Para Inspirar
Inspire-se com o episódio de Mente da décima oitava temporada do Podcast Plenae - Histórias para Refletir!
1 de Dezembro de 2024
[trilha sonora]
Geyze Diniz: Carolina
Farani desenvolveu transtornos alimentares na adolescência que foram
desencadeados pelo bullying que sofria na escola. O tratamento foi longo, mas
Carolina conseguiu com o apoio da família e acompanhamento médico recuperar não
só sua saúde, como sua identidade, sua autoestima e a vontade de sonhar. Eu sou
Geyze Diniz e esse é o Podcast Plenae. Ouça e reconecte-se.
[trilha sonora]
Carolina Farani: Eu me mudei de Salvador pra Santos,
no litoral de São Paulo, com 12 anos. Quando meu pai me contou que tinha
recebido uma proposta de trabalho, eu senti medo e euforia. Era um mix de
sentimentos, de querer e ao mesmo tempo de não querer ir pra outro estado. Por
um lado, eu sabia que ia sentir saudades das minhas amigas. Mas por outro, era
legal a ideia de conhecer um lugar diferente e fazer novas amizades.
Só que no primeiro dia de aula eu já percebi que não ia ser
fácil me enturmar. Assim que eu abri a boca pra falar o meu nome, eu senti o
preconceito. Carolina. Mas como eu falava na época: ‘Carolina’. Em quatro
sílabas, meus colegas perceberam que eu era nordestina. Naquela época, começo
dos anos 2000, ninguém falava em bullying, muito menos em xenofobia. Eu nem
fazia ideia que essas palavras existiam. Mas descobri na pele o significado
delas.
[trilha sonora]
Eu não podia abrir a boca, que alguém imitava o meu sotaque.
Se falavam comigo, era tipo assim: “Ôxe, mainha”, “Vixe, mainha”. Eu nunca nem
chamei minha mãe assim. Mas, pros alunos da classe, isso não tinha a menor
importância. Era tanta perseguição, que eu comecei a tentar mudar o jeito
de falar, treinando em casa olhando pro espelho. Não adiantou nada. A turma
pegou implicância comigo e eu fui acusada de roubar uma prova que sumiu. Até o
professor acreditou nesse boato, um absurdo.
Daí inventaram que eu tinha um
caso com um moço que trabalhava na escola. O motivo: ele era nordestino. Ele era o rapaz da
cantina que vendia o lanche. Mas, de repente, ele virou o meu namorado. A fake
news foi tão pesada, que a psicóloga da escola me aconselhou a parar de
frequentar a lanchonete. Um tempo depois, este moço foi demitido. Não sei
exatamente por quê.
Meu irmão, que é dois anos mais
velho do que eu, também passava pelo mesmo processo de adaptação na escola de
forma nada agradável. Ele se isolou, e demonstrou estar estressado e meus pais
focaram em ajudá-lo. Eu, por outro lado, percebendo a
preocupação deles, não quis amolá-los com o que eu sentia. Portanto, me fechei,
e comecei a descontar a tristeza na comida. Ganhei em torno de vinte quilos a
mais. Ou seja, além da minha origem, passaram a implicar com o meu corpo e com
a maneira que eu me vestia.
Eu comecei a ter muita vergonha de falar em sala,
minhas notas despencaram e começaram a me chamar de ignorante. O ataque agora
era falar que todo nordestino é burro. Chegou a um ponto em que eu não
tinha mais identidade. O meu apelido na turma passou a ser Ana ou Aninha, de
baiana, baianinha. Percebendo que eu era minoria e queria tanto pertencer ao
grupo, que eu aceitei ser chamada assim. Mesmo odiando.
[trilha sonora]
Quando eu completei 18 anos, eu fiz uma cirurgia de redução
das mamas, já que por conta do meu sobrepeso eu tinha muita dor nas costas. Na
consulta pré-operatória, o médico falou assim: “Olha, eu vou ser bem franco com
você. Você tem que emagrecer e tem que fazer ginástica, porque desse jeito o
seu fígado vai virar uma pasta”. A partir disso, comecei a me preocupar com
minha aparência e saúde.
Eu entrei na academia e comecei a excluir alguns alimentos
da minha dieta. Era tipo assim: feijão dá gases, então tira o feijão. Arroz tem
calorias, então corta o arroz. Depois tirei o pão, a carne, o leite, as frutas.
E assim foi até chegar ao extremo de passar cinco dias sem comer nada, só
bebendo litros e litros de água. Ao mesmo tempo, eu passava horas e horas na
academia, com um plástico filme enrolado na barriga, pra queimar mais gordura.
Coincidiu que, nessa época, eu acabei o Ensino Médio e
entrei na faculdade de propaganda e marketing. A minha vida melhorou um pouco,
porque pelo menos eu parei de ser perseguida. Eu tinha me tornado uma pessoa
retraída, cheia de traumas, mas consegui fazer amizades com um grupo de 9
meninas.
Só que nessa mesma época, os traumas que ficaram dentro de
mim, emergiram, trazendo a questão do ser aceita em um grupo. Eu encarei aquilo
como uma nova oportunidade de se refazer, porém eu não sabia lidar direito com
as pessoas – por conta das coisas que eu sofri. Foi no segundo ano de universidade que se via uma
modificação notória em minha aparência.
Minha pele era amarelada e meu cabelo
começou a cair e ficar ralo. Com 21 anos, eu cheguei a pesar 32 quilos. Mesmo assim, eu
tinha uma imagem distorcida e me enxergava gorda no espelho. Frequentava lojas
de roupas infantis, porque as de adulto não cabiam em mim. Teve um dia que eu coloquei uma saia e uma das colegas
percebendo minhas pernas muito finas, falou o seguinte: “Carol, você não tá
muito magrinha, não?”.
Eu neguei, disse que estava bem. Mas era mentira. Eu
estava mal para caramba. Eu sentia tanta tontura que às vezes eu saia da aula
porque não conseguia raciocinar. Eu cheguei a me perder no caminho da faculdade
pra casa, por causa da confusão mental. Teve um dia que as meninas
combinaram um café da manhã na república de uma delas, mas eu não fui. Eu menti
que me atrasei e só encontrei as meninas na aula.
Quando eu cheguei na
faculdade, uma delas, a Priscila, me falou: “Eu guardei um pedaço de bolo que
eu fiz especialmente pra você, Carol”. Aí ela me deu o tupperware na frente de
todo mundo. Eu agradeci, guardei o pote na mochila e fui pro banheiro. As 9
meninas foram atrás de mim e me prensaram naquele cubículo, perguntando porque
eu não comia. A Fernanda, que era a mais esquentada, falou na lata: “Qual o seu
problema, Carol? Você tá magra demais, não come nada. Você tem alguma doença?”.
Eu comecei a chorar e, pela primeira vez, falei que precisava de ajuda. Eu
expliquei que eu não sabia por que eu estava comendo tão pouco. Contei que me
achava gorda, que me sentia sempre cansada e que pensava em suicídio. As
meninas me aconselharam a falar a verdade pros meus pais, mas eu não falei
nada.
[trilha sonora]
Eu estava tão magra, que não tinha
força pra andar direito. Eu me lembro que uma vez fui pra um restaurante com a
minha família e me apoiei nos meus pais pra conseguir caminhar, tipo uma
bengala humana. Quando a gente entrou no restaurante, todo mundo olhou pra
gente. Meus pais ficaram super incomodados e meu irmão começou a gritar com uma
família que estava sentada numa mesa. Só anos depois eu descobri o que tinha
acontecido. Alguém dessa mesa aí comentou que eu tinha AIDS.
[trilha sonora]
A primeira pessoa a nomear a
minha doença foi uma professora da academia.
[trilha sonora]
Um dia ela me perguntou se eu estava me alimentando. Eu respondi que estava um pouco inchada. Aí ela falou: “Você
se acha inchada?”. Eu respondi assim: “É, preciso emagrecer alguns quilos a
mais”. Nesse mesmo dia, ela ligou pra minha mãe e falou que eu tinha anorexia.
Eu estava assistindo TV, quando a minha
mãe entrou no meu quarto muito brava perguntando: “Você tá doente!? O que que
você tem?!”. Ela ficou horrorizada com o telefonema da professora e me proibiu
de frequentar a academia. A maior indignação era com ela mesma, por ser médica
e não ter percebido o que estava acontecendo comigo.
[trilha sonora]
A minha mãe me levou num
psiquiatra especializado em transtorno alimentar. Depois dessa primeira consulta
ela se ligou que a doença era grave e cuidou de mim durante o tratamento. Ela diminuiu
o ritmo de trabalho pra poder fazer refeições comigo, um hábito que a gente não
tinha mais. A reintrodução alimentar foi muito difícil. No começo, quando eu
tentava comer, passava mal e vomitava. Daí a nutróloga me ensinou a comer de
pouquinho. Uma colher de chá de arroz no almoço. Uma lasquinha de bife.
A nutróloga me explicou assim: “Sabe as crianças desnutridas da Somália? Você
sabia que não pode colocar alimento de uma vez que elas podem até morrer?
Então, não se sinta culpada se você não conseguir. Eu só quero que você tente e
me conte sobre tudo que você fizer. O negócio é tentar, Carol”.
O tratamento incluía duas
sessões por semana com uma psicóloga, mas no começo eu não falava nada. Eu só
fui começar a me soltar quando a psicóloga encontrou um jeito de se comunicar
comigo: pela escrita. Eu contei que gostava de escrever quando era criança e
daí ela me deu um caderno. Ela pediu pra eu escrever tudo que se passava pela
minha cabeça. Nos momentos em que eu tivesse mais desesperada, era pra
desabafar o que eu estava sentindo. Foi só nessa fase que eu comecei a elaborar o
estrago causado pelo preconceito na escola.
[trilha sonora]
Depois de dois anos de
tratamento, dando passos de formiguinha, meu irmão veio pra Santos e me
convidou pra almoçar no shopping com minha mãe. A gente foi a um restaurante
por quilo e eu pedi um prato feito, que tinha arroz, brócolis e carne. Eu
lembro que, quando coloquei o brócolis na boca, senti um gosto delicioso e a
minha pupila até dilatou. O meu irmão ficou tão emocionado de me ver comer que
levantou da mesa e foi pro banheiro chorar de felicidade. A gente até deu
risada quando ele falou: “Eu não acredito que eu tô chorando porque você comeu
um brócolis”.
[trilha sonora]
Esse dia foi muito marcante pra
mim. Foi uma prova pra mim mesma de que eu era capaz de comer. Quando eu voltei
a me alimentar, eu não recuperei só o peso e a saúde. Eu recuperei também a
minha identidade e a vontade de sonhar. A minha mãe viu que eu estava pesquisando
sobre a Austrália e me ofereceu um intercâmbio de um ano pra lá. Eu saí do
Brasil com o aval do psiquiatra.
Ele me deu alta, mas me fez um alerta enfático
quando me perguntou assim: “Você sabe que é uma doença crônica?”. Eu disse que
não, daí ele me explicou: “Se você sofrer algum gatilho, o transtorno alimentar
pode voltar”. Eu tive alguns momentos de compulsão e de bulimia na
Austrália. Mas eu não deixei a coisa desandar e não cheguei nem perto de ficar
tão magra e tão doente como eu fiquei em Santos.
É que eu tinha ganhado
ferramentas e autoconhecimento pra lidar com a minha condição. Depois que eu voltei pro Brasil, não tive mais recaídas. Nem
mesmo durante a gravidez. Hoje, eu tenho 39 anos e sigo uma alimentação
equilibrada. Pensamentos viciosos sobre o meu corpo não me atormentam mais. As
minhas preocupações agora são com a minha filha.
[trilha sonora]
Quando eu olho pra trás, eu sinto gratidão pelas
pessoas que me apoiaram e por cada pequena conquista que tive ao longo do
caminho. O processo foi doloroso, mas me fez renascer mais forte. Eu aprendi
que a minha batalha não era apenas contra a balança ou a comida, mas por um
amor próprio que eu precisava redescobrir. Esse amor me permitiu recuperar o
brilho nos olhos, o prazer de compartilhar uma refeição e a coragem de ser quem
sou. Mais do que vencer um transtorno alimentar, eu venci a guerra que eu travava
contra mim mesma.
Hoje, eu não busco um corpo perfeito, mas uma vida
equilibrada e feliz, em que me sinta bem na minha própria pele. Quando eu olho
para minha filha, eu vejo que todo o esforço valeu a pena – por mim e por ela.
Eu quero que ela cresça com a certeza de que o valor dela não está em um
número, mas na pessoa que ela é. E se minha história puder iluminar o caminho
de outras pessoas, então eu vou ter cumprido a minha missão. Porque a
verdadeira cura é viver sem medo, com amor e aceitação.
[trilha sonora]
Geyze Diniz: Nossas histórias não acabam por aqui. Confira mais dos nossos conteúdos
em plenae.com e em nosso perfil no Instagram @portalplenae.
[trilha sonora]
Para Inspirar
Conheça a história de como o foco venceu as drogas, na décima quarta temporada do Podcast Plenae.
10 de Dezembro de 2023
Leia a transcrição completa do episódio abaixo:
[trilha sonora]
Regis Adriano: Eu morei cinco anos na Cracolândia. O morador de rua sofre muitas violências gratuitas. A gente, como ser humano, olha o mundo com base no nosso umbigo e acha que a pessoa tá na rua porque quer. Esse é um olhar simplista. A gente não sabe nada sobre o outro, mas sabe julgar. Eu conheci gente que começou a usar crack porque foi abusada sexualmente, porque perdeu a casa e até porque ouviu dizer que era bom pra emagrecer.
[trilha sonora]
Geyze Diniz: Regis Adriano foi usuário de drogas por quase metade dos seus 49 anos. No auge da dependência química, fugiu de casa pra morar na Cracolândia, no centro de São Paulo. Ele se internou sete vezes pra se livrar do crack. Mas, a ferramenta que funcionou mesmo pro Regis abandonar as drogas foi o resgate do amor próprio, com a ajuda de uma antiga paixão: o skate. Eu sou Geyze Diniz e esse é o Podcast Plenae. Ouça e reconecte-se.
[trilha sonora]
Regis Adriano: Eu comecei a furtar com uns 8 anos de idade. Os primeiros furtos eram uns brinquedinhos que eu pegava na casa dos meus primos. Depois, eu passei a pegar dinheiro das crianças na escola. Quando a minha mãe descobria, ela me batia. Era assim que os pais educavam os filhos naquele tempo. Só que, quanto mais eu sofria agressões, mais danado eu ficava.
Não tinha nenhum criminoso na família. Eu que sou rebelde por natureza. Quando eu fiz 14 anos, o meu pai, que era metalúrgico, me colocou pra estudar no SENAI. Ele me arrumou também um emprego onde ele trabalhava. Era um programa parecido com o Jovem Aprendiz de hoje. Aí, eu comecei furtar dentro dessa empresa.
Um dia, eu cheguei pra trabalhar e vi uma viatura da polícia parada na frente da firma. Achei que tivessem descoberto os meus furtos, e eu mesmo me entreguei. Só que os policiais estavam lá por outro motivo. Ninguém sabia dos meus crimes. O meu contrato, lógico, foi encerrado. Em consideração ao meu pai, que trabalhou 36 anos nessa empresa, eu não fui demitido por justa causa.
[trilha sonora]
Foi mais ou menos nessa época que eu comecei a andar de skate. Não falei que eu era rebelde? Nos anos 80, o skate era pura rebeldia. Hoje é esporte olímpico, mas naquele tempo era uma parada marginalizada, sem regra. O skate era tão mal visto, que chegou até a ser proibido em São Paulo.
Quando eu vi aqueles caras com cabelo diferente e roupa colorida, eu quis ser um deles. A galera do skate pichava e eu comecei a pichar também. A minha mãe, claro, não gostou. Não gostou nada disso, nem das minhas novas amizades. Mas, se a minha mãe não gostava, aí é que eu gostava mais ainda.
[trilha sonora]
Um dia, a minha mãe desconfiou que eu estava usando droga. Ela falou brava: “Seu olho tá vermelho! Vem aqui, deixa eu cheirar a sua mão!”. Mas, eu nunca tinha usado nada. Só porque ela me desafiou, aí que eu quis usar mesmo. Quando eu encontrei um amigo do skate fumando um baseado, eu pedi um trago.
[trilha sonora]
O que eu não sabia é que eu tenho a predisposição genética pra ser adicto.
[trilha sonora]
Várias pessoas na minha família são alcoólatras. Eu gostei de maconha. Um ano depois, comecei usar a cocaína. Dois anos depois, já estava no crack. No terceiro ano, me envolvi com o tráfico.
[trilha sonora]
Eu achava que a vida dos traficantes era mais glamourosa que a minha. Eu pegava trem e entrava no trabalho às 7 da manhã. Enquanto isso, os traficantes andavam de carro e sempre tinham umas minas do lado. A minha mente de otário pensou assim: “Ah, eu já gosto de usar droga e lá tem um monte. E ainda vou ganhar dinheiro e andar com as minas”. No primeiro ano de tráfico, eu fui preso e condenado a 4 anos e seis meses de prisão. Eu fiquei 2 anos, 9 meses e 22 dias na cadeia.
O período na prisão foi tenebroso, porque, além de tudo, eu era usuário de crack. Na rua, eu fazia os meus corres e conseguia comprar droga. Na cadeia, era a minha família que tinha que pagar. O dependente químico põe a droga acima do risco de vida. Eu manipulava o medo da minha mãe e ela acabava pagando as dívidas que eu contraía dentro da prisão.
Eu sempre fui bagunceiro mas, depois da droga, a minha vida se desgovernou totalmente. Depois que eu saí da cadeia, a minha mãe tentou evitar que eu voltasse pro tráfico. Ela pediu pro dono de uma empresa de usinagem do meu bairro, em Caieiras, na Grande São Paulo, pra me dar um emprego. Ele me deu uma oportunidade e eu comecei a reconstruir a vida.
[trilha sonora]
Esse empresário decidiu terceirizar a firma e propôs que os funcionários comprassem as máquinas, num esquema de cooperativa. Eu topei. O problema é: eu ainda usava droga. Eu trabalhava de dia e usava crack à noite. A droga tomou conta da minha vida e eu perdi a empresa. Ah, eu perdi o skate também. Quando eu não tinha mais dinheiro, eu trocava um skate que valia mil reais por uma pedra de 5.
Mas, o pior foi perder a minha família. Nessa época, eu era casado e tinha três filhos. O ano em que eu fumei o primeiro baseado foi o ano que a minha primeira filha nasceu. Eu fui um pai totalmente ausente. Eu cheguei a trocar a bicicleta do meu sobrinho por droga. As crianças dormiam no escuro, porque eu gastei o dinheiro da luz em crack. A família do dependente sofre demais. Meus filhos hoje nem falam comigo.
[trilha sonora]
Eu decidi me internar pela primeira vez por vergonha dos meus erros. Quando eu saí da clínica, tive uma recaída. Me internei de novo e recaí de novo. Foram sete internações em oito anos. Em uma delas, eu fiquei dois anos morando na clínica. Não adiantou. Até que eu perdi a confiança em mim e desisti. E decidi morar na rua, comendo resto de comida que eu achava no lixo. Foram cinco anos vivendo na Cracolândia.
[trilha sonora]
Eu me virava com furtos, como de torneiras das casas, e trocando lixo reciclável por dinheiro. Um dia, passou por mim um cara fortão tentando me hostilizar. Era um careca, desses adeptos do movimento “white power”. Eu tive a ingenuidade de falar “bom dia”. Esse cara começou a me bater. Já fazia alguns dias que eu não comia. Eu não tive nem força pra correr. Fiquei ali apanhando.
[trilha sonora]
No centro de São Paulo, muita gente anda de skate. Teve um dia que eu tava pegando papelão e vi umas mil pessoas descendo a Rua da Consolação. Era um encontro em comemoração ao Dia Mundial do Skate. Eu chorei demais. Eu pensava: “Meu Deus do céu. O que que eu tô fazendo na minha vida?”.
[trilha sonora]
De vez em quando, eu pedia pra dar uma voltinha numa pista. Aí os moleques falavam: “Tiozão, você não anda de skate nada”. Aí, eu respondia: “Deixa eu andar pra você ver”. Aí eu dava um rolê e eles ficavam impressionados. Um deles me falou: “Ê tiozão, volta para casa, mano, você faz mó falta pro skate”. O outro me disse: “E parça, você tem uma energia daora”.
E frases assim me faziam chorar. O skate me lembrava da minha humanidade. Quando eu estava na rua, eu não me sentia mais um ser humano. Eu me sentia um bicho. Eu carregava muita culpa, muito trauma. Eu não conseguia ver o que eu tinha de bom. Só enxergava as partes ruins.
[trilha sonora]
A minha vida começou a mudar quando um prefeito de São Paulo implementou uma política pública para redução de danos. Era o programa “De braços abertos” do CAPS, Centros de Atenção Psicossocial, que acolhia moradores de rua e oferecia terapias. No SUS, eu fui recebido por um psicólogo muito amoroso e dedicado. Com a ajuda dele que eu comecei a sair do buraco. Comecei a ressignificar a minha vida.
O primeiro passo foi enxergar a minha responsabilidade por aquela situação de vida. Várias vezes eu falava: “Ah, o cara que me ofereceu a droga”. Eu punha a culpa no outro, não em mim. Aí o psicólogo me falou: “O que acontecer aqui é culpa sua”. Eu entendi que as drogas sempre vão existir no mundo. Depende de mim estender o braço pra pegar ou não.
Na terapia, eu passei a refletir sobre a minha relação com o crack. As pessoas usam drogas pra escapar de alguma dor. Comigo não foi diferente. Eu me lembrei que, na minha infância, eu me sentia rejeitado. Eu não tive contato com o meu pai biológico. Eu achava que o meu padrasto, que me criou e foi um bom pai pra mim, me rejeitava. Achava que a minha mãe gostava mais do meu irmão mais velho. Eu me sentia o patinho feio da família.
Eu era um cara cheio de complexos. O psicólogo me ajudou a resgatar o meu amor próprio. Ele dizia que eu não tinha que me importar com a opinião do outro sobre mim. O importante é como cada um se vê. Eu falava: “Eu sou feio, as pessoas não gostam de mim”. Ele dizia: “Essa não é uma situação permanente. Aprende a se cuidar, Regis. Eu sei que é difícil, mas se você aprender a se cuidar, sua vida vai ser uma outra. Olha pro seu passado e encontra onde você se perdeu”. Por causa de um ato de rebeldia contra a minha mãe, eu me perdi. Mas, isso não quer dizer que eu estou perdido para sempre.
Na terapia, eu entendi que eu sou um cara bom e comecei a me apropriar disso. Um dia, a polícia foi dispersar o fluxo na Cracolândia. Já tinha tido várias incursões da polícia lá, só que eu nunca tinha visto com os meus próprios olhos. Eu vi um monte de gente machucada, mas comigo não aconteceu nada. Eu lembrei do Salmo 91, da Bíblia, que diz: “Mil poderão cair ao seu lado; dez mil, à sua direita, mas nada o atingirá”. Deus estava me dando mais uma chance, das muitas que ele me deu e eu não aceitei. Aquele dia, pra mim, foi a gota d’água e voltei pra casa.
[trilha sonora]
Eu continuei com a terapia e o psicólogo disse que eu precisava de alguma fonte de prazer pra substituir a droga. Não na mesma intensidade, mas algo que me deixasse alegre. Muitas pessoas param de usar drogas e não buscam preencher o dia a dia com nada. Aí, a vida parece vazia. O psicólogo me explicou sobre a importância da atividade física. O nosso cérebro libera serotonina e dopamina. São neurotransmissores responsáveis pelo bem-estar e pelo prazer. Era a justificativa que eu precisava pra voltar ao skate.
[trilha sonora]
Já fazia uns quatro meses que eu não usava crack, quando chegou o Dia Mundial do Skate, 21 de junho, a minha mãe, que já estava começando a acreditar em mim, viu o esporte com outros olhos. Ela me deu o dinheiro para eu levar meus sobrinhos, que são crianças, no encontro. Foi um dia muito emocionante pra mim. Quantas vezes eu saí de casa de skate e voltei a pé… Dessa vez, eu voltei de trem, com o skate debaixo do braço e na companhia dos meus sobrinhos.
[trilha sonora]
Quando eu era novo, eu andava de skate pensando nas manobras. Agora, ele é muito mais do que uma tábua de madeira com quatro rodinhas. Ele virou a minha ferramenta de resgate. Uma, duas ou três vezes por semana, eu pego meu skate e, só de sair por aí remando, o meu estresse e a minha ansiedade já vão diminuindo. Consequentemente, a minha fissura também.
Depois que eu parei de usar droga, eu voltei a estudar, me formei no Ensino Médio e quero prestar vestibular pra jornalismo. Eu escrevi um livro sobre a minha história, ele se chama "Skate no caminho das pedras". Pretendo publicar outro, de poemas. A escrita virou a minha terapia. Eu publico os meus textos em uma página do Facebook que se chama “Usuários”. A minha história ajuda dependentes químicos e familiares de pessoas que passam por esse problema. A minha dopamina hoje é ajudar os outros.
[trilha sonora]
Eu tenho 49 anos. Fui usuário de drogas por 25 anos. Faz 4 anos e 8 meses que eu tô limpo. Eu não preciso mais da droga pra ter o prazer. Eu tenho o skate, que é uma fonte de prazer saudável. O esporte me ajudou a resgatar a autoestima, a sensação de superação e o senso de coletividade. De certa forma, é uma ferramenta de resgate, porque o crack tirou o skate de mim.
Quando eu sinto o vento no rosto, eu me conecto com aquele Regis, o adolescente que nunca usou droga. Eu me lembro que a minha vida pode ser outra. Eu não me abandono mais. Sou obstinado pela minha recuperação. E é isso que eu tento inspirar em outras pessoas: que elas sejam obstinadas pelas próprias vidas e pelos próprios sonhos.
[trilha sonora]
Geyze Diniz: Nossas histórias não acabam por aqui. Confira mais dos nossos conteúdos em plenae.com e em nosso perfil no Instagram @portalplenae.
[trilha sonora]
Conteúdos
Vale o mergulho Crônicas Plenae Começe Hoje Plenae Indica Entrevistas Parcerias Drops Aprova EventosGrau Plenae
Para empresas