O que você vai encontrar por aqui: 
  • Como se forma a memória
  • Atletas da mente
  • O que torna alguns eventos memoráveis
  • Como memórias traumáticas atuam no cérebro
  • A importância da preservação da memória
  • Dicas de como cultivar a memória
Você tem uma boa memória? Quais são suas lembranças mais antigas? Será que o que você se recorda foi mesmo o que aconteceu? O que torna um acontecimento memorável? 

Tantas perguntas já nos mostram a relevância desse mecanismo em nossa vida. Ele é um dos mais importantes processos psicológicos que ocorre em nossa mente e ainda é considerado um grande mistério para a ciência. Grosso modo, o definimos como a capacidade dos seres vivos de adquirir, armazenar e evocar informações. Porém, apesar de uma definição aparentemente simplista, não estamos falando de algo simples, definitivamente. 

É uma única palavra, mas que representa uma série de coisas que nosso cérebro é capaz de fazer, desde lembrar uma sequência numérica para desbloquear o acesso a uma conta, acessar uma lembrança da infância, fatos históricos, executar tarefas de forma automática, lembrar o caminho para casa e até mesmo saber nosso próprio nome – para tudo isso, a memória tem uma função crucial em nosso dia a dia. 
Ao mesmo tempo, tem natureza maleável e cada vez que relembramos um acontecimento – como a primeira vez que você andou de bicicleta, por exemplo – o cérebro muda ligeiramente a cena rememorada, com informações sendo atualizadas ou perdidas a cada recordação. Isso pode ser tanto uma benção como uma maldição, já que falsas memórias podem ter impactos significativos em nossa vida. 

A memória também extrapola as funções biológicas e adentra o campo do simbólico. Ela nos dá sentido de identidade individual e coletiva e sua preservação permite a permanência no tempo. Ela nos modela e é também por nós modelada. Porém, vivemos um momento em que terceirizamos essa função extraordinária e fundamental da nossa mente, entregando essa importante capacidade de cognição às tecnologias, sem refletir nos impactos disso. Ainda, à medida que envelhecemos, é comum nos depararmos com algum nível de perda dessa capacidade cognitiva e nossas escolhas têm papel fundamental em sua proteção.

Assim, acreditamos que vale a pena mergulharmos no fenômeno complexo e multifacetado da memória, entendendo sua significância e como nutri-la, cultivá-la e preservá-la. Queremos com isso te ajudar não só a manter sua qualidade ao longo do tempo, mas também a criar uma vida mais memorável e significativa, que valha cada lembrança. 
Fundo no assunto
A anatomia de uma memória
 
A forma como nossa mente coleta, armazena e logo recupera uma informação ainda não foi totalmente descoberta pela ciência. Apesar dos inúmeros avanços na neurociência, pesquisadores não sabem ao certo como potenciais elétricos e fenômenos bioquímicos se relacionam com as representações mentais que fazemos. Nenhum experimento até o momento foi capaz de capturar toda a nossa experiência humana com a memória e explicar cada instância dela.

O que se sabe até o momento é que, quando as informações chegam ao nosso cérebro, elas formam um circuito neural que se fortalece à medida que são reforçadas, como explicamos neste Tema da Vez sobre neuroplasticidade, formando nossas memórias de curto e longo prazo. Por isso, a repetição é considerada uma estratégia eficiente para a memorização. 

O armazenamento dessas informações e todos os seus componentes sensoriais – imagem, cheiro, som etc. - irá envolver diferentes regiões cerebrais, como o hipocampo, crucial na formação de novas memórias; a amígdala, nosso centro emocional que sinaliza quais memórias são importantes ou emocionalmente poderosas; e partes do córtex cerebral. 

     


O processo de recuperação de uma lembrança, seja de forma espontânea (quando estamos diante de um estímulo previamente conhecido, trazendo a sensação de reconhecimento) ou voluntária (quando ativamente buscamos uma informação armazenada, ou seja, nos recordamos), aciona especialmente a região conhecida como lobos frontais, que estão envolvidos na atenção e no foco. 
Vale ressaltar que, na prática, os processos de armazenamento e evocação de um acontecimento estão intimamente relacionados, são interdependentes e não acontecem de forma linear. O modo de organizar a informação quando essa é armazenada irá influenciar na facilidade ou não de sua recuperação. Diferentes técnicas de organizá-la tem sido desenvolvida ao longo dos tempos e, como veremos a seguir, algumas nos dão uma capacidade extraordinária de memorização. 


Você sabia que existe um esporte onde atletas competem memorizando desde a ordem exata das cartas de uma dezena de baralhos embaralhados, listas de palavras aleatórias, nomes e rostos, e até poemas inteiros em apenas alguns minutos? Conhecido como o Campeonato Mundial de Memória, realizado anualmente desde 1991, tem como um de seus maiores campeões o britânico Dominic O’Brien, que levou oito vezes o prêmio e em 2002 entrou para o Livro dos Recordes ao memorizar uma sequência de 2.808 cartas de baralho, olhando somente uma vez para elas. 

Porém, apesar desse feito impressionante, esses atletas da mente não possuem uma memória extraordinária. Eles na verdade dominaram algumas técnicas de memorização, algumas de 2.500 anos utilizadas na Grécia antiga, uma época em que a ideia de treinar, disciplinar e cultivar as recordações era muito difundida. Uma das técnicas mais conhecidas é o “palácio da memória”. Como nossa memória visual é relativamente muito boa, a ideia por trás dessa técnica é criar um salão imaginário e povoá-lo com as coisas que desejamos lembrar. 

Quanto mais esquisitas, bizarras, engraçadas, provocadoras ou espantosas as imagens são, mais inesquecíveis elas se tornarão. Assim, o processo envolve muito mais nossa criatividade e capacidade de imaginação, do que o senso comum de que para memorizar algo é preciso repetir uma e outra vez, como fizemos com a tabuada em nossa infância. 

Joshua Foer, jornalista científico que se debruçou nesse estudo, comenta neste Ted Talk, que o avanço da tecnologia criou o mundo moderno, mas também facilitou uma externalização da nossa memória a tal ponto que pode estar modificando essa impressionante capacidade cognitiva. Como qualquer músculo do nosso corpo, nosso cérebro também precisa de treino para poder desenvolver todas as suas habilidades. Com tão pouca necessidade de lembrar das coisas atualmente, ele sugere que estamos esquecendo de como fazê-lo, o que pode ser um erro.
Seu estudo sobre os campeonatos de memória o levou a entender que a técnica mais eficaz para a memorização envolve um conceito chamado “codificação elaborativa”. Isso significa que, quanto mais associações uma informação tiver em nossa mente, mais fácil será acessá-la quando quisermos nos lembrar dela. Assim, uma técnica para treinar é atribuir contexto, sentido e significado para que os fatos sejam mais memoráveis. Isso também serve para acontecimentos em nossa vida: quanto mais atenção e significado dermos a esses eventos, mais memoráveis se tornarão.

“Nossas vidas são o resumo de nossas memórias. Quanto estamos dispostos a perder de nossa curta vida por perder-nos nos nossos Iphones, por não prestar atenção no ser humano à nossa frente, que está falando conosco, por ser tão preguiçosos que não queremos processar profundamente? Se você quer viver uma vida memorável, você tem que ser o tipo de pessoa que lembra de se lembrar”, conclui o jornalista. 


Nossa memória armazena muitas coisas que acontecem ao longo do dia, mas grande parte delas acaba sendo esquecida, o que é muito importante. Esquecer faz parte do processo de aprendizagem e permite que o cérebro se concentre no que realmente importa. Como colocou Ranganath em entrevista para a BBC, “se não esquecêssemos de nada, estaríamos acumulando memórias e você nunca conseguiria encontrar o que deseja”. Assim, nosso cérebro classifica e armazena memórias com base em sua utilidade. 

É por este motivo que eventos emocionais geralmente alcançam status privilegiado, pois nossa mente entende que eventos carregados de emoção são úteis para nossa sobrevivência. E isso tem ligação tanto com emoções positivas, já que somos seres sociais que precisam do outro para viver bem, como as negativas, que colocam em risco nossa existência. 

    


Entre essas memórias emocionais, as chamadas memórias afetivas são aquelas carregadas de sentimentos e facilmente despertadas pelos nossos sentidos. Um cheiro familiar, música, fotografia e até o rosto de uma pessoa podem trazer essas memórias à tona automaticamente e despertar os sentimentos atrelados a elas. Grande parte dessas memórias são formadas na infância e têm grande influência em nossa saúde mental ao longo de toda a vida. 

Segundo o psicólogo João Victor da Silva, “recordar-se com frequência de coisas boas pode gerar um impacto na autoestima”. Assim, como adultos, dedicarmos tempo e atenção para criar memórias afetivas em nossas crianças é um caminho seguro e eficaz na proteção de sua saúde mental já que, como colocou o psicólogo, “são como sementes plantadas na infância e que podem ser colhidas na vida adulta”. 

As memórias "flashbulb" são outro exemplo de como a emoção e a memória estão conectadas. O termo se refere ao fenômeno de saber onde você estava e o que estava fazendo quando soube de um evento público importante e muitas vezes chocante, como os ataques de 11 de setembro ou a morte da princesa Diana. Graças à sua base emocional, o evento está agora vinculado à sua memória com o que você estava fazendo no momento em que o ouviu.


Qual a lembrança mais vivida do seu passado? Se a primeira coisa que vier em sua mente for a memória de uma experiência ruim, não se sinta acanhado. Estudos mostram que temos mais facilidade de lembrar de coisas ruins do que boas. Isso porque, como explicamos anteriormente, nosso cérebro processa essa informação como muito mais importante para nossa sobrevivência do que uma memória agradável. 

Alguns psicólogos enxergam um grande valor adaptativo para esses eventos negativos. Eles defendem que as informações obtidas dessas situações aumentam nossa resiliência e nos ajudam a lidar melhor com eventos semelhantes no futuro. Porém, apesar de servirem como fonte de aprendizado, memórias traumáticas podem sair do controle e desencadear transtornos psicológicos importantes, como o Transtorno de Estresse Pós-Traumático, também chamado de TEPT. 

        


Estudos mostram que esse tipo de memória é processado de forma diferente pelo cérebro. Exames cerebrais em 28 pessoas com TEPT mostraram que, ao ouvirem memórias neutras ou tristes, a região do hipocampo, que organiza e contextualiza essas lembranças, estava fortemente envolvida. Porém, ao ouvirem fatos traumáticos, essa região cerebral não era acionada, sugerindo que “as memórias traumáticas não são experimentadas como memórias, mas como fragmentos de eventos anteriores, subjugando o momento presente”

Elas acionam uma região do cérebro ligada a estados de introspecção e devaneios, o que mostra que elas podem, de fato, levar a pessoa a experimentá-la como algo do presente e não do passado. Elas não são lembradas, mas revividas. Pesquisadores sugerem que a prática da atenção plena pode ser um grande aliado para trabalhar com memórias traumáticas, pois elas ativam as partes do cérebro que fornecem contexto. E como comentamos nessa matéria, a meditação é também uma forte aliada na melhoria desse mecanismo.
O que dizem por aí
Sou quem sou porque me lembro quem sou


                     

 
A memória é o que nos permite ser quem somos. Ela nos define, nos identifica, escreve nossa biografia através de nossas lembranças. Registrar nossa memória nos permite transcender o tempo e permanecer no eterno. Como colocou Ewald Hering, “a memória recolhe os incontáveis fenômenos de nossa existência em um todo unitário; não fosse a força unificadora da memória, nossa consciência se estilhaçaria em tantos fragmentos quantos os segundos já vividos".

Ainda, nossa identidade é formada não apenas por nossas lembranças pessoais, mas é também influenciada pelas lembranças coletivas da comunidade a que pertencemos. Diferente da história, que se refere a fatos e eventos registrados, a memória coletiva entrelaça histórias, valores e tradições, passadas de geração em geração, formando a identidade e consciência de um povo. Ela é dinâmica, adaptando-se e evoluindo à medida que a sociedade se transforma. 

Em essência, a memória coletiva é o legado vivo de uma cultura, crucial para a compreensão e preservação de sua identidade única. Ela molda nossa compreensão do mundo e nosso lugar nele e se manifesta por meio de festivais, monumentos, espaços geográficos, canções e rituais, formando seu patrimônio material e imaterial. É o tecido que une a comunidade e fornece uma base sólida para construir o futuro, enquanto se mantém enraizada em suas tradições. 

Dentre as razões para sua preservação, citamos aqui uma lista publicada pela Aqua Tecnologia: 

1. Identidade e Continuidade:  
A memória fornece uma narrativa contínua, ligando gerações passadas, presentes e futuras. Ela ajuda as pessoas a entenderem suas raízes, tradições e valores, formando a base da identidade coletiva.

2. Lições do Passado:  
Relembrar eventos passados, sejam eles triunfos ou tragédias, permite que uma sociedade reflita e aprenda com eles. Ao lembrar os erros do passado, por exemplo, uma sociedade pode evitar repeti-los no futuro.

3. Coesão Social:  
Memórias compartilhadas, celebradas em feriados, cerimônias e rituais, unem as pessoas. Elas fornecem um senso de pertencimento e propósito, fortalecendo os laços comunitários.

4. Inspiração e Resiliência:  
Histórias de superação, coragem e inovação servem como fonte de inspiração. Elas lembram as pessoas do que é possível alcançar e ajudam a nutrir a resiliência em tempos difíceis.

5. Preservação da Cultura:  
A memória garante que artes, linguagens, rituais e tradições sejam passados de uma geração para outra, mantendo viva a rica tapeçaria cultural de uma sociedade.

6. Entendimento e Empatia:  
Ao lembrar e refletir sobre eventos históricos, as pessoas podem desenvolver uma compreensão mais profunda e empatia por diferentes grupos e culturas, promovendo a tolerância e a coexistência pacífica.

7. Orientação para o Futuro:  
Ao compreender de onde viemos, podemos ter uma visão mais clara de para onde queremos ir. A memória fornece contexto e perspectiva, ajudando a moldar decisões e aspirações futuras.
Lembrar para não esquecer

                     
   

Antes que pudéssemos escrever nossas histórias, elas foram cantadas e recitadas. Foram transformadas em poemas e passadas de geração em geração pela oralidade. E essa tradição oral dependia da memória. Sem nossa capacidade de memorização, a espécie humana não teria chegado aonde chegou.

Ainda que o fator envelhecimento seja o principal responsável pelo declínio dessa capacidade cognitiva, o estresse, o cansaço, insônia, problemas psíquicos e até infecções (como a covid-19) podem afetar nossa memória, causando impactos significativos em nossa saúde como um todo, como comentamos nessa matéria

Assim, cuidar desse bem precioso é essencial para uma vida mais plena e ampliada, somando a ela memórias inesquecíveis. É poder estar presente por muito tempo ao saber-se quem é. E, para que você possa cultivá-la e treiná-la, deixamos aqui algumas dicas valiosas que compartilhamos nessa matéria

    
Quer saber mais? Separamos alguns conteúdos que podem te ajudar
a fazer um mergulho ainda mais profundo, não deixe de conferir!

Podcast: Palácio da memória – Radio Novelo 



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