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Você se lembra dos seus sonhos?

Sonhar é, sem dúvida, uma das experiências mais enigmáticas da nossa mente. Para alguns, pode parecer uma atividade cerebral sem muita importância. Mas, para determinadas culturas, é um estado tão real e significativo quanto o estado de vigília. Cientistas buscam entender qual a função do sonho em nossa mente, psicólogos buscam interpretar o que este carrossel de imagens está dizendo sobre nosso inconsciente e ainda tem quem ensine a vivenciar este fenômeno de forma totalmente consciente.

Porém, vivemos uma epidemia de privação do sono em que se estima que dois terços dos adultos em todos os países desenvolvidos não dormem o suficiente. Seja de forma voluntária ou por algum distúrbio, a qualidade do sono da população tem caído drasticamente. Com isso, sonhamos cada vez menos, o que tem chamado a atenção da ciência. Estudos apontam que o ato de sonhar é tão importante para a saúde do cérebro que a falta dele pode ser uma possível causa subvalorizada para a depressão e a ansiedade, assim como para um aumento das respostas inflamatórias e problemas de memória.

Assim, acreditamos que vale a pena entender um pouco mais sobre o misterioso mundo dos sonhos e sua importância para o bem-estar físico e emocional. Queremos te incentivar a priorizar a qualidade do seu descanso, o que te permitirá sonhar cada dia mais. Como dissemos em nossa crônica, sonhar é como ter um super-poder. É a possibilidade de se debruçar em uma linguagem secreta, uma espécie de sussurro produzido pela nossa mente, que pode ou não fazer sentido imediato, mas que sempre tem algo a dizer.

Fundo no assunto
Por que sonhamos?

Desde a Antiguidade, há evidências de que os sonhos são objeto de interesse e registro da humanidade. Da Bíblia a Torá, passando pelas Ilíadas e a Odisseia, os sonhos são relatados e interpretados, ganhando significados ainda mais especiais dependendo de quem sonha. Mas, foi somente em 1950 que o processo onírico ganhou mais análises científicas, dando lugar a uma série de hipóteses sobre sua função em nossas vidas e como eles afetam nossa saúde como um todo.

Segundo Matthew Walker, autor do livro Por que nós dormimos, “o sonho provê uma série única de benefícios a todas as espécies afortunadas o bastante para experimentá-lo. Entre esses benefícios estão um consolador banho neuroquímico que apazigua lembranças penosas e um espaço de realidade virtual em que o cérebro mescla conhecimento presente e passado, inspirando a criatividade”.

A partir de estudos com ressonância magnética, foi possível detectar que algumas regiões do cérebro são acionadas no momento em que começamos a sonhar. Dentre eles, vale destacar o aumento da atividade do hipocampo, região que dá suporte à memória autobiográfica, da amígdala e do córtex cingulado, os centros emocionais que ajudam a gerar e processar emoções. “Essas regiões emocionais do cérebro ficam até 30% mais ativas no sono REM (que é quando mais sonhamos) do que quando estamos despertos!”, relata Matthew.

Estudos indicam que, quanto mais tempo a pessoa fica em sono REM, menos propensa ela está de sentir medo e angústia, pois verificou-se que, quando estamos nesse estado, a concentração de uma substância relacionada ao estresse - conhecida como noradrenalina ou norepinefrina - é eliminada por completo do cérebro. Este é, inclusive, o único momento em que ficamos totalmente desprovidos dessa molécula desencadeadora da ansiedade. Com os hormônios do estresse reduzidos e o hipocampo em maior atividade, é possível acessar memórias sem a carga emocional que lhe rodeia, dando novos significados a temas perturbadores, em um ambiente neuroquímicamente calmo e seguro.

É por isso que alguns estudiosos consideram o ato de sonhar como uma espécie de “segundo intestino”, pois ele “digere nossas emoções”. A lógica parte do pressuposto de que absorvemos milhares de informações durante o dia e os sonhos nos ajudam a processar estas experiências. Ainda, eles funcionam como um regulador emocional que nos ajuda a interpretar a realidade de forma mais equilibrada. Uma pesquisa realizada pelo mesmo Matthew Walker e descrita em seu livro, mostrou que a privação do sono REM deixou os participantes do estudo em uma configuração mental padrão com tendência ao medo, onde a percepção do mundo social era mais ameaçadora e aversiva.

Outro achado importante com relação a importância dos sonhos está nas relações aleatórias e, por vezes, bizarras, que costumam acontecer nesse momento, fundindo traços de memória em consolidação com recordações mais antigas, tudo em uma narrativa abstrata, caótica e totalmente original. Essas junções reorganizam sinapses cerebrais e facilitam as associações de elementos originalmente desconexos, favorecendo a criatividade.

Durante o estado onírico, nosso cérebro consegue ainda criar conhecimento abstrato abrangente a partir desse conjunto de informações. Como coloca Walker, “o sono REM e o ato de sonhar pegam aquilo que aprendemos em um cenário de experiência e procura aplicá-lo a outros aprendizados armazenados na memória”. Neste breve Ted Talk, ele explica ainda que sonhar com um desafio da vida real pode fornecer a peça faltante desse quebra-cabeças, facilitando a resolução do problema.

Existem uma série de episódios em que os sonhos se tornaram ideias brilhantes, como a música Yesterday sonhada por Paul McCartney, o sonho assustador de Mary Shelley que deu origem ao romance Frankenstein, ou o neurocientista Otto Loewi, que ganhou o prêmio Nobel após suas descobertas sobre como as células nervosas se comunicam entre si por meio de substâncias químicas (neurotransmissores), liberadas através das sinapses, tudo inspirado por um sonho. Esses são alguns exemplos, ainda que anedóticos, do quanto os sonhos nos inspiram na vida real, nos ajudam a encontrar soluções e dão espaço para o novo acontecer.

Em 1900, Sigmund Freud estabeleceu um novo e intrigante marco na ciência dos sonhos ao publicar sua teoria de que eles são manifestações dos nossos desejos inconscientes. Em seu livro “A interpretação dos Sonhos”, Freud afirma que os sonhos são uma realização dos desejos reprimidos, funcionando como uma válvula de escape da moral da consciência. Pela primeira vez, a interpretação dessa atividade humana ganhava uma base científica, sendo associada ao método da livre associação utilizada pela psicanálise. “Ao adormecer surgem ‘ideias indesejadas’, devido ao afrouxamento de um pensamento crítico de si, que pode influenciar as tendências de nossas ideias”, afirma.

Carl Jung, grande amigo de Freud, concorda que os sonhos trazem mensagens de nosso inconsciente, porém afirma que a psique humana é mais do que somente um instrumento de desejos libidinosos. Para ele, os sonhos mostram a verdade interior e a realidade do indivíduo como realmente é, dando acesso ao significado existencial do mesmo e não aos seus desejos inconscientes.

Para Jung, o inconsciente conversa com o consciente a partir de símbolos, que podem surgir quando dormimos e se tornam um rico material de estudo ao serem interpretados. Ao longo de sua carreira, ele ainda encontrou quatro tipos de significados para os sonhos:

E, se analisar um sonho já diz muito sobre um indivíduo, estudá-lo em conjunto com outros milhões de sonhos pode nos ajudar a compreender a humanidade. É isso o que o maior banco de dados sobre sonhos do mundo, o DreamBank.net, está tentando fazer: encontrar padrões ocultos que possam revelar comportamentos sociais globais. Em especial, o estudo (que ainda está em uma fase prematura e inicial) busca entender como a sociedade reage a determinados eventos globais por meio desses devaneios. Na pandemia, por exemplo, acompanhamos muitos relatos de pessoas que perceberam mudanças significativas em seus sonhos durante a quarentena, como comentamos nessa matéria.

O que dizem por aí
Estou sonhando!

Um dos eventos mais fascinantes no mundo onírico é tomar consciência de que estamos sonhando durante o próprio sonho. Conhecido como sonho lúcido, este fenômeno acontece com pouca frequência de forma espontânea, mas pode ser induzido a partir de determinadas práticas. Alguns estudos indicam que cerca da metade da população global já teve pelo menos uma experiência de sonho lúcido e que algumas pessoas são mais propensas a ele, podendo até controlá-lo.

A internet está saturada de dicas, aulas, vídeos, coaches, livros e até suplementos que prometem facilitar essa lucidez. Mas, mesmo sonhadores lúcidos experientes só conseguem despertar uma ou duas vezes por mês, o que mostra que não é tão fácil desidentificar-se da narrativa onírica a ponto de ter consciência do que está acontecendo. Como colocou Daniel Love, um professor de sonhos lúcidos da Inglaterra, “o sonho lúcido é basicamente hackear o computador mais complicado do mundo: o cérebro humano”.

Existem muitos métodos para induzir um sonho lúcido, os dois mais conhecidos são o diário dos sonhos e a checagem de realidade. No primeiro caso a proposta é escrever tudo o que se lembra dos sonhos assim que acordar e começar a buscar padrões, como um lugar comum, por exemplo. Com isso, da próxima vez que você se encontrar neste cenário, terá mais chances de perceber que está sonhando. O segundo consiste em criar o hábito de checar a realidade no dia a dia - como contar os dedos, tampar o nariz, olhar o relógio - o que eventualmente acontecerá no sonho também. Uma vez que você fizer o teste de realidade no sonho, perceberá que está sonhando.

Já existem algumas evidências de que sonhos lúcidos podem trazer benefícios para seus sonhadores. Além de serem potencialmente divertidos, eles ajudam pessoas que sofrem com pesadelos frequentes (já que podem aprender a controlar esse momento), podem reduzir a ansiedade e ainda contribuir na melhoria do condicionamento físico, já que estudos mostram que a prática de uma atividade motora em sonho pode aumentar a habilidade de repeti-la acordado.

Mas alguns especialistas pedem uma dose de cuidado nas práticas de indução dos sonhos lúcidos, em especial para quem sofrem de algum distúrbio mental como esquizofrenia, transtorno bipolar ou fase maníaca, já que podem ser desestabilizadoras para pessoas nessas condições, pois a maioria delas fazem você questionar a realidade. A prática constante de exercícios indutores de sonho lúcido também podem aumentar a possibilidade de paralisia do sono, que pode ser uma experiência estressante para alguns.

Ainda, algumas técnicas de indução de sonho lúcido consistem em acordar no meio da noite, realizar algum exercício de concentração e então voltar a dormir, o que pode reduzir a qualidade do sono se feito com muita frequência. E se tem algo prejudicial para a saúde é ter a qualidade do sono prejudicada, como comentamos neste tema da vez.

Para sonhar mais

Atualmente, muitos de nossos hábitos estão atrapalhando nosso sono REM e, com isso, sonhamos menos. A redução do sono de forma voluntária, a falta de uma higiene do sono, o abuso de eletrônicos, de álcool ou de medicamentos, entre outros fatores, influenciam de forma significativa a qualidade do nosso sono e, consequentemente, dos nossos sonhos.

Porém, os sonhos são vitais para nossa memória, para equilibrar nossas emoções e para estimular nossa criatividade. Eles nos proporcionam um material riquíssimo para o autoconhecimento, promovendo insights valiosos sobre nosso mundo interior. E se não fosse suficiente, podemos aprender a controlá-los e, assim, experimentar as mais inimagináveis e extraordinárias aventuras.

Para que você possa priorizar seu sono e desfrutar de todos os benefícios dos sonhos que certamente virão, deixamos aqui algumas dicas de como sonhar mais e melhor, valorizando este rico e misterioso universo que você tem acesso todas as noites.

Referência: Visão Yanomami dos sonhos