Para Inspirar
Na sexta temporada do Podcast Plenae, Eduardo Lyra conta como a sua própria história o inspirou a transformar o mundo em um lugar melhor.
29 de Agosto de 2021
Leia a transcrição completa do episódio abaixo:
Geyze Diniz: Ele tem um plano ousado: colocar a miséria da favela no museu. Para muitos isso é impossível, para ele é um propósito. O empreendedor social, Edu Lyra, fundador da ONG Gerando Falcões, é um empreendedor social que tem como combustível gerar oportunidades e fazer da favela um lugar de prosperidade. Eleito pela revista Forbes como um dos jovens abaixo de 30 anos mais influentes do Brasil, ele nasceu na favela, venceu a miséria, entrou na universidade e escreveu livros.
Mais do que isso, criou uma rede de desenvolvimento social presente em mais de 300 comunidades carentes do país. Conheça a história de empreendedorismo e vontade de mudar o mundo de Edu Lyra. Ouça no final do episódio as reflexões da psicanalista Vera Iaconelli para lhe ajudar a se conectar com a história e com o momento presente. Eu sou Geyze Diniz e esse é o Podcast Plenae. Ouça e reconecte-se
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Eduardo Lyra: O lugar onde uma pessoa nasce costuma definir até onde ela pode chegar. Eu nasci numa favela no Jardim Nova Cumbica, em Guarulhos. A condição financeira da nossa família era tão abaixo da linha da pobreza que o nosso barraco tinha chão batido de terra. No banheiro, não tinha descarga, nem chuveiro. Era banho de caneca. Os meus pais, Maria Gorete e Marcio Luiz, não podiam comprar um berço pra mim. Eu dormia numa banheira de plástico azul.
Cresci num ambiente de muita violência. Tive tios e primos assassinados. Um amigo meu chamado Edson foi morto com mais de 15 tiros, praticamente do lado da minha casa. Eu tava jogando futebol e escutei vários barulhos de tiro. Como era dia de jogo do Corinthians, pensei que era rojão. Até que ouvi e vi um monte de gente correndo e falando: “O Edson morreu! O Edson morreu!” Aquilo me revoltou.
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A violência também estava dentro da minha casa. Quando eu tinha quatro anos, meu pai foi preso, indiciado por roubo a banco. Eu visitei ele várias vezes na prisão. Era horrível ter que ver a minha mãe sendo revistada nua, na minha frente, tendo a intimidade violada por um erro que ela não havia cometido. Ela suavizava a história, dizendo que meu pai estava ali porque era o trabalho dele.
Em São Paulo, a profissão de bandido é meio que camuflada. No Rio de Janeiro, por exemplo, o cara usa arma e fuzil no meio da rua. Lá na favela, o criminoso tentava de alguma forma separar a vida social da atividade criminosa. Não era óbvio pra mim que meu pai era bandido. Eu só descobri na verdade um dia que uma vizinha me levou pra igreja e orou assim: “Deus, ajuda o pai do Edu a sair da cadeia, a deixar de ser bandido”.
No meu primeiro dia de aula, a professora quis socializar os alunos e perguntou: “Qual a profissão do seu pai?”. Eu respondi que o meu pai era caminhoneiro e viajava o tempo todo. Foi a melhor resposta que eu encontrei, pros amigos da classe não se afastarem de mim.
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Eu sempre fui apaixonado pelo meu pai. Adorava quando ele ficava em casa. Mas isso era raro. Quando ele não estava preso, estava em algum barraco qualquer usando droga. Tive muitos momentos de solidão com a minha mãe. A gente criou um vínculo forte e ela foi o contraponto da minha história. Minha mãe teve a coragem de me incentivar a sonhar. Na fome, no medo, na enchente, ela olhava nos meus olhos e dizia a frase que virou o meu mantra: “Não importa da onde você vem, mas pra onde você vai”.
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A minha mãe foi a maior líder que eu tive. Ela me ajudou a construir reservas emocionais pra vencer qualquer crise. Por testemunhar o sofrimento dela e da minha vó, eu prometi pra mim mesmo que eu ia ser um ponto de mudança na nossa história. Eu ia dar orgulho pros meus pais e engrandecer o sobrenome Lyra, que só saía nas páginas policiais de jornais. O meu primeiro passo para reescrever a história da minha família foi dizer não às drogas e ao crime.
Me dediquei aos estudos e fui a primeira pessoa da família a entrar na universidade. Estudei jornalismo, não me formei, mas me eduquei e escrevi um livro chamado Jovens Falcões, com histórias de 14 brasileiros empreendedores, entre eles o youtuber Felipe Neto. O objetivo do meu livro era contar pra juventude brasileira da favela que dá pra ser mais do que traficante e bandido se você tem origem humilde. Falcão é o jovem que não se limita ao pó do chão. Ele voa. E quem voa consegue enxergar tudo de cima. Quem enxerga de cima, vê oportunidade. E quem vê oportunidade, vai lá e agarra.
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Publiquei o livro de maneira independente, fazendo parcerias com comerciantes de Poá, a cidade onde morei por mais de 20 anos. Montei uma equipe com 50 amigos e vendemos os livros de porta em porta por 9 reais e 99 centavos. Conseguimos vender cerca de 5 mil exemplares em pouco mais de três meses.
Com o dinheiro arrecadado, fundei a Gerando Falcões, dando palestras motivacionais para alunos de escolas públicas do estado de São Paulo. Eu falava pra juventude de 14 a 17 anos não ceder à pressão social, não baixar a cabeça. Dizia pra eles deixarem pra trás a preguiça, o pessimismo e fabricarem oportunidades. Eu me lembro que numa palestra na cidade de Tiradentes, um jovem, do nada, tirou um revólver da cintura e colocou ele em cima do palco e falou: “Larguei o crime, mano, parei”.
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Por causa da minha origem, eu fui condicionado a enxergar um mundo de escassez. Escrever um livro e vender cada exemplar a 9,99 era o máximo de oportunidade que eu conseguia enxergar. A minha visão de mundo começou a mudar quando eu fui escolhido pelo Fórum Econômico Mundial para fazer parte do Global Shapers. É uma iniciativa que seleciona jovens de 20 a 30 anos com potencial para mudar o mundo.
Eu tinha 23 anos e morava numa casa sem reboco por fora, quando fui no evento de nomeação dos brasileiros escolhidos pela iniciativa. Foi um dia simbólico para mim, porque pela primeira vez na vida eu pisei no Morumbi, aquele bairro nobre de São Paulo. O evento aconteceu na casa da empreendedora social Patrícia Villela Marino. Tinha um monte de gente da elite lá, num cenário que eu só tinha visto em filme.
Naquele ambiente de riqueza, eu poderia ter tido três reações. Vamos lá. A primeira: sentir ódio e pensar: “Pô, esses bacanas nasceram bem e eu nasci agredido socialmente”. Segunda: me sentir envergonhado por não estar tão bem vestido e ficar isolado num canto. A terceira: falar: “Maravilha, olha onde eu entrei! Agora ninguém me segura”. Eu fui na terceira. Entrei no meio dos bacanas, troquei cartão, fiz relacionamento e tive a chance de fazer um discurso de 5 minutos.
No fim do evento, a Patrícia me chamou de canto e disse que queria fazer um seed money em mim. Na época, o meu inglês era zero e eu não entendi nada. Fiquei meio sem graça, pensando o que essa mulher quer comigo. Ela deu risada e falou: eu quero botar dinheiro em você. Pediu o meu CNPJ, que eu nem sabia o que era.
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A partir daí, tudo mudou. O meu horizonte não abriu, escancarou. A Patrícia investiu mais de 100 mil reais na Gerando Falcões. Me ajudou com gestão e me conectou com uma rede de executivos que ajudaram a estruturar o negócio social. Construí uma ponte da favela pro centro e passei a enxergar um universo com fartura e oportunidades que eu poderia levar para as favelas. Só depois do investimento eu abri o jogo com a Patrícia sobre o passado criminoso do meu pai. Ela passou a me admirar ainda mais. E eu me libertei da vergonha.
Fiz uma releitura da minha própria vida e transformei as minhas dores em propósito. Transformar a pobreza da favela em peça de museu antes do Elon Musk colonizar Marte. Se o humano é capaz de ir pra Marte, é capaz também de construir comunidades empreendedoras, auto sustentáveis que entreguem dignidade e cidadania para as pessoas.
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Tudo que eu faço hoje é movido pelas experiências de necessidade e de falta. Meus amigos e eu não tivemos acesso a uma agenda de esporte e atividades culturais na nossa comunidade. A gente também não tinha cursos profissionalizantes à nossa disposição. Isso levou muita gente pra criminalidade. Então, a Gerando Falcões se tornou um ecossistema de desenvolvimento social que entrega serviços de educação, de desenvolvimento econômico e de cidadania.
A gente atua em algumas pontas. A primeira é trabalhar com educação por meio de esporte, cultura para crianças e adolescentes e qualificação profissional pra jovens e adultos para as pessoas terem uma alternativa à criminalidade. Na outra, inserimos também egressos do cárcere no mercado de trabalho pra esses caras poderem sair do crime.
Essa foi uma dor que veio de ver meu pai, uma pessoa que eu amo, em um presídio deplorável. Faz mais de 20 anos que ele largou o crime, se tornou um homem de fé e jamais voltou atrás. Hoje, estamos presente em mais de 300 favelas do Brasil e em 2020 atendemos mais de 500 mil pessoas.
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Eu acredito que ninguém cai num buraco à toa. Se eu não tivesse vivido a experiência de nascer numa favela, de crescer na periferia, de ter os meus direitos sociais negados, de ser filho de um homem envolvido com o crime, provavelmente eu não teria tido a oportunidade de criar um propósito tão poderoso. Com o amor da minha mãe, eu transformei a minha dor em uma causa. As experiências difíceis da vida não servem só para trazer dor e sofrimento. Elas servem pra gente criar algo relevante.
Todos os dias alguém passa por um luto, se divorcia, descobre uma doença grave, um negro sofre preconceito racial, uma mulher é assediada sexualmente, filhos choram pela ausência dos pais, empresários vão à falência. Rico ou pobre, todo mundo tem encontros e desencontros. Se tornar uma pessoa amargurada diante de uma dificuldade é o caminho mais fácil e óbvio.
Mas, eu percebo que quando as pessoas transformam uma dor em propósito, todo aquele sofrimento e rejeição passa a ser irrelevante. Eu aprendi que feridas cicatrizam. A dor é um ótimo combustível para a mudança. E o propósito dá pra gente a possibilidade de fazer as pazes com o passado e ser livre pra ir atrás do que a gente acredita.
Eu usei as minhas feridas para curar as outras pessoas. Não foi nem um pouco fácil de fazer. Mas eu consegui. Quando me perguntam qual foi a parte mais difícil de romper com a realidade da pobreza na qual eu vivia, eu respondo que era acreditar nas palavras da minha mãe: “Não importa de onde você vem, mas pra onde você vai”. O meu desafio não estava fora, mas estava dentro.
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Vera Iaconelli: A experiência do Edu é muito significativa porque mostra como a fala de uma mãe pode ser determinante, pode ser uma fonte de inspiração e de identificação para que a criança saia daquele ambiente no qual ela nasceu e sonhe com outros espaços. O Edu consegue ali se imaginar num outro ambiente, que ele chama de elite, e estando lá não refugar. Ele toma uma decisão na hora que ele diz: "Bom, eu posso fugir, eu posso ficar acabrunhado aqui no canto ou posso estar".
E ele escolhe - é importante a questão da escolha aí. É importante também perceber que na hora que ele percebe que foi determinante pra ele poder assumir quem ele era e a história dele, que ele podia também transmitir para outras crianças. Não ser determinado pela origem, que é a mensagem que a mãe transmite para ele e ele transmite pros demais e que é a grande sacada da história do Edu: que a gente vem de algum lugar, mas que a gente pode se reinventar a partir de escolhas novas.
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Geyze Diniz: Nossas histórias não acabam por aqui. Confira mais dos nossos conteúdos em plenae.com e em nosso perfil no Instagram @portalplenae.
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Para Inspirar
Conheça a história de um artista premiado que trouxe suas vivências mais desafiadoras para o centro de sua arte.
13 de Outubro de 2024
Leia a transcrição completa do episódio abaixo:
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Dalton Paula: A arte me deu muito mais do que eu poderia imaginar. Na adolescência, o meu horizonte era só participar de exposição em Goiânia. Se uma pessoa me falasse que eu ia expor na Bienal de São Paulo, fazer parte do acervo do MoMA e abrir um centro cultural, eu ia achar que era brincadeira.
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Geyze Diniz: Dalton Paula acredita que todas as suas vivências contribuíram para chegar aonde chegou. Tanto os desenhos que fazia quando era pequeno, quanto seu trabalho como bombeiro o ajudaram a criar o olhar e a crença de que é possível transformar qualquer material em arte.
Hoje, ele já exibiu suas obras em diversos países e está à frente do ateliê-escola Sertão Negro, dividindo suas experiências e seus aprendizados com os novos artistas. Eu sou Geyze Diniz e esse é o podcast Plenae. Ouça e reconecte-se.
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Dalton Paula: Eu fui uma criança introvertida e de saúde frágil. Fiquei boa parte da infância trancado num apartamento. Para passar o tempo, eu assistia desenhos animados, entre eles os Cavaleiros do Zodíaco, um anime japonês. Eu gosto de contar esse episódio, porque a gente nunca pode desprezar nenhuma forma de arte.
Um desenho despretensioso pode ser o começo de uma história maior. E comigo foi assim. Por causa dos Cavaleiros do Zodíaco, eu passei a colecionar revistas de heróis. A minha brincadeira era copiar esses desenhos com papel carbono e colorir com lápis de cor. Eu acho que, de alguma maneira, a combinação de cores que eu usava naquelas cópias chamou a atenção da mãe do meu amigo.
Quando eu tinha 14 anos, ela me convidou para fazer um curso de pintura na Escola de Artes Visuais em Goiânia. Hoje eu entendo esse estímulo como uma armadilha, no bom sentido, pra capturar um adolescente e inserir no universo das artes. Foi assim que eu descobri a minha missão de vida.
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A lista de materiais da aula incluía uma malha de uns 3 metros de comprimento. Antes da gente pegar qualquer tinta e pincel, um professor com formação em artes cênicas pediu para gente enrolar o corpo nessa malha e produzir sons e movimentos. Ele estava estimulando a gente a refletir qual era melhor linguagem para potencializar o que a gente queria dizer.
No curso, eu conheci o trabalho de artistas como Farnese de Andrade, Marco Paulo Rolla e Arthur Bispo do Rosário. Ver linguagens diferentes causou uma erupção na minha mente. Eu fiquei 6 anos nessa escola, e depois dois no Museu de Arte de Goiânia, estudando desenho. As aulas estimulavam a gente trabalhar com o lado direito do cérebro, o lado das aptidões artísticas. E aos poucos eu fui explorando outros caminhos, como a fotografia e a foto performance.
Desde cedo, eu percebi que viver de arte no Brasil era um desafio. Embora a minha mãe me incentivasse a seguir por esse caminho, eu queria uma segurança financeira. Então, eu optei por ter uma profissão paralela e fiz faculdade de química por dois anos. Só que eu entendi que não dava para ser artista e, ao mesmo, se submeter a questões de mercado. E aí eu decidi prestar um concurso para o Corpo de Bombeiros.
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Eu trabalhei 12 anos como bombeiro, e esse período foi uma escola para mim. Eu prestava socorro pra vítimas de acidente de trânsito, de agressão, pra pessoas feridas e que tiveram um mal súbito. Eram crianças, adultos e idosos. Eu, como uma pessoa que recebeu muitos cuidados na infância, me vi no papel de cuidador.
Essa experiência me deu acesso aos corredores dos hospitais. Me fez entrar em casas de pessoas em situação de violência e vulnerabilidade. Foram vivências que ajudaram a engrossar a minha casca. É curioso, porque o Cerrado, o bioma do Centro-Oeste, onde eu moro, tem árvores com cascas bem grossas e mais resistentes a queimadas.
Trabalhar como bombeiro ajudou também a formação da minha identidade. Passar por situações de intensidade emocional e psíquica me deram ferramentas para poder mergulhar cada vez mais a fundo no trabalho artístico. Eu comecei a me interessar pela busca de minhas origens. Eu tenho poucas informações sobre a minha árvore genealógica, assim como outros corpos negros.
A pesquisa pela ancestralidade toca raízes profundas, que direcionam a gente no presente e apontam o caminho do futuro. Eu me senti pertencente em lugares como quilombos, os terreiros, subúrbios da cidade, as festas populares de Goiânia. Fui me sentindo mais conectado com as minhas raízes, com a terra e, assim, com a minha essência.
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A minha atividade de artista e a vida do bombeiro caminhavam em paralelo, mas às vezes os dois mundos se chocavam. Teve uma vez que o convite de uma das minhas exposições era uma foto minha vestido de noivo, maquiado e com a sobrancelha modelada. Com autorização do meu comandante, eu coloquei o convite no corredor do quartel. O meio militar, a gente sabe, tem um viés viril, e ainda precisa romper muitas barreiras em termos de gênero e sexualidade. Para mim, a arte tem um papel de tirar a pessoa do eixo e forçar uma reflexão sobre determinadas coisas.
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Teve uma época em que o meu tempo livre ficou muito reduzido, e eu comecei a pensar em outras formas de produzir arte. Eu circulava muito pela cidade nas viaturas, e comecei a mapear os muros, prestando atenção em cores e texturas. Um tijolo quebrado e a água escorrendo pela parede atraíam a minha curiosidade.
Eu enxergava pinturas naqueles muros e fiz um trabalho de foto performance nas minhas folgas, em que eu colocava diante daquelas paredes como um personagem. Como artista, é possível transformar qualquer material em arte. Seja um trabalho performático com seu próprio corpo, seja uma instalação, um objeto e uma fotografia. Eu não consigo fugir desse exercício.
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Na minha primeira exposição individual, eu fiz um empréstimo consignado na folha de pagamento para bancar não só a minha arte, mas o coquetel e o DJ que ia tocar no evento. Era uma loucura, mas hoje, colhendo os frutos dessa loucura, eu vejo que foi bom ter me arriscado. Eu tive muita sorte de contar com o apoio de pessoas ao meu redor, da minha mãe, dos meus colegas da corporação. A gente não faz nada sozinho.
Em 2014, aconteceu a minha primeira exposição individual em São Paulo. Era um passo importante, porque o meu trabalho poderia passar a ser visto por muito mais gente. Nessa época, eu precisava fazer muitas negociações nos Bombeiros para poder estar em São Paulo por algumas horas. Todo dia saem ônibus de Goiânia cheio de pessoas que vão pra São Paulo comprar roupa pra revender. Eu fazia esse bate-e-volta de 1.800 quilômetros. Chegava de manhã em São Paulo e à tarde já voltava pra trabalhar em Goiânia no outro dia.
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As artes começaram a exigir cada vez mais dedicação, conciliar duas profissões exigentes foi ficando impossível. Até que, em 2016, eu recebi um convite para participar da 32ª Bienal de São Paulo. Foi a gota d’água para eu tomar coragem, chutar o balde e deixar a corporação. Era uma fase de instabilidade política e econômica no Brasil. Eu ouvi de muita gente que era maluquice trocar um emprego público e estável para viver de arte. Mas eu decidi acreditar no meu sonho.
Em 2020, veio a primeira exposição internacional de Nova York. Eu cheguei nos Estados Unidos em fevereiro, para ficar 80 dias. Mas logo depois começou o lockdown. A minha família queria que eu voltasse pro Brasil, mas eu decidi continuar em Nova York, e falei pra minha galeria: “Vou parar de ver televisão. Vou parar de ler as notícias. Se o mundo acabar, me avisa”.
Todo dia, eu ia caminhando um pouco mais de uma hora do Airbnb até o estúdio. Era inverno. Às vezes, eu ia caminhando na chuva, às vezes, na neve. Mas eu não podia perder aquela oportunidade. Aí eu ia para o atelier, me concentrava e assim eu consegui fazer 24 retratos. São pinturas que retratam líderes negros que foram silenciados na história brasileira.
Essa era uma série que eu tinha começado em 2018, inspirada na falta de imagens históricas dos negros. As únicas fotos e pinturas que eu encontrava objetificavam esses corpos. Nos meus retratos, eu procurava criar uma nova história. Aí, o MoMA, que é o Museu de Arte de Nova York, comprou 6 dessas pinturas, e meu trabalho passou a fazer parte da coleção do museu. A exposição, de fato, foi acontecer só em setembro, e todos os meus trabalhos foram vendidos.
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Depois disso, eu me senti com a casca grossa o suficiente para trabalhar em qualquer lugar do mundo. Com a grana, eu consegui construir uma casa, um atelier e uma escola que se chama Sertão Negro, em Goiânia. Num momento em que a educação e a cultura estavam sendo muito atacadas no país, eu achei que abrir uma escola de arte seria a atitude certa. Eu recebi muita ajuda na vida, e quero deixar a minha contribuição para artistas da nova geração. Quero compartilhar com eles o que eu aprendi sobre os códigos acessados nas galerias, nas instituições e nos museus.
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Hoje, o Sertão Negro tem aula de gravura, de cerâmica, de capoeira angola e de história da arte. O espaço tem 6 mil metros quadrados. A gente desenvolve práticas agroecológicas produzindo parte do nosso alimento, de forma orgânica. A gente tem banco de sementes crioulas, que foram desenvolvidas, adaptadas ou produzidas por agricultores familiares, quilombolas, indígenas ou assentados da reforma agrária.
Hoje, o Sertão Negro tem 30 pessoas fixas o que compõem essa comunidade de artistas em formação que frequentam a escola, participam das atividades e desenvolvem suas pesquisas. Um dos nossos projetos é dar autonomia pros artistas, garantindo para eles não só um lugar para trabalhar, mas para morar, que é o Jatobá Nascente. O Sertão Negro também possui três chalés com bioconstrução, que se conectam com o nosso programa de residência artística internacional, que recebe artistas do país e do mundo.
A gente vê a arte de uma forma expandida. A nossa referência são as comunidades tradicionais, tanto quilombolas quanto indígenas. Nesse contexto, a terra, a planta e todos os elementos naturais são sagrados. Uma pincelada no Sertão Negro não é mais importante do que uma semente plantada no solo. Cultivar um jardim num lugar que já foi um depósito de lixo é uma manifestação artística.
Nesse momento de superaquecimento do planeta, das queimadas, das grandes enchentes, a gente tem que encontrar outras formas de está no mundo, de usar a água, de construir nossas casas e de se alimentar. A receita já existe. Ela é ancestral e tá nas comunidades tradicionais. A humanidade tem buscado outros caminhos, mas eu acho que eles não tão dando muito certo.
Ao longo da vida, muitas das vezes eu ouvia vozes internas de que eu não pertencia a nenhum lugar. De que eu não podia fazer isso ou aquilo. Eu poderia ter parado no meio do caminho, se tivesse acreditado nessas vozes. Mas eu não sou uma pessoa de fugir da missão. Hoje, eu só peço força, sabedoria e discernimento para tocar o meu trabalho da melhor forma possível e deixar a melhor contribuição que eu puder pro mundo.
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Geyze Diniz: Nossas histórias não acabam por aqui. Confira mais dos nossos conteúdos em plenae.com e em nosso perfil no Instagram @portalplenae.
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