Fundo no assunto Brasil Terra IndígenaVocê já ouviu essa história: em 1500, Pedro Álvares Cabral desembarcou no litoral de uma terra com natureza exuberante. Nela, habitava um povo que andava nú e enfeitava seu corpo com pinturas e elementos da natureza. Decidiram chamá-los de índios, simplesmente pelo equívoco, ou não, de acreditar estarem a caminho das Índias. Talvez, o que não tenham te contado é que, nesse momento, estimativas demográficas apontam que esta terra estava habitada por uma média de 5 milhões de pessoas, distribuídos por todo o território nacional, com mais de 1.300 etnias diferentes. Cada povo possuía uma denominação étnica (Guarani, Macuxi, Pankararu, Kayapó, Xavante, Fulni-ô, Yawanawá, Huni Kuin, Kaingang, Matipu, Pataxó, Tukano, Potiguara, Tupinambá e milhares de outras), uma língua própria, uma cosmologia única, um modo de vida adaptado aos diferentes biomas que habitavam, conhecimento botânico local, entre outros saberes e tecnologias ancestrais.
Porém, os europeus não vieram às Américas em busca de troca de conhecimentos e saberes. Eles vieram com a intenção certeira de dominar e colonizar as novas terras e, como colocou o líder indígena Ailton Krenak em seu livro Ideias para adiar o fim do mundo, “a ideia de que os brancos europeus podiam sair colonizando o resto do mundo estava sustentada na premissa de que havia uma humanidade esclarecida que precisava ir ao encontro da humanidade obscurecida, trazendo-a para essa luz incrível”. Essa crença justificou (e infelizmente ainda justifica) uma série de ações que buscou acabar com esses povos. Só para se ter uma ideia, em 1650, o número de habitantes nativos caiu para 700 mil pessoas, chegando a 70 mil em 1957. Apesar de todo o massacre, muitas comunidades indígenas sobreviveram e seguem lutando pelo direito de existir. É certo que houveram muitos avanços. O censo demográfico de 2010, por exemplo, constatou que a população indígena no Brasil cresceu e chegou a cerca de 900 mil pessoas, divididas em 305 etnias diferentes e com 274 línguas maternas. Mas, estamos longe ainda de compreender a importância da preservação dessas culturas, do respeito às suas identidades, da valorização de seus saberes. Teimosamente, persistem na sociedade brasileira equívocos de uma antiga mentalidade colonizadora, que induzem a população não-indígena a opor-se aos direitos dos povos originários e a distanciar-se de lutas e culturas que deveriam ser vistas como coletivas. Ou seja, de todo o povo brasileiro, por serem parte de quem somos enquanto nação.
Até a Constituição de 1988, toda a evolução histórica de legislações dos direitos indígenas teve um ponto em comum: seu caráter integracionista. Ou seja, mantinham a visão do indígena como ser primitivo que deveria ser “integrado” à sociedade brasileira, a partir da total assimilação de sua língua e seus costumes, passando então a ser considerado “civilizado” e parte da comunhão nacional. Segundo o professor Gersem José dos Santos Luciano, do povo Baniwa, autor do livro O Índio Brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje, lançado pelo MEC em parceria com a UNESCO, acreditava-se que a existência dos povos indígenas era uma questão de tempo e a transformação dos índios sobreviventes em cidadãos comuns decretaria a extinção final dos povos indígenas do Brasil.
O Estatuto do Índio de 1973, como ficou conhecida a lei 6001, categoriza a identidade indígena como: isolado, em vias de integração, integrado. Essa hierarquização da identidade indígena deixou na sociedade a impressão de que o “índio verdadeiro” é aquele que vive nas florestas, sem nenhum contato com a “civilização”. Assim, quanto mais um povo indígena se aproxima da sociedade dominante, menos "índios" são. Apesar de superada na Constituição de 1988, que reconhece o direito à organização social, costumes e línguas dos povos indígenas, o mito da integração segue presente no discurso político de muitos dirigentes.
Segundo Jolie Dorrico, descendente do povo Macuxi, em uma aula ministrada no curso Constelação das artes-musicalidades indígenas no Brasil pelo Itaú Cultural, essa hierarquização segue muito viva no imaginário nacional. Dela derivam as recorrentes desconfianças de indígenas que estão na universidade, que atuam na música, no cinema, na política e que utilizam ferramentas tecnológicas, como se tivessem perdido sua autenticidade. Ainda, ao desqualificar os indígenas por sua aproximação com a sociedade envolvente e por vivenciarem a contemporaneidade, classificando-os como “ex-índios” (como fez um governador amazonense), abrem-se brechas para argumentações contrárias à demarcação de Terras Indígenas.
José Bessa Freire, doutor em Educação, em uma palestra em abril de 2002, explica que a sociedade “congelou” a cultura indigena em 1500, produzindo “na cabeça da maioria dos brasileiros uma imagem de como deve ser o índio: nu ou de tanga, no meio da floresta, de arco e flecha, tal como foi descrito por Pero Vaz de Caminha. Qualquer mudança nela provoca estranhamento”. Isso não permite que culturas indígenas vivam a interculturalidade sem que sua identidade seja imediatamente questionada.
Como colocou Bessa Freire, todo encontro entre povos gera influências e mudanças, e isso é considerado normal para a cultura brasileira, chinesa, estadunidense, etc. As culturas de Estados-nação se vêem como simétricas e suas trocas culturais são vistas como intercâmbios. As culturas indígenas também mudam e isso não é necessariamente negativo, desde que seja uma escolha, e tampouco deve ser considerado um abandono de suas tradições e costumes. Se um brasileiro muda de país, adota novos costumes, se comunica na língua local, nunca deixará de ser brasileiro. Por que seria diferente com um Ashaninka, um Yanomami, um Tikuna, um Guajajara ou qualquer outro povo indígena? Segundo o IBGE, mais de 315 mil indígenas vivem em centros urbanos e, além de enfrentarem todo tipo de preconceito devido a essa crença, eles ainda sofrem com falta de acesso às políticas públicas destinadas a essa população, caindo no “não-lugar”: não são índios, não são negros, não são brancos.
Outro equívoco elencado pelo professor Bessa Freire a respeito dos povos indígenas é acreditar que suas culturas são atrasadas e pertencentes ao passado. A verdade é que estes povos produziram saberes, ciências, arte refinada, literatura, poesia, música e religião que estão longe de serem “inferiores”, “pobres” ou “atrasados” como muitos costumam nomear.
Hoje, já existem estudos que demonstram o conhecimento sofisticado acerca de plantas medicinais, agricultura, melhoramento genético, classificação e uso do solo, sistema de reciclagem de nutrientes, pesticidas e fertilizantes naturais, comportamento animal, manejo de pesca e vida selvagem e astronomia produzidos por culturas indígenas. Eles ainda, possuem uma vasta e riquíssima literatura, menosprezada por serem ágrafas, ou seja, passadas de geração em geração pela oralidade.
Bessa Freire afirma que esse preconceito nos impede de usufruir de um legado cultural acumulado por milênios que poderia, inclusive, evitar problemas graves, como o acidente na usina nuclear de Angra dos Reis, em 1985. Construída em uma região conhecida pelos Tupinambás como Itaorna, as chuvas provocaram deslizamentos de terra na encosta, destruindo o Laboratório de Radiologia. O que os engenheiros não sabiam é que o nome dado pelos indígenas continha informações importantes sobre a estrutura do solo, já que Itaorna, em língua tupinambá, significa “pedra podre”. Como colocou o antropólogo Darell Posey em uma exposição sobre a ciência dos Kayapós: |
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