O que você vai encontrar por aqui: 
  • Como o vício atua no cérebro?
  • O papel da dopamina no desenvolvimento da dependência
  • O vício como resposta a dor emocional
  • Um passo a passo para prevenir que um hábito se torne uma compulsão
Você tem algum vício?

Normalmente, quando ouvimos essa palavra, nossa mente quase que imediatamente a relaciona com substâncias químicas como o cigarro, o álcool e as drogas em geral. De fato, a dependência química é uma das consequências mais graves do vicio e milhões de pessoas sofrem diariamente desse mal. Mas, o vício pode se manifestar em qualquer comportamento que a pessoa encontre um prazer ou alívio temporário, passando a desejá-lo intensamente, a ponto de não conseguir parar pelo simples ato da vontade.

Você pode, sem perceber, desenvolver um comportamento compulsivo em relação ao seu celular, a roer unhas, em compras, comer, assistir TV, com jogos, sexo, trabalho e até com a academia. Como colocou o médico Gabor Maté, em entrevista para a BBC, “praticamente todas as atividades podem ser viciantes, dependendo da nossa relação com elas. Contanto que haja constante desejo e alívio, com consequências negativas a longo prazo, e dificuldade de simplesmente parar, você tem um vício”.

O vício é uma patologia altamente prevalente em nossa cultura e com grandes implicações sociais. Ele envolve desejo e perda de controle, com a continuação do uso da substância ou da atividade ainda que tragam prejuízos para os envolvidos. Recentemente, vimos a quarta grande onda da crise de opioides no Estados Unidos, matando quase 300 pessoas por dia de overdose de fentanil, 50 vezes mais potente que a heroína.
No Brasil, estamos em plena epidemia das bets e dados científicos indicam que cerca de 2 a 3% da população adulta mundial sofre de transtorno do jogo. Dentre as “caçulas” das dependências comportamentais está a compulsão digital, que já afetava 12,7 milhões de pessoas no país em 2021.

E ainda que o vício seja algo mais comum do que imaginamos na sociedade, prevalecem muitos mitos em torno dessa patologia. De acreditar que a adicção está restrita a dependentes químicos, que é algo genético ou que é uma escolha equivocada que a pessoa faz para si. Estigmas e preconceitos dificultam tanto que o sujeito reconheça quando está viciado em algo, como que busque ajuda profissional. A frase “quando eu quiser, eu paro” é geralmente o prenúncio de uma história desastrosa.

Assim, acreditamos que vale a pena entender um pouco mais sobre o que é o vício e como ele atua em nosso cérebro. Queremos com isso ajudar você não só a identificar se está com algum comportamento compulsivo que precisa de atenção, mas também aumentar sua compreensão e empatia sobre essa patologia que afeta, se não todos, a maioria de nós.
Fundo no assunto
A anatomia de um vício
 
Tendemos a pensar que praticamente tudo o que fazemos é totalmente voluntário.  Porém, o estado padrão do cérebro é mais parecido com um carro em marcha lenta do que estacionado. Algumas coisas que achamos que escolhemos fazer são na verdade coisas que nos tornamos programados para fazer quando soltamos as mãos do volante: o famoso piloto automático.

Ainda, nosso cérebro é uma máquina de criar padrões. Isso ocorre para que ele possa economizar energia para realizar uma série de outras tarefas com altas demandas energéticas, como o simples ato de pensar. Por isso, passamos mais de 40% do dia realizando comportamentos repetidos, enquanto nossas mentes estão ocupadas com outros pensamentos.

Determinadas experiências irão desencadear a liberação de dopamina - um famoso neurotransmissor que gera sensações de prazer - em uma região do cérebro chamada núcleo accumbens. Essa área, considerada a interfase neural entre a motivação e a ação motora, faz parte do caminho de recompensa do cérebro, que nos leva a repetir a ação na busca da mesma sensação.
A dopamina também tem um grande papel na neuroplasticidade e é capaz de mudar a forma como os neurônios se conectam e disparam sinais uns aos outros. O cérebro passa a criar conexões associando a recompensa com o comportamento e, logo, a outros gatilhos como sensações corporais, o ambiente externo e até mesmo horários no dia.

À medida que repetimos uma e outra vez a ação, moldamos e fortalecemos esses circuitos neurais a ponto de torná-los cada vez mais fáceis e automáticos de serem acessados. Através da neuroplasticidade, tema que abordamos nesse outro Tema da vez, ações isoladas se transformam em hábitos cada dia mais estabelecidos, ultrapassando o processo de tomada de decisão. Dessa forma, é possível realizar um hábito antes mesmo de ter a chance de perceber e parar.


O caminho da recompensa é essencial para o nosso bem-estar. Hormônios como a dopamina, serotonina, endorfina e oxitocina são fundamentais para que possamos nos manter felizes e saudáveis. Portanto, não há nada de errado em buscar atividades que possam estimular a produção desses hormônios e neurotransmissores.

Porém, quanto mais rápido nosso sistema de recompensa é ativado por uma atividade, mais viciante ela tem o potencial de ser. Conhecida como “dopamina barata”, ela está associada a comportamentos de gratificação imediata, mas de curta duração, como um like nas redes sociais. Na busca por mais, uma ação isolada pode evoluir para um hábito, depois em um comportamento impulsivo e acabar em uma compulsão.

Muitas substâncias exploram esse mesmo sistema. Seu potencial de dependência está associado a quantidade e rapidez com que a dopamina chega no cérebro. Altas doses desse neurotransmissor sobrecarregam os receptores neurais e geram um estado de euforia. A exposição repetida a substâncias e comportamentos viciantes pode levar a alterações na estrutura e função do cérebro, afetando a forma como os neurônios se comunicam entre si, resultando em uma busca obsessiva pela substância ou atividade para alcançar o estado eufórico.


O vício é, portanto, um distúrbio neurológico crônico real, que pode ter curso progressivo e complicações graves, às vezes fatais. Ele está constituído por dois componentes distintos: a dependência psicológica e a dependência física (ou química). A primeira, associada ao comportamento impulsivo, se caracteriza por um desejo intenso, com um aumento do nível de tensão ou alerta antes do ato, prazer ou alívio durante o mesmo e remorso ou culpa após sua conclusão. Já a segunda, a dependência química, causa distúrbios compulsivos, onde observa-se alterações em outros órgãos do corpo, aumentando níveis de ansiedade e estresse antes do ato e somente um alívio desses sintomas após a consumação do mesmo.

No caso da dependência psicológica, a pessoa sai de um estado neutro para um estado de sensações positivas (reforço positivo). Já na dependência física, estados avançados de compulsão leva a pessoa de sensações negativas (sintomas) para um estado neutro, de alívio (reforço negativo). Os limites entre uma fase e outra são bastante tênues e é possível observar um aumento gradual da dependência, com mudanças na qualidade e intensidade da força que motiva o comportamento.


Os jogos de aposta são muitas vezes comparados a drogas como o crack, devido a sua alta capacidade de causar dependência. Inclusive, no último Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) o vício pelo jogo mudou de seção e passou a fazer parte da mesma categoria das drogas, do álcool e das substâncias em geral.

Usando estratégias como o reforço intermitente (recompensas aleatórias) e o sentimento de “quase lá”, as bets e jogos de azar são capazes de proporcionar altos picos de euforia em seus usuários, o que é altamente viciante para o cérebro. E embora o vício em jogos seja um problema antigo, o novo cenário online trouxe as casas de aposta para dentro do lar e com acesso 24/7, estimulando o jogador a perpetuar o comportamento compulsivo. Afinal, basta um celular.



No Brasil, as bets esportivas encontraram um solo fértil: um público fã de esportes, especialmente o futebol, e com grande conhecimento no ramo. Cálculos de probabilidade, gerenciamento de risco e uma infinidade de estratégias “infalíveis”, geram uma falsa sensação de segurança e controle da situação, o que estimula ainda mais o comportamento aditivo.

Não à toa, estamos vivendo uma verdadeira epidemia de pessoas com transtorno de jogos, o que para além da doença em si, está gerando perdas bilionárias e o endividamento da população. Os dados mais atuais do Ministério da Saúde mostram que, de 2018 a 2023, o número de pessoas atendidas no SUS com sintomas dessa patologia aumentou de 108 para 1,2 mil. E esse número pode estar subnotificado.

O Governo está tentando acelerar a regulamentação dessas empresas e prevê uma série de medidas para mitigar o problema do vício e do endividamento excessivo. Mas, para muitos especialistas de saúde, as medidas são insuficientes frente a oferta e estímulo constante ao jogo com tantas campanhas publicitárias.
O que dizem por aí
 O alívio do sofrimento

                     

Ainda perdura na sociedade o mito de que o vício tem sua origem em um distúrbio de caráter da pessoa, sendo assim uma escolha, uma má decisão individual. Por muitos anos, a resposta ao vício foi a punição e criminalização dessa “escolha errada”, reprimindo, encarcerando e isolando dependentes. 

Países como Portugal já entenderam que essa não é a estratégia adequada para o tratamento dessa patologia e se tornaram um grande exemplo de como lidar com a situação.

Outro mito é que o vício é uma predisposição genética herdada, uma característica biológica. Sem dúvida, é possível ter uma pré-disposição genética ao vício, mas em hipótese alguma ela é determinante. 

O médico Gabor Maté mergulhou profundamente no estudo e tratamento de vícios e tem uma visão bastante diferente do assunto. Para ele, o vício é, na verdade, um “sintoma” de traumas gerados por condições sociais e psicológicas adversas vividos na infância e adolescência e que influenciam no desenvolvimento do cérebro.

Como seres “bio-psico-sociais”, o ambiente e as relações sociais que nos cercam moldam nossa biologia. Como colocou nessa entrevista para a revista CartaCapital, “quanto mais cedo a criança é submetida a altos níveis de estresse, indiferença, solidão e violência, maiores os prejuízos para o desenvolvimento desses circuitos, cujo mal funcionamento predispõe a problemas físicos e mentais, e ao vício”. 

Pessoas com experiências traumáticas podem passar uma vida convivendo com o sofrimento e a dor emocional. O vício, assim, é uma resposta da busca por motivação, prazer ou alívio do sofrimento que a pessoa não encontra em seu entorno. Para Gabor Maté, a melhor abordagem no tratamento do vício não é perguntar “qual é o vício?”, mas sim, “qual é a dor?”.



Para a neurocientista Rachel Wurzman, que se dedicou a pesquisar os espectros comportamentais impulsivos e compulsivos, a desconexão social tem um papel crucial nesse processo. Nesse Ted Talk, ela explica como o isolamento social age através do sistema de recompensa do cérebro para tornar algumas situações da vida literalmente dolorosas, criando uma certa “fome” no cérebro que hipersensibiliza os receptores de dopamina. 

Nesse estado, o cérebro sinaliza profunda insatisfação, nos deixando inquietos, irritados e impulsivos. Ao não conseguir nos conectar socialmente, ficamos vorazes para reequilibrar a neuroquímica social, buscando alívio em qualquer lugar.

Caso esse lugar seja uma atividade ou substância que inunda o cérebro de dopamina barata, ele cairá como uma bomba em nosso sistema de recompensa, podendo nos levar ao vício. Em um momento em que a solidão se tornou uma questão de saúde pública, não é de se admirar que tantas pessoas estejam se viciando em comida, redes sociais, opioides e bets. 

O “doom spending”, um fenômeno bastante atual que se refere ao aumento do consumo desenfreado de artigos de luxo pela geração Z e millenials, tem sua origem tanto nesse isolamento social como na desesperança e ansiedade quanto ao futuro.

Rachel acredita que o caminho de volta se encontra na busca por comportamentos sociais conectivos que possam substituir os comportamentos compulsivos no cérebro, já que ambos pegam a mesma rota do sistema de recompensa. 

Para ela, se não desenvolvermos a capacidade de nos conectar autenticamente, algo que nossa sociedade tem perdido cada vez mais, e de experimentar coisas que são transcendentes e além de nós mesmos, não poderemos sair dessa crise.
Retomando o volante do carro da vida

 
   

A possibilidade de que estejamos todos viciados em alguma coisa, em algum nível, é enorme em nossa sociedade. Segundo Gabor Maté, o mundo todo está repleto de vícios e compulsões em quase todos os níveis e, para dificultar, existe toda uma economia baseada em atender esses vícios. 

Retomar as rédeas da situação requer uma boa dose de autoconhecimento, autocompaixão e humildade para reconhecer quando é necessário buscar ajuda externa para sair do labirinto.

Como o desenvolvimento do vício é algo progressivo (ninguém acorda um dia viciado em fentanil), identificar o problema já no início é crucial para a prevenção de uma doença mental que pode afetar qualquer um de nós. 

Caso você reconheça algum comportamento que possa estar sequestrando sua capacidade de escolha, deixamos aqui um passo a passo para que você possa reequilibrar a situação:
Identifique e registre o mau hábito que possa estar causando dependência. Observe a frequência, o momento do dia em que acontece, o lugar, se existe alguma atividade que desencadeia o comportamento e como você se sente quando surge o desejo de realizá-lo.
Aumente o grau de dificuldade para realizar esse comportamento. Busque estratégias que te ajudem a evitá-lo, fazendo uma certa “desintoxicação” da mente e do corpo com relação a atividade.
Busque fazer alguma atividade prazerosa que possa substituir o mau hábito, criando novas conexões neurais em seu sistema de recompensa. Busque especialmente atividades que não forneçam dopamina barata e efêmera, mas aquelas que a partir de um certo esforço, serão mais gratificantes e duradouras, como te explicamos nesse artigo.
Nós já falamos muito em nosso portal do quão benéfico é estar na natureza, tanto para o corpo como para a mente. Esse contato é capaz de ativar seu sistema parassimpático, associado ao relaxamento e a digestão, diminuindo a fissura.
Planeje encontros com amigos, um café com alguém que você sinta intimidade, participe de alguma comunidade que compartilha de seus interesses ou seja voluntário em alguma causa que te motiva. Nossas conexões sociais percorrem o mesmo caminho de recompensa dos comportamentos compulsivos e são cruciais para superar qualquer vício.
Caso você reconheça que algum comportamento caminha para a compulsão, não deixe de procurar ajuda profissional. A terapia sempre será uma grande aliada de nossa jornada de autoconhecimento e, como colocou Gabor, por trás de todo vício sempre há uma dor que precisa ser cuidada com carinho.
Quer saber mais? Separamos alguns conteúdos que podem te ajudar
a fazer um mergulho ainda mais profundo, não deixe de conferir!

Podcast: Acho que você está viciada no seu celular – Lela Brandão




Podcast: Depois da saideira – Podcast Plenae - Histórias para refletir