Para Inspirar
Assim como o Caminho de Abraão trilhado por Ale Edelstein, muitas pessoas buscam em longas caminhadas, reencontrar sua fé e a si mesmo
3 de Dezembro de 2020
Na terceira temporada do Podcast Plenae - Histórias Para Refletir, conhecemos a história do cantor litúrgico Ale Edelstein. Utilizando um sapato como metáfora, ele nos conta como sentia que usava o mesmo calçado há tempos, e que passou a sentir necessidade de sentir o chão na sola dos pés.
Apesar de simbólico, Ale de fato saiu caminhando “por aí”, mais especificamente, trilhou o Caminho de Abraão, que tem como principal missão ser uma jornada de pacificação e paz entre diferenças crenças.
A trilha, que possui cerca de 2 mil quilômetros, busca atravessar os locais por onde, segundo a história conta, o personagem bíblico Abraão percorreu a mando de Deus. Hoje em dia, esse trajeto corresponde aos territórios de países como Túrquia e Israel.
Essa é uma das muitas opções de peregrinações que existem, sendo uma das principais e mais famosas - como aponta este site . Importante reforçar que a peregrinar não se resume somente ao fato de caminhar, mas diz respeito a uma jornada maior, que pode ser feita individualmente ou em grupo, tendo sempre um objetivo espiritual e de autoconhecimento envolvido.
O destino final das peregrinações também são específicos. Portanto, além da busca pela sua essência que a trajetória reserva, o peregrino recebe como recompensa final o prazer de ter chegado em um local considerado sagrado do ponto de vista religioso e histórico - seja por já ter abrigado manifestações sobrenaturais, acontecimentos importantes ou somente a passagem de um ser superior.
Marco Antonio dos Reis Serra foi um dos milhares de peregrinos que atravessam longas distâncias em busca de um sentido maior para a vida. Depois de dedicar toda a sua vida trabalhando no mercado financeiro, ao completar 50 anos, ele se viu em busca de mais.
Do momento da decisão até o da viagem foram apenas 2 meses. O gatilho para essa decisão foi a volta de uma viagem de trabalho. Enquanto lia dentro do avião, se deparou com um trecho que o provocou de tal maneira que, desde então, nunca mais se sentiu o mesmo.
Passagens compradas, uma mala e uma bota, e isso foi o bastante para que ele embarcasse, pela primeira vez, sem nenhum planejamento. “Pouca gente sabe disso, mas o Caminho de Santiago tem centenas de rotas. Mas o caminho francês é o caminho mais tradicional e foi o que eu fiz, o trecho de 800 km que começa na França e termina no último ponto da Espanha”. Confira o relato completo a seguir.
“Fiz o que eles chamam de caminho francês, em Santiago da Compostela, que é o caminho mais tradicional desse tipo de peregrinação. Mas ele não é um caminho único e nem se sabe se foi o primeiro, porque o Caminho de Santiago é milenar, há muitos anos percorrem essa jornada. Ele é basicamente um caminho que tem aproximadamente 800 km de extensão, liga uma cidade que chama Saint Jean Pied de Port até Santiago de Compostela, na Espanha.
Antigamente as pessoas faziam esse trajeto somente por questões religiosas católicas, mas eu fiz mais pelo isolamento, pela experiência. Santiago foi o primeiro apóstolo de cristo a morrer após a crucificação, por continuar a pregar a palavra de Cristo - proibida na época. Depois, os restos mortais dele, no ano de 42 D.c, foram roubados por fiéis que levaram ele da região onde hoje é a Palestina até Santiago de Compostela. Os restos mortais dele, em teoria, estão lá na catedral. Existem rotas que vem desde Istambul também, existem muitas rotas. Chama Compostela porque tem a ver com a descoberta de que esses restos mortais estavam lá e foram descobertos por jesuítas por meio de uma indicação luminosa de estrelas que indicavam que ali estariam esses os restos. A partir de então, isso virou uma peregrinação.
Muita gente pergunta porque foi de Palestina até lá. A explicação lógica é que depois de Santiago de Compostela, se você andar mais uns 120 km, você chega em um lugar chamado Finisterra, que é o ponto mais ao Ocidente da Europa, e antigamente se acreditava que a Terra acabava lá.
A questão toda desse caminho é que ele te expõe a um isolamento, uma meditação. Há ainda quem faça por homenagem a alguém. Não envolve se cercar de luxo, mas sim de simplicidade e introspecção. Tem alguns lugares que são até credenciados do Caminho de Santiago. Você leva um passaporte do peregrino e vai carimbando, e quando você chega no lugar final, eles te dão uma carta escrita com fio de ouro, dependendo da sua rota eles colocam quanto tempo você caminhou e tudo mais. Você pouco passa em cidades grandes, e mesmo as grandes, são bem pequenas, tipo Jundiaí, em São Paulo. Visitei cidades que tinham 28 habitantes, são lugares de cultura mais bucólicos, provincianos e rurais. Depois de um tempo nesse caminho, você acaba até se sentindo meio mal quando entra em cidade grande, é um turismo que você percebe que é tóxico, feio, agitado, psicótico de uma certa forma.
A maioria das pessoas viajam sozinhas. O peregrino costuma acordar bem cedo, às vezes antes do sol nascer, e passa o dia caminhando. Chega no ponto de parada, dorme e caminha mais no dia seguinte. Você usa esse caminhar como um processo de pensar, conversar consigo mesmo. E aí, quando você chega nos lugares de parada, conversa com as pessoas, conhece gente do mundo todo, divide experiências. Caminhei com gente que estava já na décima vez fazendo esse caminho, conheci uma mulher belga de 91 anos que andava quilômetros a fio, tranquilamente. Caminhei com uma japonesa que fazia em homenagem ao seu marido falecido e fez 40km em um só dia. Vi cadeirantes fazendo também. É um sentimento de colaboração e solidariedade que não existe, todos querem te ajudar de alguma forma.
Eu estava fazendo 50 anos, não me preparei muito, decidi 2 meses antes de ir. Eu comprei uma passagem de avião, uma mochila e uma bota, nem sabia onde ia dormir. Eu fui na experiência de não ter planos, no desconhecido, de não saber onde eu ia estar no dia seguinte. E isso foi uma riqueza infinita pra mim, porque na vida da sociedade moderna, tudo é muito planejado, você tem que se planejar, ver o que vc vai fazer no ano seguinte, seu plano de carreira, de férias. E uma das coisas que percebi é que entrar no desconhecido e estar fragilizado nisso era uma força e eu precisava disso.
Quando eu cheguei lá, desci de um ônibus, tava chovendo, coloquei uma jaqueta e já sai andando até os pirineus (uma cadeia montanhosa), só parei quando cheguei no albergue onde dormi aquela noite.
No albergue é legal porque sempre tem uma confraternização. E aí me perguntaram o que trouxe cada um pro Caminho de Santiago. E a minha resposta, que foi de mais da metade também, foi “eu ainda nao sei”. Então é uma coisa que até faz parte do espírito do caminho. Hoje enxergo melhor, mas não era claro pra mim quando eu estava lá. E aí você percebe que tinham coisas que você não sabia, que eram um chamado interno, e de repente você consegue enxergar.
Sempre fui do mercado financeiro, da lógica, do planejamento, e eu precisava jogar fora tudo isso, viver uma vida onde nem tudo é racional, ouvir mais o coração. Eu achava que eu precisava me reenergizar, sair da rotina, despertar uma consciência sem as distrações hiperativas de uma viagem repleta de roteiros milimetricamente planejados.
É um processo de transcendência, você ri sozinho, chora bastante, é um caminho interno muito profundo. Você tem que confiar no universo, e ele joga a favor, não adianta se desesperar quando você está sozinho, até porque não se tem nem pra quem reclamar, então você engole a reclamação e isso te dá muita força.
Há, evidentemente, as dificuldades físicas e psicológicas. Eu não tive muita dificuldade física porque pratico bastante esporte, mas é comum as pessoas todas terem bolhas no pé. Terminei o caminho em 23 dias, o normal é terminar em 30, 31. Mas o maior problema é o psicológico, estar longe da família, amigos, caminhando e se punindo por questões do passado, é uma limpeza que se faz em um processo de silêncio e autoconhecimento muito difícil e doloroso, mas necessário. Fazer isso por um dia ou dois é difícil, mas por 30 dias… Na primeira semana ou nos primeiros 10 dias, você enfrenta uma fase de provação psicológica.
Mas eu falo para todo mundo: não dá pra morrer sem fazer. Ainda pretendo fazer várias vezes, hoje eu olho penso que o Caminho de Santiago é uma experiência inesquecível, mas existem ainda muitos outros que eu quero fazer. Eu não gostaria de dizer o que eu recomendo ou não, isso faz parte da humildade que conquistei, não me vejo na posição de ensinar alguém, porque são experiências pessoais, completamente individuais e intransferíveis. Um pouco do aprendizado é saber que os planejamentos muitas vezes podem dar errado, como tudo na vida. E acredite: caminho te impacta aos poucos, até hoje estou assimilando ou sendo impactado com coisas que não tinha percebido até então. É muito forte”
Para Inspirar
A sétima temporada do Podcast Plenae está no ar! Confira a história da empresária Deborah Telesio. Aperte o play e inspire-se!
20 de Março de 2022
Leia a transcrição completa do episódio abaixo:
[trilha sonora]
Deborah Telesio: Você já teve a sensação de ter sido protegido? De que algo ruim podia ter acontecido, um tropeço, um acidente, mas que de forma quase inexplicável não foi desta vez? Quantas vezes o “quase” aconteceu? Será que é por acaso? Como e porque vivenciamos o “quase”? Quais as mensagens que estes eventos nos trazem? Assim como ocorrem com tantas pessoas em diferentes situações, eu vivi uma experiência extrema de quase morte, e não tive dúvidas de que o que me salvou foi algo maior. Na minha intuição, eu chamo de Divino ou de anjos.
Dia 26 de dezembro é a data do meu segundo aniversário. Eu sou sobrevivente do Tsunami que aconteceu na Ásia em 2004, depois de um terremoto subaquático de 9 pontos na escala Richter, que tirou a vida de mais de 250 mil pessoas. Algumas delas, lamentavelmente, bem ao meu lado.
[trilha sonora]
Geyze Diniz: Todos nós já passamos por avalanches no decorrer da vida. Mas com Deborah Telesio, essa expressão foi vivida na pele em 2004. Deborah estava fazendo snorkeling na Tailândia, quando o Tsunami atingiu ela no meio do mar. Ao contrário da maioria das pessoas ao seu redor, Débora sobreviveu, e só se deu conta da dimensão da tragédia quando foi levada de volta ao continente.
Em solo firme, a executiva teria outra missão: encontrar sua amiga que ficou na praia quando a onda veio. Debora conta que, depois dessa experiência, assinou um novo contrato com a vida. Conheça a história de Deborah Telesio e sua conexão com o aqui e o agora. Ouça, no final do episódio, as reflexões do especialista em desenvolvimento humano Marc Kirst , para te ajudar a se conectar com a história e com você mesmo. Eu sou Geyze Diniz e esse é o podcast Plenae, ouça e reconecte-se.
[trilha sonora]
Deborah Telesio: Era uma viagem de férias com a minha melhor amiga, irmã de alma Marie, com quem eu já percorri vários cantos desse mundo. Eu, que sempre trabalhei como louca de executiva de multinacionais, e pra quem conhece este mundo sabe que é bem puxado, me dava sempre ao luxo de me aventurar pelo mundo, pra recobrar as energias e ampliar meus horizontes. Frequentemente com ela, com a Marie, uma amiga dessas que aquece o coração e já por mais de 30 anos. E com quem eu compartilho dessa sede de conhecer e de viver o novo.
Pra nós, quando a gente viaja, vale a cultura do lugar, vale os sabores, os cheiros, as comidas, as paisagens, as pessoas, seus hábitos e suas crenças.
[trilha sonora]
Chegando em Bangcoc, fomos surpreendidas ao ver um Beit Chabad, bem em frente ao nosso hotel. Beit Chabad é uma entidade judaica presente em muitos países, mas eu nunca esperaria encontrar um lá. Era época de Chanukah, a festa das luzes e dos milagres. Durante 8 dias, os judeus acendem velas para celebrar a vitória da luz sobre a escuridão. Eu e a Marie somos judias. Quando eu cheguei lá, eu falei pra ela: “Vamos acender as velas de Chanukah!”. Atravessamos a rua e fomos acender as nossas velas. As velas que celebram o milagre. A gente ainda nem sabia o quanto precisaríamos de um grande milagre nos próximos dias.
A viagem seguiu bem, super interessante essa parte do mundo. Pudemos testemunhar as várias crenças que permeiam aquele lugar. Budistas na Tailândia, hinduístas em Bali, a coexistência de todas as religiões em Cingapura. Fomos aos templos budistas, fizemos oferendas, assistimos a rituais hinduístas que nunca tínhamos visto. Já no final da viagem, estávamos passando alguns dias no sul da Tailândia, onde há ilhas de beleza incomparável. O mar é super calmo e as pessoas são gentis.
Naquele dia, eu acordei sentindo um leve tremor na minha cama. Ela sentiu também. Era suave, nem demos muita bola. Mal sabia que esse era o tal do terremoto, que viria a causar tanta devastação.
[trilha sonora]
Marie não estava se sentindo muito bem neste dia e queria ficar na praia, quieta. E diferente de todos os outros dias, nesse, decidimos fazer um rápido programa separadas uma da outra. Eu queria aproveitar meu último dia naquele paraíso e decidi pegar um barquinho
pra fazer snorkeling. Fomos procurar um barqueiro na beira do mar pra me levar a um ponto de snorkeling bem conhecido por lá. Um cara jovem se ofereceu, mas eu não quis. Preferi um velhinho, porque eu me sentia mais segura com ele, eu de biquíni, sozinha no meio do mar. Até hoje eu penso naquele jovem. Será que eu salvei a vida dele, quando escolhi o homem mais velho pra me levar? Não sei, nunca vou saber.
Eu dei o meu passaporte pra Marie e me despedi, e ela tirou uma foto de mim, no barco. O barqueiro me levou a um lugar com umas rochas vulcânicas gigantescas no meio do mar. Tinha vários barcos por lá e um monte de gente, talvez umas 30 pessoas. O barqueiro disse que ia me esperar num canto e eu fui nadar pra bem perto da pedra vulcânica, onde havia vários corais e peixes. Eu estava de máscara, de snorkel, e tinha comigo uma máquina fotográfica daquelas descartáveis. Era um peixinho colorido a minha última lembrança, até que eu tenho um apagão, uma amnésia. Eu não tenho a menor ideia do que aconteceu naquele momento, nenhuma lembrança.
Num intervalo de tempo que eu não sei quanto durou, aconteceu algo tão grande que arrancou a minha máscara, arrancou o snorkel, a câmera da minha mão. Quando eu me dei conta, eu tava com a cabeça fora da água, meio zonza, tentando entender o que estava acontecendo.
Olhei em volta e percebi que eu não tinha nem saído do lugar, que eu continuava na mesma posição em relação à tal da pedra vulcânica. Mas as pessoas que estavam lá já não estavam mais.
[trilha sonora]
Olhei pra frente e, aí, eu vi uma parede de água vindo na minha direção. Não era uma onda grande normal. Era algo muito assustador, nem sei precisar a altura. Nesse momento eu entendi que ia morrer. Que eu morreria e que ninguém jamais saberia de mim. Que a minha vida iria terminar e não tinha o menor sentido pra mim. Eu queria viver. Fiquei inconformada, eu não queria morrer.
A onda chegou e não quebrou. Eu pude passar por cima dela, sem que nada me acontecesse. Eu consegui me estabilizar de novo, até que uma terceira onda gigante veio na minha direção. Só que essa, ao contrário da anterior, já tava quase quebrando. Não ia dar tempo de eu passar por cima dela. Não ia dar tempo de eu furar a onda. Não havia nada, absolutamente nada que eu pudesse fazer. Era eu e a fúria do mar.
[trilha sonora]
A onda, de fato, quebrou em cima de mim. E eu me lembro da sensação exata de estar embaixo da água, naquele rebuliço. Enquanto eu era arremessada de um lado pro outro, eu lembrei de várias coisas. Lembrei de um sonho de infância em que eu era engolida por uma onda. Lembrei da minha avó, que tinha morrido dois meses antes. Lembrei do meu pai, que já era falecido.
Quando o fôlego acabou, eu comecei a respirar água e tive um pensamento meio macabro: “Ah, não é tão ruim morrer afogada”.
[trilha sonora]
Eu acho que, por 1 milésimo de segundo, eu não desmaiei. De repente, uma luz iluminou as minhas pálpebras e eu tive uma sensação de que eu tava sendo puxada pra cima. Quando percebi, eu tava com a cabeça fora da água, eu estava respirando, eu tava viva.
Eu senti nitidamente que tinha uma coisa ali muito maior do que eu. Não sei se foi a minha avó que veio me salvar, se foram anjos, se foi Deus. Mas eu não tenho dúvida de que algo grande, divino, cuidou pra que eu tivesse exatamente naquele lugar, nem um pouquinho mais pra esquerda, nem um pouquinho mais pra direita. A primeira frase que veio na minha cabeça foi: “eu fui salva por um colchão de anjos”. Colchão porque eu sabia que os corais estavam muito perto, que a pedra gigante estava a poucos metros de mim.
Eu olhei à minha volta e vi o mar imundo, cheio de sujeira. Consegui nadar até um pedaço de barco que tava virado, subi nele e senti uma fraqueza incrível. Estranhamente, eu não tinha nenhum arranhão. Eu não bati nos corais, eu não bati contra a pedra, eu não fui arrastada pra outro lugar. Eu tava sim exausta, mas inteira.
[trilha sonora]
Um cara se aproximou de mim, segurando uma criança e perguntou se eu tava bem e se eu podia segurar aquela criança. A menina devia ter uns 4 anos. Toda raladinha e falava sem parar em um idioma que eu não entendia. As únicas palavras que eu identifiquei foram “mami” e “papi”. Eu segurei aquela menina contra o meu corpo e fiquei falando pra ela em português mesmo: “Calma, vai ficar tudo bem”. De repente, uma mulher subiu naquela pedra gigante e gritou o nome da menina: Nicole. Nunca mais esqueci. Era a mãe dela. Graças a Deus!
Do nada, apareceu um barquinho de madeira com um casal e um barqueiro pra nos resgatar. Nem sei de onde esse barco surgiu. Talvez ele estivesse mais pra dentro do mar, antes da onda arrebentar. Todos os outros barcos já não estavam mais lá, inclusive o que me trouxe. Fico pensando se o barqueiro conseguiu ligar o motor e fugir a tempo.
O barco resgatou os poucos sobreviventes: eu, a Nicole, a mãe da Nicole, o homem que a salvou. Tinha também um cara em estado de choque, dizendo que a namorada dele não tinha sobrevivido. O barco também levou o corpo de um tailandês e uma moça super jovem, que alguém tentou reanimar no barco. Eu, por outro lado, estava passando muito mal e vomitando, porque realmente eu tinha me afogado. Até que alguém gritou: “Vamos que vem mais onda!”
Aquele foi o momento em que eu me senti mais forte na minha vida. Eu pensei com uma convicção que eu nunca mais senti: “Hoje, eu não morro mais. Hoje eu já morri e nada mais vai me acontecer”.
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Lembrei de novo da minha avó, que era uma mulher forte que enfrentou duas guerras mundiais, e que sempre me dizia: “Tudo o que você sabe ninguém tira de você”. Então eu ia me virar, na verdade eu acho que ela até estava lá do meu lado naquele momento, emprestando a força dela pra mim. Eu sabia que eu tinha meus recursos, meu aprendizado da vida e eu pensava: “A única coisa que importa agora é encontrar a Marie”.
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Só que o barco não me levou pra ilha onde a Marie tava.
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Eles foram para uma cidade chamada Krab, de onde saem todos os barcos em direção às ilhas. Quando a gente chegou na costa, eu entendi que a coisa era muito séria. Tava tudo destruído, os barcos um em cima do outro. Começaram a gritar de novo: “Corre, vem mais onda!”. Todos correram e eu também corri, corri, corri, junto com um monte de gente. Fui dar numa estrada, nem lembro bem como. Uma família se aproximou e me ofereceu para que eu entrasse no carro deles. Ela com um lenço na cabeça, árabes. As crianças no carro ficaram em polvorosa quando eu disse, meio zonza, que eu era do Brasil. Começaram a dizer “Ronaldo, Cafú”. Essa mulher, ou, esse anjo, me perguntou como poderia me ajudar, eu pedi que ela me levasse de volta pra ilha onde a Marie estava e ela disse que não tinha como, claro que não.
Eu, executiva, pensei super logicamente e falei: “Me leva pra um centro de informação turística, porque lá eu sei que eu vou poder falar inglês, que vão me entender, vai ter telefone, vai ter fax, vai ter tudo o que eu preciso”. Essa família me levou, mas antes parou num posto de gasolina, onde tinha um chuveiro. Foi maravilhoso tirar aquela sujeira de mim. Me deram as roupas do filho, um menino de uns 10 anos. Quando eu saí vestida com as roupas dele, ele viu os meus pés descalços, tirou os chinelos dele e me deu. Como que eu posso agradecer essas pessoas?
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No centro de informação turística, eu consegui avisar a minha mãe que tava tudo bem e pedi pra ela repassar a informação pro filho da Marie, caso ela ligasse. A gerente desse centro arrumou um hotel pra eu dormir, me levou para uma padaria, me fez comprar um pão, uma coca cola e me deu uns 2 dólares.
Eu só soube da dimensão da tragédia quando liguei a TV do hotel e vi as imagens das ondas gigantes e da destruição em tantos países. Até então, eu nem sabia o que era um tsunami. A mesma mulher que se sentiu tão forte naquele barco, era agora uma pequena, frágil, assustada. Eu nunca me senti tão sozinha. Mas ainda assim, eu tinha certeza de que tudo ia dar certo no final.
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Passei mais dois dias andando por essa cidade, eu, a sacolinha do pão que eu não conseguia largar, por medo de não ter mais o que comer, vestindo as roupas do menino. Visitei as escolas que receberam os resgatados, os hospitais, procurava o nome da minha amiga nas listas de sobreviventes. Encontrei mais incontáveis solidários pelo caminho, muitos deles em situação parecida com a minha, procurando sobreviventes, tentando contato com pessoas, ou pior, pessoas que tinham perdido entes queridos. E a Marie?
Liguei na embaixada brasileira, mas eles também não tinham notícias dela. Ela, por sua vez, demorou 3 dias pra fazer contato com a família dela ou com qualquer outra pessoa. Ela achava que eu tava morta, ela não tinha coragem de dar essa notícia pra ninguém, e por isso preferiu o silêncio. A experiência dela foi até mais traumática que a minha. Ela viu o mar recuar e as pessoas caminharem em direção à água, com curiosidade. A Marie, por outro lado, foi pra trás, o que salvou a vida dela. Ela se agarrou em uma árvore pra não ser arrastada pelas ondas, subiu morros e demorou mais de um dia pra ser resgatada.
Enquanto esperava o resgate, ela se juntou a um grupo de jovens israelenses e foi literalmente carregada por eles. Esses jovens levaram a Marie de volta a Bangcoc, justamente pro mesmo Beit Chabad onde a gente acendeu as velas de Chanukah. Foi lá que a Marie acessou a internet, soube que eu estava viva e decidiu entrar em contato com a família.
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Nós nos reencontramos em Bangcoc. Choramos, nos abraçamos, falamos horas sem parar, ligamos pras nossas famílias. No mesmo Beit Chabad, recebemos mais um presente. De não apenas poder conhecer aqueles meninos geniais que salvaram minha amiga, mas também de sermos abençoadas com uma cerimônia de renascimento. E porque eu passei por isso? Por que eu sobrevivi e aqueles 250 mil outros não tiveram a mesma sorte? Essa pergunta permanece comigo, mas depois de 17 anos eu acho que tem alguns aprendizados que sim me transformaram. Os momentos que vivi naquele barco que me resgatou, a força que eu ganhei naquele momento e acreditar. Saber que sim, conto com aquilo que aprendi, que posso aplicar, que nenhum aprendizado ou experiência é em vão, como disse a minha avó.
Mas acreditar que as coisas podem dar certo, de que há algo grande que nos cuida, isso eu levo pra mim em todos os meus dias. E como não ser grata. Quanto vale poder comemorar meu segundo aniversário com a minha amiga, que hoje, aliás, é a madrinha da minha filha Nina? Essa minha menina Nina, que nasceu em 2010, deve ter sido a razão para eu ter sobrevivido. Será?
Quanto vale poder juntar as nossas famílias, que se tornou agora uma família estendida e celebrar as festas judaicas juntos, acender as velas de Chanukah todos os anos e agradecer por tantos milagres que vivenciamos todos os dias? E como retribuir?
Eu sempre acho que não é suficiente.
Hoje, eu sou CEO de uma empresa de equipamentos de radioterapia para tratamento oncológico. Diante de tamanha vulnerabilidade, todos nós, seres humanos, vivemos com a pandemia do coronavirus, esse tsunami que está passando na vida de todo mundo. E diante da minha responsabilidade como líder, como eu poderia retribuir o cuidado que eu recebi na minha vida?
Essa pergunta, esse compromisso, está comigo todos os dias. E o agradecimento de ter saúde, de ter podido cuidar da empresa, da equipe, de tentar ajudar as pessoas que estão vivendo tempos tão difíceis. E sim, com atitude de que vai dar certo. Importar-se genuinamente com o outro, ser solidário, como tantos foram comigo no momento mais vulnerável da minha vida. E, principalmente, acreditar. Chame-se anjos, chame-se Deus, chama-se Santos, Buda, Shiva, não importa, ter fé em você e nessa força. Por que tem algo grande, maior, que cuida, e temos que nos dar conta, agradecer e fazer a nossa parte.
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Marc Kirst: Como teu espírito reagiu ao ouvir esse relato tão raro e impactante? No dia em que Deborah sobreviveu sem nenhum arranhão, mais de 220 mil pessoas faleceram no Tsunami mais devastador da história. Se ouvirmos, sem pensar em nós mesmos, talvez deixamos escapar uma percepção transformadora. Se você acabou de ouvir sobre esta experiência, significa que você também é sobrevivente. Nem sempre de formas tão explícitas, mas eu te pergunto: quantas vezes será que o acaso do xadrez da vida te salvou de uma tragédia e você nem percebeu? Um segundo a mais ou a menos no momento em que saímos de casa. Uma fala ou silêncio que influenciou alguém que amamos a pegar a direita em vez da esquerda. Uma viagem que precisou ser cancelada e no momento ficamos decepcionados.
O nosso hábito de controlar e interpretar nos leva a categorizar tudo o que nos acontece como bom ou ruim. Mas na ignorância do que o futuro nos reserva, talvez valha a pena abdicar das avaliações da nossa mente para sentir um novo nível de gratidão. O desapego do que achamos que precisa acontecer para aceitar o que está acontecendo. O olhar sobre a nossa caminhada não depende só dos eventos espetaculares e inesquecíveis, mas da consciência, do olhar e da perspectiva que escolhemos a cada dia que temos o privilégio de respirar mais uma vez. Qual é a experiência que você está vivendo agora? Te convidamos a aproveitá-la, qualquer que seja.
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Geyze Diniz: Nossas histórias não acabam por aqui. Confira mais dos nossos conteúdos em plenae.com e em nosso perfil no Instagram @portalplenae.
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