Fundo no assunto O instinto maternoPersiste na sociedade a crença de que a mulher possui um certo instinto que a leva, em algum momento da vida, a sentir um impulso incontrolável pela maternidade. A crença de que o famoso “relógio biológico” inevitavelmente irá despertar - de preferência antes dos 35 anos - e a transformará por completo. Essa crença, que vem sendo contestada em diferentes instâncias, como comentamos nesse artigo, reforça a ideia de que há algo de errado com a mulher que não tem filhos ou mesmo aquela que virou mãe na maturidade, como se esse relógio estivesse “quebrado”.
Porém, da psicanálise à antropologia, da sociobiologia à etologia, estudos indicam que esse tal instinto materno não existe. O que existe é um desejo pela maternidade, influenciado em grande medida pela nossa cultura, assim como por estruturas políticas e econômicas. É claro que também existe um componente biológico, afinal o corpo da mulher se prepara mensalmente para receber um embrião. Porém, o que se concebe como instinto materno é, na verdade, o resultado da associação entre a biologia e as exigências da sociedade em que vivemos. As mulheres têm filhos por uma grande variedade de razões, que muitas vezes inclui o desejo de satisfazer pais, maridos e amigos, pelo medo da solidão e até mesmo como investimento na velhice, o que está longe de ser um impulso de procriar.
Ao mesmo tempo, relacionar a maternidade com um instinto predominantemente biológico pode contribuir para a construção da imagem da mãe que dá conta de tudo. Isso também pode fortalecer a manutenção de uma desigualdade de gênero nas funções do cuidado, que ficam atribuídas à mulher pois seria “natural para ela”.
Um exemplo disso é a clara diferença entre a licença maternidade e paternidade, onde o homem tem direito a somente 5 dias afastado do trabalho, podendo chegar a 20 dias caso trabalhe em uma Empresa Cidadã no Brasil. Alguns países começam a olhar para a questão, entendendo que o primeiro passo no caminho da igualdade de gênero, no que tange a construção da família, é equiparar a licença paternidade da maternidade, incluindo o pai nas funções do cuidado do recém-nascido.
Sim, o amor materno é indescritível, potente e traz muitos benefícios, como comentamos nessa matéria sobre a relação entre o amor materno e o desenvolvimento do cérebro. Parir uma vida é uma experiência única e muito especial, o que leva muitas mulheres a, inclusive, decidirem mergulhar nessa jornada mesmo sem um parceiro ao lado, como nos contou Mariana Kupfer na segunda temporada do Podcast Plenae. O problema se dá quando a mulher não tem outra opção na vida que não seja ser “a mãe perfeita”: jovem, casada, que tem um parto natural e uma criança saudável, amamenta sem sofrimento, volta rapidamente ao seu corpo de antes da gestação, é totalmente devota à criação dos filhos, está sempre disponível, cria um espaço seguro e laços profundos, é criativa, cozinha todos os dias comidas naturais e saudáveis, brinca e ainda, equilibra perfeitamente a maternidade com o trabalho remunerado e as funções da casa, tem tempo para se cuidar, fazer exercícios, socializar, é uma ótima esposa, amiga, filha e está plena e feliz todos os dias. Ufa.
Essa idealização de perfeição tem gerado uma enorme pressão nas mulheres, dando lugar a uma série de sentimentos negativos que prejudicam sua saúde como um todo. Entre os mais comuns estão a culpa materna e o sentimento de inadequação constante por não alcançarem tantas expectativas, vindas de todos os lugares e que as redes sociais só contribuem para exacerbar ainda mais.
Porém, cada dia mais mulheres buscam quebrar o silêncio na busca de “desmascarar a maternidade”, como colocou de forma muito poética Katherine Wintsch em seu Ted Talk. Após um longo estudo com mais de 5 mil mães de mais de 17 países, ela compreendeu que todas as mulheres, sem exceção, sofrem caladas a angústia de não atingir tal ideal. Essa também é a missão do canal Mil e Uma TrETAS, de Julia Faria e Thaila Ayala, que busca trazer um novo olhar para a maternidade, normalizando os inúmeros perrengues que inevitavelmente toda mãe irá lidar.
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