Revisitando a maternidade
O que você vai encontrar por aqui: 
  • O instinto materno 
  • A mãe perfeita não existe
  • O lugar da madrasta
  • Os estigmas em torno de mulheres sem filhos
  • Histórias para refletir e se inspirar
Você tem filhos? Essa simples pergunta, frequentemente direcionada às pessoas adultas, pode ser um gatilho para um turbilhão de emoções, em especial para as mulheres. Isso porque ela costuma vir carregada de uma pressão social que relaciona a maternidade com propósito de vida. É como se a mulher precisasse ser mãe para completar sua missão de vida. Assim, todas, sem exceção, em algum momento serão questionadas sobre se e quando terão filhos e a resposta nem sempre é fácil. 

Culturalmente, existem muitos tabus em torno do maternar e as mulheres que saem do script da “mãe realizada”, seja por não terem filhos ou por expressarem suas dificuldades e lamentações, sofrem preconceitos e estereótipos pautados por uma visão romantizada da maternidade. 

Ser mãe nos dias de hoje implica na conciliação de diversas funções simultâneas e, em uma realidade complexa como a que vivemos, existem tantos tipos de mães como existem mulheres neste mundo, todas perfeitas em sua mais pura imperfeição. A busca para alcançar a maternidade ideal tem cobrado seu preço na saúde mental de inúmeras mulheres. Ainda, maternar não necessariamente significa dar luz a uma criança, já que há uma enorme distância entre parir uma vida e educá-la pro mundo, o que dá espaço para que outras pessoas assumam ou participem dessa função. 
Mães felizes, mães arrependidas, mães solo, mães adotivas, mães de criação, madrastas e, ainda, não-mães por opção ou circunstância: a maternidade impacta cada mulher de uma forma única. Nesse sentido, surgem movimentos que buscam ressignificar a atividade para trazer mais leveza, liberdade de escolha e acolhimento para os inúmeros desafios que implica a decisão de ser ou não ser mãe. 

Acreditamos que vale a pena mergulhar no tema da maternidade e entender um pouco mais os diferentes aspectos que envolvem esta escolha. Queremos, com esse tema da vez, contribuir na desconstrução da imagem da “mãe perfeita” que dá conta de tudo ou da mulher que tem que ser mãe para ser feliz. Para nós, esse é o caminho para a construção de relações mais amorosas e saudáveis com todas as mulheres que fazem parte de nossas vidas, oferecendo mais apoio e menos julgamentos diante de suas escolhas.
Fundo no assunto
O instinto materno


Persiste na sociedade a crença de que a mulher possui um certo instinto que a leva, em algum momento da vida, a sentir um impulso incontrolável pela maternidade. A crença de que o famoso “relógio biológico” inevitavelmente irá despertar - de preferência antes dos 35 anos - e a transformará por completo. Essa crença, que vem sendo contestada em diferentes instâncias, como comentamos nesse artigo, reforça a ideia de que há algo de errado com a mulher que não tem filhos ou mesmo aquela que virou mãe na maturidade, como se esse relógio estivesse “quebrado”.

Porém, da psicanálise à antropologia, da sociobiologia à etologia, estudos indicam que esse tal instinto materno não existe. O que existe é um desejo pela maternidade, influenciado em grande medida pela nossa cultura, assim como por estruturas políticas e econômicas. É claro que também existe um componente biológico, afinal o corpo da mulher se prepara mensalmente para receber um embrião. 



                

Porém, o que se concebe como instinto materno é, na verdade, o resultado da associação entre a biologia e as exigências da sociedade em que vivemos. As mulheres têm filhos por uma grande variedade de razões, que muitas vezes inclui o desejo de satisfazer pais, maridos e amigos, pelo medo da solidão e até mesmo como investimento na velhice, o que está longe de ser um impulso de procriar. 

Ao mesmo tempo, relacionar a maternidade com um instinto predominantemente biológico pode contribuir para a construção da imagem da mãe que dá conta de tudo. Isso também pode fortalecer a manutenção de uma desigualdade de gênero nas funções do cuidado, que ficam atribuídas à mulher pois seria “natural para ela”. 

Um exemplo disso é a clara diferença entre a licença maternidade e paternidade, onde o homem tem direito a somente 5 dias afastado do trabalho, podendo chegar a 20 dias caso trabalhe em uma Empresa Cidadã no Brasil. Alguns países começam a olhar para a questão, entendendo que o primeiro passo no caminho da igualdade de gênero, no que tange a construção da família, é equiparar a licença paternidade da maternidade, incluindo o pai nas funções do cuidado do recém-nascido.  


Sim, o amor materno é indescritível, potente e traz muitos benefícios, como comentamos nessa matéria sobre a relação entre o amor materno e o desenvolvimento do cérebro.  Parir uma vida é uma experiência única e muito especial, o que leva muitas mulheres a, inclusive, decidirem mergulhar nessa jornada mesmo sem um parceiro ao lado, como nos contou Mariana Kupfer na segunda temporada do Podcast Plenae


                    

O problema se dá quando a mulher não tem outra opção na vida que não seja ser “a mãe perfeita”: jovem, casada, que tem um parto natural e uma criança saudável, amamenta sem sofrimento, volta rapidamente ao seu corpo de antes da gestação, é totalmente devota à criação dos filhos, está sempre disponível, cria um espaço seguro e laços profundos, é criativa, cozinha todos os dias comidas naturais e saudáveis, brinca e ainda, equilibra perfeitamente a maternidade com o trabalho remunerado e as funções da casa, tem tempo para se cuidar, fazer exercícios, socializar, é uma ótima esposa, amiga, filha e está plena e feliz todos os dias. Ufa. 

Essa idealização de perfeição tem gerado uma enorme pressão nas mulheres, dando lugar a uma série de sentimentos negativos que prejudicam sua saúde como um todo. Entre os mais comuns estão a culpa materna e o sentimento de inadequação constante por não alcançarem tantas expectativas, vindas de todos os lugares e que as redes sociais só contribuem para exacerbar ainda mais

Porém, cada dia mais mulheres buscam quebrar o silêncio na busca de “desmascarar a maternidade”, como colocou de forma muito poética Katherine Wintsch em seu Ted Talk. Após um longo estudo com mais de 5 mil mães de mais de 17 países, ela compreendeu que todas as mulheres, sem exceção, sofrem caladas a angústia de não atingir tal ideal. Essa também é a missão do canal Mil e Uma TrETAS, de Julia Faria e Thaila Ayala, que busca trazer um novo olhar para a maternidade, normalizando os inúmeros perrengues que inevitavelmente toda mãe irá lidar. 


Porém, falar das dificuldades que permeiam a maternidade real ainda é bastante estigmatizado na sociedade, como se os sentimentos negativos em torno desta função significasse que estas mães não amam seus filhos. Entre sentimentos de solidão, exaustão e sobrecarga, algumas chegam ao ponto de se sentirem arrependidas, sendo condenadas e atacadas socialmente. 

Mas, como afirma Orna Donath, socióloga israelense e autora do livro “Mães arrependidas”, “como qualquer relacionamento humano, a maternidade contém todos os tipos de emoções, como alegria, tédio, ódio, ciúme, amor, raiva e, sim, também arrependimento”. Mostrar o lado menos glamouroso da maternidade é importante não só para que estas mulheres se sintam acolhidas em suas contradições, mas também para desconstruir essa busca por uma perfeição que não existe, o que pode ser bastante libertador. 


Com o divórcio cada dia mais comum, cresce o número de mulheres que exercem um tipo diferente de maternagem do qual pouco se fala: a madrastidade. Talvez porque os mitos em torno dessa figura sejam sempre pejorativos, povoando o imaginário coletivo com a imagem da mulher intrusa, perversa, que chegou para roubar o pai. Até mesmo os dicionários seguem relacionando a palavra madrasta com “mulher má, incapaz de revelar gestos de ternura”. 

Letícia Tomazella, madrasta de dois e autora do livro Madrasta é a mãe: reflexões sobre uma maternagem marginal, afirma que “mesmo que isso pareça infantil, no dia a dia lidamos com as consequências desse imaginário todo, como a falta de confiança das pessoas em nossa capacidade de maternar e amar nossos enteados”



                  

Apesar da persistência dessas metáforas, um estudo realizado em 2021 na Universidade da Carolina do Norte, nos Estados Unidos, mostrou que a maioria dos enteados que participaram da pesquisa tinham uma relação positiva com suas madrastas. Todd Jensen, pesquisador responsável pelo estudo, afirma que a presença da madrasta pode “trazer uma contribuição única para o bem-estar de uma criança” e constatou que estas relações benéficas reduzem níveis de ansiedade, depressão e solidão nas crianças, especialmente após um divórcio

Muitas pesquisas mostram que crescer na presença de outros modelos positivos de adulto, para além dos pais biológicos, ajuda as crianças a construírem resiliência emocional, melhora o desempenho escolar e neutraliza os impactos de dinâmicas familiares negativas. Sem dúvida o papel da madrasta é complexo e muitas acabam caindo na mesma armadilha da perfeição na busca de romper com os estereótipos negativos. 

Na busca de acolher essas mulheres que exercem “o maternar de crianças que não nasceram de suas barrigas”, Mariana Camardelli criou em 2019 a comunidade @somos.madrastas. A proposta é debater temas relacionados a madrastidade como: “não, eu não roubei o papai da mamãe”, “liberte-se da fixação pela ex (do marido)”, “ciúmes do passado” e “quando te perguntam quantos filhos você tem, o que você responde?”. Segundo ela, o papel social da madrasta que antes era vista como a substituta da falecida mãe mudou e é preciso colocá-la no seu lugar de comadre, “que implica num maternar compartilhado”, honrando seu papel parental na vida da criança. 

 
O que dizem por aí
Não sou mãe e tudo bem 


          

Ao longo da história, sempre houve mulheres que escolheram o caminho da não-maternidade. Esse não é um fenômeno contemporâneo iniciado pelos millennials ou mesmo um “movimento de rebelião das mulheres”, como o título de um artigo do El País sugere. Mas, de fato, o tema tem chamado a atenção, já que cresce o número de mulheres que assumem publicamente essa escolha, reivindicando seu direito por outras experiências de feminino na sociedade. 

Ainda assim, estamos longe de compreender, respeitar e legitimar esta decisão. Mulheres sem filhos sempre foram rotuladas de egoístas (como sugeriu recentemente o Papa Francisco), vazias, materialistas, problemáticas e até de “perdedoras”, como concluiu o psicólogo Satoshi Kanazawa em uma pesquisa da London School of Economic

Isso porque não ser mãe ainda é considerado um defeito social. Para a antropóloga Miriam Goldenberg, "o mais curioso é que as próprias mulheres cobram de outras mulheres que elas sejam mães. Como se a maternidade fosse a única escolha legítima ou, ainda, a mais legítima de todas". 


As razões que levam uma mulher a não ter filhos são inúmeras e complexas, mas poderiam ser divididas em dois grandes grupos: por escolha ou por circunstância. Existem mulheres que desde sempre souberam que não desejavam ser mães; outras que até queriam, mas que não aconteceu, seja por questões de saúde, seja por não encontrar um parceiro adequado; algumas estavam em cima do muro, mas questões econômicas, falta de apoio ou mesmo crises socioambientais as fizeram desistir da ideia.

A constante necessidade de justificar a sua escolha tem levado algumas mulheres a se posicionarem de maneira radicalmente oposta, como a escritora suíça Corinne Maier com o livro Sem filhos: 40 razões para você não ter ou mesmo a satirizar os frequentes ataques como fez a comediante Chelsea Handler no programa The Daily Show. Ao mesmo tempo, cresce o número de comunidades online “childfree” que celebram uma vida “livre de crianças”.

O que começou como uma reivindicação pelo direito de não ter filhos sem os estigmas sociais depreciativos, se expandiu para a ideia de restringir ou mesmo vetar a entrada de crianças em determinados estabelecimentos, o que tem gerado discussões acaloradas de ambos os lados. O próprio termo, “livre de crianças”, tem sido muitas vezes usado por grupos que beiram a misoginia e o discurso de ódio e, por isso, muitas pessoas sem filhos não querem ser associadas a estas comunidades. Até porque, não ter filhos não significa não gostar ou mesmo conviver com crianças. 
No fim das contas, são escolhas

                   


A maternidade é, sem dúvida, uma das escolhas mais importantes na vida de uma mulher. Por isso, deve ser acolhida e apoiada, seja qual for o caminho a percorrer. São tantas as dimensões que fazem parte desse ato que, não à toa, esse é um assunto recorrente em nosso portal. Refletir sobre o ser ou não ser mãe é, no fim das contas, refletir sobre a mulher e seu lugar no mundo, legitimando suas escolhas e diferentes formas de ser, sonhar e viver o mundo. 

Como sociedade, precisamos não só desconstruir a ideia da maternidade santificada, como criar as condições necessárias para que a tarefa de criar um filho não seja delegada unicamente às mães. Pois, como diz o provérbio africano, “é preciso uma aldeia inteira para se educar uma criança”. E para finalizar, deixamos aqui quatro histórias que refletem a pluralidade da maternidade, para ouvir e se inspirar:


Quer saber mais? Separamos alguns conteúdos que podem te ajudar a fazer um mergulho ainda mais profundo, não deixe de conferir!
Livro: Mãe fora da caixa - Thaís Vilarinho
Série: Super mães - Netflix
Podcast: Mil e uma TrETAS