesta matéria, sobre as doenças psicossomáticas, ou seja, como as emoções e pensamentos afetam nosso corpo físico e podem, ao longo do tempo, desenvolver doenças crônicas. Inclusive mostramos o exemplo da Wanessa Camargo em nosso podcast, que desenvolveu uma síndrome do pânico a partir do medo da morte. A origem destas emoções pode, muitas vezes, estar em nosso inconsciente. Dessa forma, é possível imaginar que, se mudarmos a semente que deu início nesse efeito dominó, é possível curar uma série de condições que nem tínhamos consciência que estavam causando tanto estrago. Após viver anos em meios aos “curandeiros” e “bruxos” do México, presenciando todo tipo de ritual de cura, Alejandro Jodorowsky, cineasta, ator, poeta, escritor e psicólogo (psicomago como ele se autodenomina) passou a se perguntar se aqueles “feitiços” sempre muito criativos e repletos de simbolismo, teriam o mesmo efeito sobre os pacientes sem toda a fé e misticismo que envolvia tais rituais. Em seu livro Psicomagia, que hoje se tornou também um filme, ele nos conta sobre o desenvolvimento de sua terapia "psicomágica", em que receita atos teatrais para a cura de diversos males, a partir do entendimento do papel do inconsciente na saúde e como ele pode atuar voluntariamente como nosso aliado, quando acessado através de atos simbólicos, ou seja, de rituais. Ele entende que o inconsciente aceita tais atos como se fossem acontecimentos reais, de modo que um ritual “mágico-simbólico-sagrado” poderia modificar o comportamento do inconsciente e, portanto, se bem aplicado, curar certos traumas psicológicos. Logo, a partir de ações que estimulam a mente a cruzar a ponte entre realidade e sonho, a pessoa é capaz de vivenciar metaforicamente seus traumas e inserir um novo elemento, uma ação nunca antes realizada, que a libera da antiga narrativa criada. Mesmo pequenos estresses do nosso cotidiano podem ser aliviados com rituais. Estudos realizados pela Harvard Business School mostraram que a realização de um ritual antes de uma situação de incerteza e potencialmente estressante ajuda o cérebro a recuperar seu senso de controle e previsibilidade, assim como aumenta nossa autoconfiança, reduzindo os batimentos cardíacos, a ansiedade e, consequentemente, melhorando nossa performance diante da situação.
É por isso que muitos atletas são conhecidos por seus estranhos rituais pré-jogos, como Rafael Nadal, famoso também por sua lista de pequenos rituais praticados na quadra. Te contamos neste artigo ainda algumas pequenas superstições de torcedores e jogadores que, em uma leitura geral, envolvem muito do universo ritualístico que estamos debatendo nessa newsletter.
Afinal, o que torna uma atividade qualquer em um ritual, um ato simbólico, é o olhar que colocamos nela, são os sentidos mais profundos que lhe proferimos. E isso tem poder, pois nos traz estrutura, novos propósitos, esperança e nutrem nosso ser, ainda que seja de forma ficcional. Como coloca Maria Homem em entrevista à Revista Gama, “o simbólico não é nem verdadeiro nem falso, mas uma ferramenta de ancoragem, de ordenação”. Assim, não importa se o ritual vai funcionar ou não, mas como ele te faz sentir e quais os significados mais profundos que ele desperta em você. |
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