Para Inspirar
Conheça a história de como a resiliência trouxe a vitória, na décima quarta temporada do Podcast Plenae.
17 de Dezembro de 2023
Leia a transcrição completa do episódio abaixo:
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Emar Batalha: O Instituto Alimentando o Bem existe por causa da minha história de vida. Eu sei o que é passar fome. Eu sei o que é sofrer violência dentro de casa. Eu sei o que é esperar por uma oportunidade. A minha trajetória começou a ser esculpida lá atrás. Se eu não tivesse vivido o que eu vivi, acho que hoje eu não estaria fazendo filantropia.
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Geyze Diniz: Batalha não está apenas no sobrenome da designer de joias. Emar Batalha lutou muito para ir atrás da vida que sempre quis e hoje busca retribuir a ajuda que recebeu durante a sua trajetória, principalmente através do Instituto Alimentando o Bem, que fundou na pandemia e que se dedica na maior parte do seu tempo para ajudar outras mulheres a terem sua independência. Eu sou Geyze Diniz e esse é o Podcast Plenae. Ouça e reconecte-se.
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Emar Batalha: Meus pais se conheceram quando minha mãe tinha 14 anos de idade e o meu pai mais que o dobro da idade dela. Ela morava em Colatina, no interior do Espírito Santo, e trabalhava num posto de gasolina. Ele, fazendeiro na Bahia. Meus avós maternos eram analfabetos e nunca se preocuparam com a educação dos filhos. Então, aquele relacionamento foi visto como um meio pra família sair da pobreza.
O meu pai comprou duas casas, uma colada na outra. Em uma morava minha mãe, eu e meu irmão. Na casa vizinha, morava minha avó com os meus tios. Só que o meu pai levava uma vida dupla. Ele era casado. Todo mundo sabia da existência da minha mãe, inclusive a esposa dele. Em algum momento, ele se separou de corpos dessa primeira mulher, mas continuou casado legalmente.
O meu pai era uma pessoa muito complexa, de gênio difícil e caráter duvidoso. Com 27 anos, a minha mãe cansou de ser a outra e de viver naquela relação abusiva. Apesar de ter sido amante do meu pai por muitos anos, ela tinha os mesmos direitos de esposa. Então, ela entrou com um processo de separação e foi aproveitar a vida.
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Meu pai não aceitou o término do relacionamento. Ele, que não bebia, começou a beber. O comportamento dele mudou e ele se tornou um homem muito agressivo. Um dia, quando eu tinha apenas 11 anos, eu estava sentada na sala de casa e ele entrou. A minha avó percebeu que ele estava alterado e falou: “Vou preparar um café amargo”. Pra ela, que teve um marido alcoólatra, café amargo curava qualquer bebedeira.
Quando ela veio com o copo de café, o meu pai sacou uma arma e mirou na minha mãe. A minha mãe tinha apenas 1 metro e meio de altura, mas era muito esperta. Ela enfiou o dedo no gatilho e o tiro bateu na parede. Começou uma luta corporal, e a minha tia tirou uma faca que meu pai tinha na cintura. A gente gritou, um vizinho veio e conseguiu pegar o revólver do meu pai.
A minha mãe nunca registrou queixa, porque achou que foi um momento de loucura dele. Meses depois, ela viajou pra fazenda pra encontrar meu pai. Naquela época, não tinha celular, a comunicação era diferente. Dez dias depois o meu pai ligou em casa perguntando por ela. A minha avó falou: “Como assim? Ela foi te encontrar e não apareceu até hoje”.
Ele respondeu que tinha dado o dinheiro da pensão e que ela tinha ido embora. Mas dois dias após este telefonema, um capataz da fazenda apareceu lá em casa com o dinheiro. Eu me lembro até hoje, eu estava na sala. A minha avó pegou o telefone, ligou pra advogada da minha mãe e falou: “Pode ir atrás dele, porque ele matou ela”.
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Meu pai foi preso, mas ficou pouco tempo na cadeia. Quando ele saiu, vendeu tudo que tinha e foi embora pro Pará. A gente ficou abandonado à própria sorte e a fome chegou. Na maioria das vezes, a única refeição que tínhamos era na escola. Em casa, minha avó misturava macarrão com farinha pra render e garantir a refeição de todos os netos. Foi uma época muito dura.
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Aos 14 anos, eu comecei a trabalhar de babá. Os meus tios, que eram um pouco mais velhos, também saíram pra trabalhar. As coisas começaram a melhorar, mas com muita dificuldade. Na adolescência, eu me aproximei da outra família do meu pai, que morava em Vitória.
Hoje eu tenho plena consciência de que eu via neles uma tábua de salvação. A primeira mulher do meu pai, Dona Rosa, teve três filhos homens. O sonho dela era ser mãe de uma menina. Durante o processo de separação dos meus pais, antes da tragédia, o meu pai me levou para morar com a Dona Rosa, escondido da minha mãe.
Eu fui recebida de braços abertos e fiquei um mês e pouquinho em Vitória. Eu estudei numa escola melhor, eu entrei num shopping center pela primeira vez e descobri o que era um prédio com elevador, com porteiro e piscina. Essas poucas semanas definiram o que eu sou hoje. Aquela era a vida que eu queria, a vida que eu buscaria pra mim. E eu sabia que o primeiro passo que eu deveria dar era através da educação.
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Fiz um curso técnico de contabilidade e passei no vestibular de ciências contábeis. Meus irmãos de Vitória me ajudaram a pagar as primeiras parcelas da faculdade e eu consegui um ótimo emprego numa indústria de celulose na Bahia. Pra conciliar o trabalho com os estudos, eu viajava quase 400 quilômetros toda semana. Eu ia de ônibus e pra voltar pegava carona na estrada, pois só assim chegaria a tempo.
Nessa época, eu tinha uma cunhada que vendia joias de prata. Ela me convidou pra vender as peças, em troca de uma comissão. Eu, que sempre fui muito comunicativa, comecei a oferecer as joias dentro da empresa e da faculdade. Em seis meses, percebi que esse negócio era mais rentável do que o meu emprego, e pedi demissão.
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Eu fui vender as peças de porta em porta, em Colatina. Eu pesava 48 quilos e a minha bolsa pesava 30. Com as joias, eu paguei a minha faculdade e as contas da casa da minha avó. Aos 24 anos, eu engravidei do meu namorado, que era o gatão da cidade. Sabe aquela história, né, do pai rico, filho nobre e neto pobre? Ele era o neto pobre. Era um namoro doentio, marcado por brigas e pelo alcoolismo dele. Só mais tarde, depois de muita terapia, eu entendi que eu estava tentando repetir a trajetória dos meus pais.
Aos 29 anos, eu não aguentei mais aquele relacionamento abusivo e me separei. Eu já tinha loja em Colatina, e decidi refazer a minha vida em Vitória. Na capital, eu comecei a entender que eu poderia ser mais do que uma vendedora. Eu poderia ser uma designer de joias. Eu já sabia muito sobre o mercado e conhecia as fábricas e os ourives. Eu fiz alguns cursos técnicos de desenho e passei a comprar revistas importadas. As minhas criações fizeram muito sucesso.
Um dia, a Preta Gil foi pra Vitória fazer um show. A gente fechou uma permuta em joias e ela apareceu em um evento que eu organizei pras clientes. Eu contei pra Preta a minha história de vida e ela me encorajou a ir pro Rio de Janeiro. Com a ajuda dela, eu conheci vários artistas. As minhas joias começaram a aparecer na mídia e nas novelas da Globo. Essas eram as maiores vitrines que existiam, antes das redes sociais. Meu negócio decolou. Eu abri uma loja em São Paulo e outras em Brasília e Salvador.
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Eu também consegui me refazer do ponto de vista pessoal. Me mudei pra São Paulo, me casei com um homem maravilhoso e tive uma linda filha. A minha vida estava ótima, até que chegou março de 2020.
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Eu, meu marido e minha filha pegamos Covid bem no comecinho da pandemia. A gente está entre os primeiros 100 casos da doença no Brasil. Depois do período de isolamento, eu viajei pro Guarujá, pra minha casa da praia. Quando cheguei, a minha cozinheira me contou sobre um deslizamento de terra em uma comunidade carente pertinho da minha casa. Mais de 500 pessoas ficaram sem teto e a pandemia estava agravando muito essa situação. Tinha muita gente passando fome.
Ela sugeriu que a gente fizesse marmitas e eu topei. Como eu já tinha tido covid, fiquei na linha de frente e fui distribuir numa igreja. No primeiro dia, a gente preparou 30 marmitas e apareceram 80 pessoas. No segundo dia, a gente fez 80 refeições e vieram 120 pessoas. Aí, a gente preparou 120 e apareceram 170. Até que eu montei uma cozinha industrial no Perequê, um bairro do Guarujá. Comecei a pedir doações pela internet e, durante a pandemia, a gente chegou a distribuir quase 30 mil marmitas.
Dessa linda iniciativa acabou nascendo uma ONG: o Instituto Alimentando o Bem, que se dedica ao desenvolvimento territorial através das mulheres. A gente entende que a mulher é o pilar da família e quando bem estruturada consegue apoiar todas as pessoas do seu núcleo.
O instituto tem várias frentes. A principal delas é a capacitação das mulheres pra que elas possam ter renda assumindo assim o protagonismo de suas vidas. A gente tem uma fábrica de cerâmica, uma de chocolate, uma de costura e uma de vela. Além disso, a gente tem um projeto de moradia pra resolver o problema de quem vive em lugares de risco. O Instituto já realocou 53 famílias que viviam em palafitas, em uma área de mangue e vai realocar mais 190 famílias.
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Hoje, eu passo 70% do meu tempo batendo na porta dos outros.
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Mas agora, em vez de oferecer joias de prata, como eu fazia lá em Colatina, eu peço dinheiro para ajudar outras pessoas. Eu ainda trabalho como designer, é minha profissão e minha arte. Mas, nesta área eu já alcancei todos os meus objetivos. O meu grande amor agora é o Instituto.
Eu sinto que eu tenho duas missões com a ONG. Uma é devolver ao mundo o que o mundo me deu. Ao longo da vida, eu recebi muita ajuda de mulheres, e agora eu preciso dar as mesmas oportunidades pra outras mulheres que passam por dificuldades como eu passei. A segunda missão é conscientizar as mulheres que elas precisam olhar pra outras mulheres.
A gente pode começar a fazer isso no nosso entorno. As classes mais favorecidas têm funcionárias em casa. Quanto tempo essa pessoa gasta para chegar ao trabalho? Quem cuida dos filhos dela enquanto ela está fora? São perguntas que a gente tem que fazer e tentar ajudar. O dinheiro é uma ferramenta pra dar prazer e conforto. Eu vendo joias. Quem sou eu pra julgar como as pessoas gastam? Eu me considero capitalista, mas procuro ser uma capitalista consciente.
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Eu sempre fui ligada à filantropia. Mas, quando eu olho o que eu tinha e a necessidade do mundo, eu vejo que o que eu fazia no passado não era nada. A filantropia, pra gente, tá ligada ao que sobra, ao que não fará diferença para mim. E não é assim. A pandemia me mostrou que não adianta a gente ficar esperando ter tempo e dinheiro sobrando pra ajudar o próximo. A hora de fazer é agora.
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