A volta dos psicodélicos
O que você vai encontrar por aqui: 
  • O que são psicodélicos
  • Como eles atuam no cérebro
  • Riscos e cuidados necessários
  • Microdosagem: vale mesmo a pena? 
  • Dicas de leitura, podcast e filmes para se aprofundar
Boa leitura! 
Você já tomou alguma substância capaz de alterar a sua mente? Provavelmente sim. Seja diariamente com uma boa xícara de café, ocasionalmente com uma bebida alcóolica, ou mesmo em um dia de dor de cabeça com uma dose de dipirona, muitas substâncias são capazes de modificar a atividade cerebral. 

No meio dessa enorme lista de elementos alteradores do funcionamento natural do corpo e da mente, um grupo especial tem voltado a chamar a atenção: os psicodélicos. Após serem banidos por quase meio século, vivemos um renascimento global da investigação científica psicodélica, com resultados bastante promissores no tratamento de doenças mentais e de dependência química. Ao mesmo tempo, cresce o número de pessoas que utilizam a microdosagem de substâncias psicoativas na busca por mais criatividade, produtividade, foco, ou mesmo um estado de mais conexão e bem-estar. 
Porém, assim como aconteceu na década de 1970, pesquisadores temem uma nova reviravolta negativa se não tomarmos cuidado com o uso indiscriminado e sem supervisão de substâncias com alto potencial de alteração da consciência. Eles acreditam que o entusiasmo exagerado, colocando essas substâncias como “drogas milagrosas”, aliadas ao interesse comercial, pode levar a uma nova guerra às drogas, suspendendo novamente pesquisas sérias e um futuro que inclua a cura psicodélica. 

Acreditamos que vale a pena conhecer um pouco mais sobre o potencial transformador que uma experiência psicodélica pode proporcionar, assim como entender os riscos e cuidados que é preciso ter, caso surja o interesse de embarcar nessa jornada. Usados sabiamente, os psicodélicos podem ser uma poderosa ferramenta de autoconhecimento e transformação pessoal. Mas, para algumas pessoas, pode ser a gota que faltava para uma bad trip.
Fundo no assunto
Mergulhando no buraco do coelho


Psicodélico é um termo cunhado na década de 1950 pelo psiquiatra Humphry Osmond e o escritor Aldous Huxley. Em sua etimologia, estão duas palavras gregas que juntas significam “manifestação da psique ou alma”. A partir de experiências com a mescalina, os autores buscaram encontrar um termo capaz de sintetizar a complexidade farmacológica daquele psicoativo que, nas palavras de Huxley, tinha a capacidade de tornar as pessoas “mais sábias e menos presunçosas; mais felizes e menos autocomplacentes; mais humildes no reconhecimento de sua ignorância, mas também mais bem equipadas para compreender a relação entre as palavras e as coisas, entre o raciocínio sistemático e o Mistério insondável que, sempre em vão, ele tenta compreender”, segundo o artigo de Marcelo Ribeiro

Hoje, a definição de psicodélico tem variações e é objeto de disputas. Novos termos buscam diferenciar não só como diferentes psicoativos atuam no cérebro, mas também seu uso. É o caso do termo enteógeno, que significa “manifestação interior do divino” e busca ressaltar o contexto ritualístico/místico em que determinados psicotrópicos são ingeridos, como a Ayahuasca e o Peiote. Apesar das diferenças relativas aos efeitos percebidos, assim como a forma que cada uma atua no funcionamento cerebral, é possível dizer que essas substâncias produzem estados de percepção sensorial intensificados e extraordinários, assim como uma maior sensibilidade emocional. 


           

Muitos dos compostos psicodélicos são encontrados na natureza. Entre os mais conhecidos estão: a mescalina (presente em alguns cactos), a psilocibina (proveniente dos “cogumelos mágicos”), o DMT (presente em folhas e caules) e a ibogaína (princípio ativo de uma raiz). O LSD é o principal psicodélico de origem sintética, criado pelo químico Albert Hofmann em 1938 e que somente 5 anos mais tarde publicou seus efeitos lisérgicos após um contato acidental com a molécula. Mais recentemente, o MDMA e a cetamina também entraram para a lista de drogas psicodélicas.


Durante as décadas de 1950 e 1960, a pesquisa científica sobre drogas psicodélicas prosperou em todo o mundo. Um fato que contribuiu para isso foi a distribuição gratuita de LSD a psiquiatras e psicólogos interessados em testar seus benefícios no contexto clínico, pelo laboratório Sandoz. Centenas de estudos foram publicados sugerindo grande potencial no tratamento de distúrbios mentais, como a depressão, a ansiedade e o transtorno de estresse pós-traumático. 

Porém, o LSD saiu dos laboratórios e passou a ser usado de forma recreativa, sendo associado especialmente ao movimento de contracultura e anti-guerra, nos Estados Unidos. Em resposta, o governo deu início a uma verdadeira guerra contra os psicodélicos, classificando-os como drogas de abuso sem nenhum valor terapêutico. Como estratégia, não só tornaram ilegal todo e qualquer uso, mas também investiram massivamente em propagandas com informações por vezes exageradas, tendenciosas e, inclusive, falsas, no intuito de gerar um certo pânico na população. Essa proibição espalhou-se por todo o mundo, encerrando anos de pesquisas e investigações a respeito e deixando marcas profundas na sociedade, que até hoje vê este tema como um grande tabu. 

No entanto, como colocou Rick Doblin, diretor do MAPS - Multidisciplinary Association for the Study of Psychedelics e importante ativista na busca pela legalização do uso terapêutico de psicodélicos, neste Ted Talk, as substâncias psicodélicas devem ser vistas como uma ferramenta e seus efeitos benéficos ou prejudiciais estão diretamente ligados a forma e o contexto em que são usadas. Após quase meio século de restrições, assistimos ao renascimento da ciência psicodélica, com avanços importantes e resultados promissores, inclusive no que tange a legalização do uso medicinal dessas substâncias. Mas estamos apenas no início dessa jornada de conhecimento, com importantes obstáculos não só científicos, mas políticos e culturais também. 

Segundo o artigo publicado pelo IPEA, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, nesse processo de renascimento da ciência psicodélica, avanços no campo da neurociência contribuíram para refutar antigas justificativas de demonização desses compostos. Hoje, é possível dizer que eles apresentam baixo risco de danos à saúde quando usados com conhecimento e responsabilidade. Ao mesmo tempo, mostram resultados positivos no tratamento de distúrbios mentais como depressão, ansiedade, traumas severos e vícios. 

Especialmente no campo da psiquiatria, os psicodélicos têm gerado grande entusiasmo. Desde o lançamento do Prozac, nos anos 80, uma “crise” vinha se instaurando no ramo, já que muitos estudos mostram não só os riscos e limitações de um modelo de tratamento com prescrição de drogas de uso contínuo, assim como a ineficácia dessas drogas para uma parte considerável de pacientes. Por outro lado, com poucas sessões de terapia assistida utilizando psicodélicos, os indivíduos analisados mostraram redução significativa de sintomas, muitas vezes superiores aos tratamentos convencionais, recebendo o selo de “terapia inovadora” da FDA (Food and Drug Administration).   

O que as tecnologias de conhecimento do cérebro identificaram é que eles atuam nesse órgão aumentando a quantidade de alguns neurotransmissores, especialmente a serotonina, propiciando mais conectividade entre neurônios, reduzindo a atividade de determinadas regiões cerebrais e intensificando outras. Drogas como o MDMA, já em fase avançada de estudos clínicos, possuem moléculas capazes de diminuir a atividade da amígdala, região responsável por sensações de medo, agressividade e ansiedade. Em contrapartida, ela é capaz de aumentar a atividade do córtex pré-frontal, área ligada ao processamento complexo de pensamentos, sensações, sentimentos, tomada de decisão e comportamento. 

De forma simplificada, o potencial transformador de uma experiência psicodélica recai na sua capacidade de gerar novos estados e processos neurais, emocionais e cognitivos, oferecendo “novas rotas” de pensamento que podem alterar de forma duradoura percepções, crenças e narrativas sobre si e a vida. Como te explicamos neste tema da vez,  nosso cérebro é plástico e possui uma incrível capacidade de se reorganizar e modificar algumas de suas propriedades estruturais e funcionais em resposta às experiências de vida. 

A figura a seguir mostra os dados colhidos, por ressonância magnética, da quantidade de conexões neurais de um grupo de pessoas que em (a) tomaram um placebo e em (b) receberam uma dose de psilocibina.
      
Fonte: Petri G, Expert P, Turkheimer F, Carhart-Harris R, Nutt D, Hellyer PJ, Vaccarino F. “Homological scaffolds of brain functional networks”. Journal of The Royal Society Interface, 2014.


Na lista de países que mais produzem estudos de impacto sobre psicodélicos, ocupamos lugar de destaque no ranking global. Estudos crescentes e rigorosos vêm sendo desenvolvidos sobre o uso da ayahuasca no tratamento para depressão, tanto no Instituto do Cérebro, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como na USP de Ribeirão Preto. Em 2019, a publicação dos resultados de uma pesquisa realizada com LSD, indicando potencial da substância para frear o declínio mental causado por envelhecimento,  também colocou o Brasil em evidência. O Instituto Phaneros, com suas pesquisas de terapia assistida com MDMA, incluiu o país na pesquisa internacional para teste do protocolo terapêutico da MAPS. Ainda, o país avança nos estudos com a ibogaína para tratamento de dependência química, com ótimos resultados.
O que dizem por aí
Muita calma nessa hora


 
Apesar de serem classificadas por especialistas como a droga recreativa menos prejudicial para a saúde, especialmente por não causarem dependência ou levar a uma overdose, também é verdade que para algumas pessoas uma “viagem” psicodélica pode ser extremamente perturbadora e até perigosa, como aponta este artigo do New York Times. Nesse sentido, pesquisadores vêm mapeando fatores que podem influenciar os efeitos e resultados dessas vivências, na busca de aperfeiçoar protocolos e orientar a população sobre os riscos do uso sem supervisão. 

O primeiro fator de risco é o histórico pessoal e familiar de transtornos mentais sérios, como esquizofrenia e bipolaridade. Para estas pessoas, a experiência com psicotrópicos pode ser um gatilho e dar início a um quadro psicótico. É por isso que tanto grupos místicos/religiosos que usam “plantas de poder”, como a ayahuasca, assim como todo e qualquer estudo sério com estas substâncias, realizam (ou deveriam realizar) um rigoroso questionário para entender possíveis questões de saúde mental e física (como problemas cardiovasculares) que podem impactar negativamente a experiência da pessoa. 

Outro fator fundamentalmente importante a ser levado em consideração para a segurança de uma experiência com psicodélicos é o contexto no qual ela ocorre. Isso inclui o local, as pessoas presentes e os elementos que compõem a experiência, com destaque especial para a música. Conhecido como “set-setting theory”, estudos mostram que uma mesma substância pode gerar respostas completamente diferentes a depender da expectativa e intenção do usuário - o set; e o contexto social, cultural e ambiental do uso - o setting. 


Outro ponto de preocupação em torno dos psicodélicos é a “bolha de entusiasmo” recente que acaba inflando resultados preliminares, ainda que promissores. Promessas exageradas, pensamento mágico, frases de efeito simplista e uma corrida do ouro por parte de investidores estão, segundo pesquisadores psicodélicos, pondo em curso uma nova onda negativa, que poderia ser ainda mais prejudicial que a primeira se não nos prepararmos adequadamente. 

Nesse sentido, pesquisadores voltam a se posicionar pedindo cautela e fazendo até mesmo um mea culpa, como é o caso da Dra. Rosalind Watts em seu artigo, “o que aprendi nos cinco anos desde minha palestra no TEDx”, ao focar seu otimismo mais na substância e menos no procedimento terapêutico. Segundo ela, o psicodélico funciona como um catalisador do processo, uma porta de acesso aos sentimentos mais profundos, mas não como o processo terapêutico por si só. Assim, a integração psicodélica, que se refere à etapa de juntar as percepções, emoções e insights que surgiram ao longo da vivência e processá-las nas diferentes áreas da vida, é parte crucial para que, de fato, essa experiência seja reveladora e transformadora.


E é com este entendimento de que psicodélicos podem funcionar como “amplificadores” que surge uma nova geração de usuários desses compostos, que veem na microdosagem uma ferramenta para potencializar a produtividade, o foco e a criatividade, sem cair nos efeitos lisérgicos das altas doses. A “moda” ganhou força no Vale do Silício e vem se popularizando ao redor do mundo, especialmente entre os adeptos do biohacking, um movimento que une tecnologia e biologia na busca de otimizar o funcionamento do corpo e da mente. 


Porém, há poucos estudos científicos sobre microdosagem e pesquisadores afirmam que os benefícios psicológicos relatados por microconsumidores podem ser parte de um efeito placebo. Ainda, especialistas temem que, mesmo em doses pequenas, o consumo regular de psicoativos possa causar problemas cardíacos ou mesmo tornar as pessoas tolerantes aos seus efeitos, reduzindo seu potencial terapêutico. Isso sem falar nas questões legais que ainda envolvem os psicodélicos, o que torna difícil saber a procedência do que vem sendo comercializado ilegalmente. Assim, a recomendação é o velho e conhecido ditado: “melhor prevenir que remediar”. 
Abrindo as portas da percepção

Nossa busca pelo transcendente é ancestral e muitas destas plantas com potencial de expandir a consciência e alterar nossa percepção ordinária da realidade são utilizadas pela humanidade há milhares de anos. Hoje, estas substâncias “fantásticas”, como foram classificadas no início do século XX, voltam a estar nos holofotes e basta uma breve busca na internet para perceber a complexidade e amplitude desse assunto. Assistimos a renascença da psicodelia e ainda temos muito por descobrir. 

Nem super entusiasmados, nem super céticos, nossa dica nesse tema da vez é para que você mantenha a mente aberta e um olhar crítico. O caminho seguro é seguir se aprofundando no tema, desmistificando conceitos e rompendo antigos preconceitos e estigmas em torno dessas substâncias, sem cair em promessas milagrosas de uma panaceia psicodélica. Assim, para seguir seus estudos, veja nossas dicas a seguir. 
Quer saber mais? Separamos alguns conteúdos que podem te ajudar
a fazer um mergulho ainda mais profundo, não deixe de conferir!

Livro: Psiconautas: viagens com a ciência psicodélica brasileira - Marcelo Leite



Série: Como mudar sua mente -  Netflix