Para Inspirar
A sétima temporada do Podcast Plenae está no ar! Confira a história da empresária Deborah Telesio. Aperte o play e inspire-se!
20 de Março de 2022
Leia a transcrição completa do episódio abaixo:
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Deborah Telesio: Você já teve a sensação de ter sido protegido? De que algo ruim podia ter acontecido, um tropeço, um acidente, mas que de forma quase inexplicável não foi desta vez? Quantas vezes o “quase” aconteceu? Será que é por acaso? Como e porque vivenciamos o “quase”? Quais as mensagens que estes eventos nos trazem? Assim como ocorrem com tantas pessoas em diferentes situações, eu vivi uma experiência extrema de quase morte, e não tive dúvidas de que o que me salvou foi algo maior. Na minha intuição, eu chamo de Divino ou de anjos.
Dia 26 de dezembro é a data do meu segundo aniversário. Eu sou sobrevivente do Tsunami que aconteceu na Ásia em 2004, depois de um terremoto subaquático de 9 pontos na escala Richter, que tirou a vida de mais de 250 mil pessoas. Algumas delas, lamentavelmente, bem ao meu lado.
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Geyze Diniz: Todos nós já passamos por avalanches no decorrer da vida. Mas com Deborah Telesio, essa expressão foi vivida na pele em 2004. Deborah estava fazendo snorkeling na Tailândia, quando o Tsunami atingiu ela no meio do mar. Ao contrário da maioria das pessoas ao seu redor, Débora sobreviveu, e só se deu conta da dimensão da tragédia quando foi levada de volta ao continente.
Em solo firme, a executiva teria outra missão: encontrar sua amiga que ficou na praia quando a onda veio. Debora conta que, depois dessa experiência, assinou um novo contrato com a vida. Conheça a história de Deborah Telesio e sua conexão com o aqui e o agora. Ouça, no final do episódio, as reflexões do especialista em desenvolvimento humano Marc Kirst , para te ajudar a se conectar com a história e com você mesmo. Eu sou Geyze Diniz e esse é o podcast Plenae, ouça e reconecte-se.
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Deborah Telesio: Era uma viagem de férias com a minha melhor amiga, irmã de alma Marie, com quem eu já percorri vários cantos desse mundo. Eu, que sempre trabalhei como louca de executiva de multinacionais, e pra quem conhece este mundo sabe que é bem puxado, me dava sempre ao luxo de me aventurar pelo mundo, pra recobrar as energias e ampliar meus horizontes. Frequentemente com ela, com a Marie, uma amiga dessas que aquece o coração e já por mais de 30 anos. E com quem eu compartilho dessa sede de conhecer e de viver o novo.
Pra nós, quando a gente viaja, vale a cultura do lugar, vale os sabores, os cheiros, as comidas, as paisagens, as pessoas, seus hábitos e suas crenças.
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Chegando em Bangcoc, fomos surpreendidas ao ver um Beit Chabad, bem em frente ao nosso hotel. Beit Chabad é uma entidade judaica presente em muitos países, mas eu nunca esperaria encontrar um lá. Era época de Chanukah, a festa das luzes e dos milagres. Durante 8 dias, os judeus acendem velas para celebrar a vitória da luz sobre a escuridão. Eu e a Marie somos judias. Quando eu cheguei lá, eu falei pra ela: “Vamos acender as velas de Chanukah!”. Atravessamos a rua e fomos acender as nossas velas. As velas que celebram o milagre. A gente ainda nem sabia o quanto precisaríamos de um grande milagre nos próximos dias.
A viagem seguiu bem, super interessante essa parte do mundo. Pudemos testemunhar as várias crenças que permeiam aquele lugar. Budistas na Tailândia, hinduístas em Bali, a coexistência de todas as religiões em Cingapura. Fomos aos templos budistas, fizemos oferendas, assistimos a rituais hinduístas que nunca tínhamos visto. Já no final da viagem, estávamos passando alguns dias no sul da Tailândia, onde há ilhas de beleza incomparável. O mar é super calmo e as pessoas são gentis.
Naquele dia, eu acordei sentindo um leve tremor na minha cama. Ela sentiu também. Era suave, nem demos muita bola. Mal sabia que esse era o tal do terremoto, que viria a causar tanta devastação.
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Marie não estava se sentindo muito bem neste dia e queria ficar na praia, quieta. E diferente de todos os outros dias, nesse, decidimos fazer um rápido programa separadas uma da outra. Eu queria aproveitar meu último dia naquele paraíso e decidi pegar um barquinho
pra fazer snorkeling. Fomos procurar um barqueiro na beira do mar pra me levar a um ponto de snorkeling bem conhecido por lá. Um cara jovem se ofereceu, mas eu não quis. Preferi um velhinho, porque eu me sentia mais segura com ele, eu de biquíni, sozinha no meio do mar. Até hoje eu penso naquele jovem. Será que eu salvei a vida dele, quando escolhi o homem mais velho pra me levar? Não sei, nunca vou saber.
Eu dei o meu passaporte pra Marie e me despedi, e ela tirou uma foto de mim, no barco. O barqueiro me levou a um lugar com umas rochas vulcânicas gigantescas no meio do mar. Tinha vários barcos por lá e um monte de gente, talvez umas 30 pessoas. O barqueiro disse que ia me esperar num canto e eu fui nadar pra bem perto da pedra vulcânica, onde havia vários corais e peixes. Eu estava de máscara, de snorkel, e tinha comigo uma máquina fotográfica daquelas descartáveis. Era um peixinho colorido a minha última lembrança, até que eu tenho um apagão, uma amnésia. Eu não tenho a menor ideia do que aconteceu naquele momento, nenhuma lembrança.
Num intervalo de tempo que eu não sei quanto durou, aconteceu algo tão grande que arrancou a minha máscara, arrancou o snorkel, a câmera da minha mão. Quando eu me dei conta, eu tava com a cabeça fora da água, meio zonza, tentando entender o que estava acontecendo.
Olhei em volta e percebi que eu não tinha nem saído do lugar, que eu continuava na mesma posição em relação à tal da pedra vulcânica. Mas as pessoas que estavam lá já não estavam mais.
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Olhei pra frente e, aí, eu vi uma parede de água vindo na minha direção. Não era uma onda grande normal. Era algo muito assustador, nem sei precisar a altura. Nesse momento eu entendi que ia morrer. Que eu morreria e que ninguém jamais saberia de mim. Que a minha vida iria terminar e não tinha o menor sentido pra mim. Eu queria viver. Fiquei inconformada, eu não queria morrer.
A onda chegou e não quebrou. Eu pude passar por cima dela, sem que nada me acontecesse. Eu consegui me estabilizar de novo, até que uma terceira onda gigante veio na minha direção. Só que essa, ao contrário da anterior, já tava quase quebrando. Não ia dar tempo de eu passar por cima dela. Não ia dar tempo de eu furar a onda. Não havia nada, absolutamente nada que eu pudesse fazer. Era eu e a fúria do mar.
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A onda, de fato, quebrou em cima de mim. E eu me lembro da sensação exata de estar embaixo da água, naquele rebuliço. Enquanto eu era arremessada de um lado pro outro, eu lembrei de várias coisas. Lembrei de um sonho de infância em que eu era engolida por uma onda. Lembrei da minha avó, que tinha morrido dois meses antes. Lembrei do meu pai, que já era falecido.
Quando o fôlego acabou, eu comecei a respirar água e tive um pensamento meio macabro: “Ah, não é tão ruim morrer afogada”.
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Eu acho que, por 1 milésimo de segundo, eu não desmaiei. De repente, uma luz iluminou as minhas pálpebras e eu tive uma sensação de que eu tava sendo puxada pra cima. Quando percebi, eu tava com a cabeça fora da água, eu estava respirando, eu tava viva.
Eu senti nitidamente que tinha uma coisa ali muito maior do que eu. Não sei se foi a minha avó que veio me salvar, se foram anjos, se foi Deus. Mas eu não tenho dúvida de que algo grande, divino, cuidou pra que eu tivesse exatamente naquele lugar, nem um pouquinho mais pra esquerda, nem um pouquinho mais pra direita. A primeira frase que veio na minha cabeça foi: “eu fui salva por um colchão de anjos”. Colchão porque eu sabia que os corais estavam muito perto, que a pedra gigante estava a poucos metros de mim.
Eu olhei à minha volta e vi o mar imundo, cheio de sujeira. Consegui nadar até um pedaço de barco que tava virado, subi nele e senti uma fraqueza incrível. Estranhamente, eu não tinha nenhum arranhão. Eu não bati nos corais, eu não bati contra a pedra, eu não fui arrastada pra outro lugar. Eu tava sim exausta, mas inteira.
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Um cara se aproximou de mim, segurando uma criança e perguntou se eu tava bem e se eu podia segurar aquela criança. A menina devia ter uns 4 anos. Toda raladinha e falava sem parar em um idioma que eu não entendia. As únicas palavras que eu identifiquei foram “mami” e “papi”. Eu segurei aquela menina contra o meu corpo e fiquei falando pra ela em português mesmo: “Calma, vai ficar tudo bem”. De repente, uma mulher subiu naquela pedra gigante e gritou o nome da menina: Nicole. Nunca mais esqueci. Era a mãe dela. Graças a Deus!
Do nada, apareceu um barquinho de madeira com um casal e um barqueiro pra nos resgatar. Nem sei de onde esse barco surgiu. Talvez ele estivesse mais pra dentro do mar, antes da onda arrebentar. Todos os outros barcos já não estavam mais lá, inclusive o que me trouxe. Fico pensando se o barqueiro conseguiu ligar o motor e fugir a tempo.
O barco resgatou os poucos sobreviventes: eu, a Nicole, a mãe da Nicole, o homem que a salvou. Tinha também um cara em estado de choque, dizendo que a namorada dele não tinha sobrevivido. O barco também levou o corpo de um tailandês e uma moça super jovem, que alguém tentou reanimar no barco. Eu, por outro lado, estava passando muito mal e vomitando, porque realmente eu tinha me afogado. Até que alguém gritou: “Vamos que vem mais onda!”
Aquele foi o momento em que eu me senti mais forte na minha vida. Eu pensei com uma convicção que eu nunca mais senti: “Hoje, eu não morro mais. Hoje eu já morri e nada mais vai me acontecer”.
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Lembrei de novo da minha avó, que era uma mulher forte que enfrentou duas guerras mundiais, e que sempre me dizia: “Tudo o que você sabe ninguém tira de você”. Então eu ia me virar, na verdade eu acho que ela até estava lá do meu lado naquele momento, emprestando a força dela pra mim. Eu sabia que eu tinha meus recursos, meu aprendizado da vida e eu pensava: “A única coisa que importa agora é encontrar a Marie”.
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Só que o barco não me levou pra ilha onde a Marie tava.
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Eles foram para uma cidade chamada Krab, de onde saem todos os barcos em direção às ilhas. Quando a gente chegou na costa, eu entendi que a coisa era muito séria. Tava tudo destruído, os barcos um em cima do outro. Começaram a gritar de novo: “Corre, vem mais onda!”. Todos correram e eu também corri, corri, corri, junto com um monte de gente. Fui dar numa estrada, nem lembro bem como. Uma família se aproximou e me ofereceu para que eu entrasse no carro deles. Ela com um lenço na cabeça, árabes. As crianças no carro ficaram em polvorosa quando eu disse, meio zonza, que eu era do Brasil. Começaram a dizer “Ronaldo, Cafú”. Essa mulher, ou, esse anjo, me perguntou como poderia me ajudar, eu pedi que ela me levasse de volta pra ilha onde a Marie estava e ela disse que não tinha como, claro que não.
Eu, executiva, pensei super logicamente e falei: “Me leva pra um centro de informação turística, porque lá eu sei que eu vou poder falar inglês, que vão me entender, vai ter telefone, vai ter fax, vai ter tudo o que eu preciso”. Essa família me levou, mas antes parou num posto de gasolina, onde tinha um chuveiro. Foi maravilhoso tirar aquela sujeira de mim. Me deram as roupas do filho, um menino de uns 10 anos. Quando eu saí vestida com as roupas dele, ele viu os meus pés descalços, tirou os chinelos dele e me deu. Como que eu posso agradecer essas pessoas?
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No centro de informação turística, eu consegui avisar a minha mãe que tava tudo bem e pedi pra ela repassar a informação pro filho da Marie, caso ela ligasse. A gerente desse centro arrumou um hotel pra eu dormir, me levou para uma padaria, me fez comprar um pão, uma coca cola e me deu uns 2 dólares.
Eu só soube da dimensão da tragédia quando liguei a TV do hotel e vi as imagens das ondas gigantes e da destruição em tantos países. Até então, eu nem sabia o que era um tsunami. A mesma mulher que se sentiu tão forte naquele barco, era agora uma pequena, frágil, assustada. Eu nunca me senti tão sozinha. Mas ainda assim, eu tinha certeza de que tudo ia dar certo no final.
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Passei mais dois dias andando por essa cidade, eu, a sacolinha do pão que eu não conseguia largar, por medo de não ter mais o que comer, vestindo as roupas do menino. Visitei as escolas que receberam os resgatados, os hospitais, procurava o nome da minha amiga nas listas de sobreviventes. Encontrei mais incontáveis solidários pelo caminho, muitos deles em situação parecida com a minha, procurando sobreviventes, tentando contato com pessoas, ou pior, pessoas que tinham perdido entes queridos. E a Marie?
Liguei na embaixada brasileira, mas eles também não tinham notícias dela. Ela, por sua vez, demorou 3 dias pra fazer contato com a família dela ou com qualquer outra pessoa. Ela achava que eu tava morta, ela não tinha coragem de dar essa notícia pra ninguém, e por isso preferiu o silêncio. A experiência dela foi até mais traumática que a minha. Ela viu o mar recuar e as pessoas caminharem em direção à água, com curiosidade. A Marie, por outro lado, foi pra trás, o que salvou a vida dela. Ela se agarrou em uma árvore pra não ser arrastada pelas ondas, subiu morros e demorou mais de um dia pra ser resgatada.
Enquanto esperava o resgate, ela se juntou a um grupo de jovens israelenses e foi literalmente carregada por eles. Esses jovens levaram a Marie de volta a Bangcoc, justamente pro mesmo Beit Chabad onde a gente acendeu as velas de Chanukah. Foi lá que a Marie acessou a internet, soube que eu estava viva e decidiu entrar em contato com a família.
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Nós nos reencontramos em Bangcoc. Choramos, nos abraçamos, falamos horas sem parar, ligamos pras nossas famílias. No mesmo Beit Chabad, recebemos mais um presente. De não apenas poder conhecer aqueles meninos geniais que salvaram minha amiga, mas também de sermos abençoadas com uma cerimônia de renascimento. E porque eu passei por isso? Por que eu sobrevivi e aqueles 250 mil outros não tiveram a mesma sorte? Essa pergunta permanece comigo, mas depois de 17 anos eu acho que tem alguns aprendizados que sim me transformaram. Os momentos que vivi naquele barco que me resgatou, a força que eu ganhei naquele momento e acreditar. Saber que sim, conto com aquilo que aprendi, que posso aplicar, que nenhum aprendizado ou experiência é em vão, como disse a minha avó.
Mas acreditar que as coisas podem dar certo, de que há algo grande que nos cuida, isso eu levo pra mim em todos os meus dias. E como não ser grata. Quanto vale poder comemorar meu segundo aniversário com a minha amiga, que hoje, aliás, é a madrinha da minha filha Nina? Essa minha menina Nina, que nasceu em 2010, deve ter sido a razão para eu ter sobrevivido. Será?
Quanto vale poder juntar as nossas famílias, que se tornou agora uma família estendida e celebrar as festas judaicas juntos, acender as velas de Chanukah todos os anos e agradecer por tantos milagres que vivenciamos todos os dias? E como retribuir?
Eu sempre acho que não é suficiente.
Hoje, eu sou CEO de uma empresa de equipamentos de radioterapia para tratamento oncológico. Diante de tamanha vulnerabilidade, todos nós, seres humanos, vivemos com a pandemia do coronavirus, esse tsunami que está passando na vida de todo mundo. E diante da minha responsabilidade como líder, como eu poderia retribuir o cuidado que eu recebi na minha vida?
Essa pergunta, esse compromisso, está comigo todos os dias. E o agradecimento de ter saúde, de ter podido cuidar da empresa, da equipe, de tentar ajudar as pessoas que estão vivendo tempos tão difíceis. E sim, com atitude de que vai dar certo. Importar-se genuinamente com o outro, ser solidário, como tantos foram comigo no momento mais vulnerável da minha vida. E, principalmente, acreditar. Chame-se anjos, chame-se Deus, chama-se Santos, Buda, Shiva, não importa, ter fé em você e nessa força. Por que tem algo grande, maior, que cuida, e temos que nos dar conta, agradecer e fazer a nossa parte.
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Marc Kirst: Como teu espírito reagiu ao ouvir esse relato tão raro e impactante? No dia em que Deborah sobreviveu sem nenhum arranhão, mais de 220 mil pessoas faleceram no Tsunami mais devastador da história. Se ouvirmos, sem pensar em nós mesmos, talvez deixamos escapar uma percepção transformadora. Se você acabou de ouvir sobre esta experiência, significa que você também é sobrevivente. Nem sempre de formas tão explícitas, mas eu te pergunto: quantas vezes será que o acaso do xadrez da vida te salvou de uma tragédia e você nem percebeu? Um segundo a mais ou a menos no momento em que saímos de casa. Uma fala ou silêncio que influenciou alguém que amamos a pegar a direita em vez da esquerda. Uma viagem que precisou ser cancelada e no momento ficamos decepcionados.
O nosso hábito de controlar e interpretar nos leva a categorizar tudo o que nos acontece como bom ou ruim. Mas na ignorância do que o futuro nos reserva, talvez valha a pena abdicar das avaliações da nossa mente para sentir um novo nível de gratidão. O desapego do que achamos que precisa acontecer para aceitar o que está acontecendo. O olhar sobre a nossa caminhada não depende só dos eventos espetaculares e inesquecíveis, mas da consciência, do olhar e da perspectiva que escolhemos a cada dia que temos o privilégio de respirar mais uma vez. Qual é a experiência que você está vivendo agora? Te convidamos a aproveitá-la, qualquer que seja.
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Geyze Diniz: Nossas histórias não acabam por aqui. Confira mais dos nossos conteúdos em plenae.com e em nosso perfil no Instagram @portalplenae.
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Para Inspirar
O segundo episódio da décima sexta temporada ouve a história dos encontros da fé de Pai Denisson e Mãe Kelly.
11 de Agosto de 2024
Na primeira vez que eu entrei no terreiro, eu falei em voz alta para o Pai Denisson: “Eu me encontrei. O meu lugar é aqui”. Como eu tenho mediunidade de clarividência, eu sentia e via as entidades presentes naquele terreiro. O mesmo homem de traços indígenas que eu vi na porta da sala da faculdade estava ali. Eu me assustei e descobri que aquele homem era o Caboclo das Sete Encruzilhadas, uma entidade que trabalha com as forças da natureza e com o conhecimento em todos os sentidos.
Eu sentei num banquinho de madeira e senti a espiritualidade à minha volta. Senti uma explosão de paz e alegria dentro de mim. Pela primeira vez, todas aquelas manifestações que aconteciam comigo desde criança me fizeram sentido. E a umbanda me completou naquele momento e me completa até hoje.
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Pai Denisson: A umbanda me encantou pela forma como eu fui acolhido pelo terreiro. Nunca me perguntaram qual era a minha profissão, quanto eu ganhava. Nunca me pediram nenhuma contribuição. Eram pessoas muito simples, que me colocaram debaixo da asa, sem querer nada em troca. Era um altruísmo puro. Eu me senti visto como um ser humano, e esses valores me preencheram.
Aos poucos, eu fui entendendo que a umbanda é a manifestação do espírito para a prática da caridade. A gente entende a caridade da maneira mais vasta possível, no sentido de acolher, não julgar, propagar a fé, alimentar e socializar. A umbanda é como o povo brasileiro: miscigenado. Ela é a primeira religião considerada 100% brasileira, e ela mistura saberes indígenas, africanos e europeus.
Se a gente pegar os povos originários, eles manifestam a espiritualidade através de ritos de passagem, de ervas, de vegetais e de minerais. Os africanos trouxeram o conhecimento das oferendas, da boa fé, da liberdade, da música, dos orixás, que são forças da natureza. Dos europeus vieram a feitiçaria, as velas e o estudo da vida após a morte.
Mãe Kelly: Na medida que a gente foi se envolvendo com os estudos da umbanda, começamos a explorar também outras formas de espiritualidade. Eu e o Pai Denisson viajamos em busca de conhecimento para o Tibete, Nepal, China, Índia, México, Egito, Israel, Peru e outros lugares sagrados. Buscamos conhecimento em contato com templos e os sacerdotes do budismo, do islamismo, do xintoísmo, do catolicismo, do judaísmo, do espiritismo e dos povos originários.
Com estas vivências, cada vez mais sentimos que as religiões tinham sinergia com a umbanda. E em vários lugares a gente recebeu sinais de que a gente tinha um caminho espiritual para trilhar. Em 2015, nós fundamos o Instituto CEU Estrela Guia. Desde o primeiro dia, em nosso espaço sagrado, conhecido como terreiro, buscamos o equilíbrio entre a mente e o coração, entre a razão e a emoção e entre o pensar e o sentir, com o compromisso de buscar e compartilhar conhecimento.
O trabalho social faz parte de todas as atividades do Instituto. Através de distribuição de alimentação de pessoas em vulnerabilidade alimentar e social. Hoje a gente doa diariamente comida para cerca de mil pessoas em situação de rua e em comunidades carentes. E a gente também desenvolve cursos de culinária, de reaproveitamento de alimentos para pessoas em vulnerabilidade social e alimentar.
O desenvolvimento do corpo mental acontece por meio dos cursos de Teologia da Umbanda, vivências de ervas e cristais. E o desenvolvimento do corpo espiritual, através dos ritos das giras, ritual para realização de trabalhos espirituais por meio de médiuns incorporando entidades.
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Pai Denisson: Junto com os nossos trabalhos, começaram também os episódios de intolerância religiosa, que hoje a gente chama de racismo. Eu sempre uso o filá, que é um tipo de chapéu que os sacerdotes de umbanda colocam na cabeça. O filá, na realidade, é um acessório do islamismo que foi incorporado por religiões de matrizes africanas.
Só por causa desse chapéu, eu recebo olhares de reprovação. Quantas vezes a gente distribui comida e as pessoas falam assim: “Ah, é comida da macumba. Não quero”. Uma vez, era dia 12 de outubro, e a gente estava distribuindo doces paras crianças na rua. A Polícia Militar abordou a gente com armas em punho. Do outro lado da rua, tinha um pastor evangélico dando marmitas sem ser incomodado.
Em outra ocasião, o nosso terreiro foi invadido. Cortaram os fios da instalação elétrica, que são de alta tensão, e deixaram atrás de uma árvore. Quem tocasse morreria na hora. Cortaram nossas plantas, que para a gente são sagradas, quebraram nossos objetos religiosos e destruíram nossas oferendas.
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Mãe Kelly: O meu primeiro episódio de intolerância religiosa foi dentro da minha família. Meus familiares não aceitaram a minha escolha. A minha mãe não chegou a saber que eu tinha me tornado umbandista. Em 2009, após uma cirurgia ela ficou em coma vegetativo, que durou 14 anos. Quando ela desencarnou, eu como Sacerdotisa me ofereci para fazer os ritos fúnebres, mas a minha família não permitiu.
Então, o Pai Denisson pediu para o padre Júlio Lancellotti, que é nosso amigo, realizar esses ritos fúnebres, e ele aceitou o convite. Eu acredito que a minha mãe não teria tido a mesma atitude. Afinal, foi ela quem me ensinou o conceito de tolerância. Minha mãe também me ensinou a fé, a lutar pelos meus propósitos de vida e a respeitar a todos... A Umbanda é uma religião livre, nossos mentores e guias nos oferecem o que há de melhor para nossas vidas, respeitando nosso livre arbítrio.
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Pai Denisson: Quando a gente está aberto para o outro, a gente para de se prender às nossas crenças limitantes. As religiões são criações humanas. A vida nos dá chances de aprendizado de diversas formas, não somente pela religião. Deus é uma energia que a gente acessa através do amor, não através do julgamento. Se a Terra é só um pontinho no universo, quem sou eu para dizer que eu sou melhor do que o outro?
Já passou da época da gente superar conflitos religiosos. Imagina se Deus quer conflito em nome dele? Deus nos dá determinadas liberdades para que a gente tenha opções. Se a gente não tivesse liberdade, Deus seria um tirano. Os caminhos e as encruzilhadas servem pro nosso desenvolvimento. Todo ser humano tem algo a nos ensinar.
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Geyze Diniz: Nossas histórias não acabam por aqui. Confira mais dos nossos conteúdos em plenae.com e em nosso perfil no Instagram @portalplenae.
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