Para Inspirar

Daniel Munduruku em "Contador de histórias"

O terceiro episódio da décima sexta temporada ouve a história da histórias de Daniel Muduruku e a potência de sua narrativa.

18 de Agosto de 2024



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Daniel Munduruku: eu sofri muito preconceito na escola por causa da minha origem. Mas eu acho que, de certa maneira, ser escritor me libertou um pouco dessas memórias ruins. Eu consigo escrever sobre a minha infância e adolescência sem nenhum ranço daquele período.  
 

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Geyze Diniz: Daniel Munduruku se tornou escritor quase por acaso, ao ser provocado por uma criança durante uma contação de histórias. Desde então, ele publicou 65 livros e se tornou um dos maiores expoentes da literatura indígena no Brasil. Pra ele, espalhar o conhecimento sobre os povos originários é uma maneira de preservar a identidade brasileira. Eu sou Geyze Diniz e esse é o Podcast Plenae. Ouça e reconecte-se. 

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Daniel Munduruku: o nome do meu povo, Munduruku, significa formiga vermelha. É uma alusão ao nosso caráter guerreiro, porque as formigas vermelhas são altamente selvagens. Elas têm uma ferroada muito forte, muito dolorida. O Munduruku é o único povo no Brasil que tinha o hábito de cortar a cabeça dos inimigos em guerra, para exibir como troféu. Os meus ancestrais eram super temidos na região amazônica, de onde a gente é originário. Hoje, nós somos cerca de 15 mil pessoas, divididas em três estados, que são: Amazonas, Mato Grosso e Pará.  

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Eu vivi numa aldeia durante a minha primeira infância e tenho memórias muito boas desse período. A gente morava em umas 60 ou 70 pessoas, divididas em dez casas. Não tinha energia elétrica, e aprender a ficar em silêncio era parte da nossa educação. O silêncio era necessário pra gente não despertar a fúria dos outros seres da natureza, sejam eles animais, sejam eles espirituais.  
 

Desde muito pequeno, a gente era treinado pra usar os nossos sentidos. Eu aprendi a sentir o aroma das coisas e a ouvir com atenção as mensagens da natureza. Aprendi a nadar, a subir em árvore. Eram brincadeiras que os adultos sabiam conduzir muito bem. A gente não sabia que estava aprendendo, mas eles sabiam que estavam ensinando. Ninguém fazia isso porque é legal, mas por uma questão de sobrevivência. Os nossos pais, os nossos avós sempre diziam que a gente precisava ter uma vida longa, uma vida feliz. Mas, pra ter uma vida longa e feliz, a gente precisa estar vivo. 

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Entre os indígenas, não existe a figura do professor, daquele que ensina. Todos sabem um pouco de tudo, mesmo as crianças, e a responsabilidade do cuidado é coletiva. Os velhos são considerados sábios, porque eles já viveram todas as fases anteriores da vida. Eles fazem a ligação entre o hoje e o ontem. E a figura mais icônica da aldeia é a do pajé. Ele não é um ser iluminado. O pajé é um estudioso da cura e das propriedades das plantas. Pra além disso, ele tem a habilidade de falar com os espíritos e saber se aquela doença é do corpo ou da alma. 

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Com 7, 8 anos de idade, esses conhecimentos da floresta já estavam introjetados em mim e talvez tenham sido um instrumento de sobrevivência na cidade. Eu nasci em 1964, o ano do Golpe Militar. No começo dos anos 1970, os militares aceleraram uma política de integração e ordenaram que as crianças indígenas fossem enviadas para as escolas, em contextos urbanos.

Quem não respeitasse a regra, seria punido. Centenas, talvez milhares de crianças foram retiradas das aldeias
pra aprender a ser branco e civilizado, como eu costumo brincar. Eu fui uma delas. E, a partir daí, as minhas memórias da infância já não são, assim, tão boas.
 
 

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Eu não queria ir pra escola. Mas, ao mesmo tempo, tinha uma expectativa de que seria uma boa experiência. A escola ficava em Belém, a 250 quilômetros da minha aldeia. Era um semi-internato, semi-internato religioso. Não tinha outros Mundurukus no colégio, porque os militares separavam os povos, eles faziam isso pra obrigar as crianças a aprender português mais rapidamente.

Eu falava português, claro, mas com
alguma dificuldade. Meus colegas achavam que eu era um selvagem porque eu não sabia me comunicar direito, e eu sofri bullying por conta disso. Os professores faziam questão de colocar a gente de castigo por não conseguir escrever ou falar direito. Era normal pôr as crianças atrás da porta ajoelhadas no milho ou com chapéu de burro na cabeça. Muitas vezes eu quis fugir e ir embora dali. 
 

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A única coisa que me animava eram as aulas de educação física. Eu me dava bem nas corridas e nesse ambiente fiz algumas amizades que eu carrego até hoje. Nos primeiros anos, eu voltava pra aldeias nas férias escolares. Mas, com o tempo, nem isso.  Além da distância geográfica, havia um trabalho na escola pra convencer as crianças indígenas a se tornarem homens brancos. Ou, como nós dizemos em Munduruku, pariwat. Aos pouquinhos, eu fui sendo convencido disso, e nem queria mais ir pra minha aldeia. 

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Aos 15 anos, eu já tinha completado o Ensino Fundamental II e recebido um diploma de gráfico off-set. Pros militares, era hora de começar a trabalhar. Pros indígenas, eu já era considerado adulto. Se eu voltasse pra aldeia, seria a hora de me casar e ter filhos. Mas eu não queria nem uma coisa nem outra. Eu tinha o desejo de ajudar a fazer com que a sociedade brasileira entendesse melhor a realidade dos povos indígenas. E pra isso eu precisava muito estudar mais. 

A maneira que eu encontrei foi convencer os padres que eu queria seguir a vida religiosa. Os padres disseram que eu era muito jovem pra tomar essa decisão, mas me permitiram continuar estudando. Aos 16 anos, eu entrei no Seminário Diocesano de Belém. Terminei o Ensino Médico, estudei filosofia e saí da ordem, porque o que eu queria mesmo era ser professor. Eu me mudei pra São Paulo, comecei a dar aula no Ensino Médio e surgiu a possibilidade de fazer um mestrado em antropologia na USP. Foi nessa época que eu resgatei as minhas origens. O meu objeto de pesquisa era, justamente, o povo Munduruku. 

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Isso foi no começo dos anos 1990. Eu cheguei na aldeia com uma consciência crítica muito elaborada sobre a realidade dos indígenas. Os Munduruku tavam sendo muito assediados por garimpeiros e eu me vi num conflito: estudar para concluir o mestrado ou me envolver mais diretamente na luta pela sobrevivência do meu povo. Eu acabei perdendo prazo pra defender a dissertação e fui jubilado.

Eu não tinha cabeça
pra fazer pesquisa naquele momento. 
A nossa luta era justa. Eu estava disposto a fazer esse enfrentamento como um militante da causa, mas não foi necessário, porque houve uma solução pacífica. Descobri que a minha melhor contribuição seria na literatura, inspirado por uma criança de 9 anos. 
 

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A minha experiência como professor me tornou um bom contador de histórias. Eu dava aula de filosofia pro Ensino Médio, né, pros alunos do Ensino Médio e percebia que os adolescentes não tinham interesse na matéria. Era algo muito distante da realidade deles. Mas quando eu contava histórias do meu povo, eles ficavam enlouquecidos. Aí eu comecei a juntar a filosofia grega com a filosofia indígena.

Naquela época, existia uma ideia de que o mundo ia acabar na virada do milênio. As pessoas
estavam numa onda
new age, e eu usei esse contexto para unir esse medo com a espiritualidade indígena. Eu dizia pros alunos: “O mundo não vai acabar, mas a gente tem que mudar pra mudar o mundo”.  

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Eu também contava histórias pra crianças menores. Elas faziam um monte de perguntas: como a gente caçava, como a gente pescava, como fazia o cocar, onde fazia cocô, como limpava o bumbum… Essas curiosidades que são típicas da criança, né? Mas numa ocasião uma menina levantou o dedo e perguntou onde podia encontrar a história que eu tinha contado.

Não existia Google. A sabedoria
estava nas bibliotecas, e eu não soube responder aquela pergunta, porque eu contava histórias que tinha ouvido quando era criança. E aí eu fui para biblioteca pesquisar e não achei nada. Isso me despertou uma luzinha: “Ora, se esses textos não estão escritos, por que não os escrevo?”.
 

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Eu escrevi duas histórias e mandei o envelope datilografado pelos Correios pra cinco editoras. Só uma delas se interessou, a Companhia das Letras, que estava lançando um selo infantil. Uma pessoa que até hoje é uma querida amiga me ajudou a reescrever as histórias. Eu sempre conto essa passagem, para dizer que a fonte da inspiração pra escrita pode vir de qualquer parte, inclusive de uma criança curiosa.  

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Em 1996, eu lancei o meu primeiro livro, que de uma certa maneira é resultado dos meus estudos sobre antropologia. Eu escrevi pensando nas crianças não indígenas, com aquela velha ideia de ajudar a espalhar o conhecimento sobre os povos originários. O livro fez e faz um grande sucesso. 

A partir daí, eu passei a me dedicar sobretudo à literatura. Eu acabei facilitando a chegada de outros autores indígenas. Existia mercado e existiam os autores. Alguns indígenas nem sabiam escrever e foram aprendendo com as oficinas que a gente oferecia. Porque as histórias eles já tinham e sabiam contar história. A questão era: como contar a história de uma forma literária? 
 

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Hoje, nós somos mais de 100 autores indígenas, com mais de 300 títulos no mercado. Eu posso dizer que sinto muito orgulho de ter iniciado esse movimento e influenciado a criação de políticas públicas na temática indígena. Em 2008, foi sancionada a lei 11.645, que torna obrigatório o estudo da história e cultura indígena e afro-brasileira no ensino fundamental e médio.
 

É essencial que a sociedade brasileira conheça os povos originários. Os indígenas são a última fronteira de pertencimento do Brasil com a sua própria identidade. Se os indígenas deixarem de existir, o país vira uma terra de ninguém. Infelizmente, a história do Brasil é a história de uma elite que não tem amor pelo chão que pisa.

Os indígenas resistem há 500 anos porque são povos comprometidos com o seu lugar no mundo, com a sua territorialidade, com a sua espiritualidade. A defesa do patrimônio simbólico é
mais importante pra nós do que a defesa do patrimônio material.
 Os poderosos querem tomar as nossas terras, demarcadas ou não, pra extrair a riqueza do solo e do subsolo. A população indígena funciona como uma espécie de consciência do Brasil.

Os indígenas têm solução
pra muitos problemas que nós vivemos atualmente, como as crises ambientais, morais e existenciais que tantas pessoas sentem. A sociedade vem dando uma certa importância ao que os indígenas falam. A nossa luta não é contra o povo brasileiro, mas contra uma minoria que comanda financeiramente o país e não quer perder esse privilégio. Nessa luta de Davi contra Golias, o nosso lado é o da maioria do povo brasileiro.
 

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Geyze
Diniz
: Nossas histórias não acabam por aqui. Confira mais dos nossos conteúdos em plenae.com e em nosso perfil no Instagram @portalplenae. 

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