Para Inspirar

Gastronomia e religião: um relacionamento profundo

A relação entre gastronomia e religião é mais antiga do que se imagina e reflete tradições culturais, rituais e crenças ao longo dos séculos

25 de Outubro de 2024


O terceiro episódio da décima sétima temporada do Podcast Plenae se foi, mas deixou saudade. Aprendemos com a chef Morena Leite o valor das tradições familiares e, sobretudo, as relações aparentemente invisíveis que podem surgir onde menos imaginamos - e, por isso, é preciso estarmos atentos. 

Representando o pilar Espírito, Morena fala principalmente sobre a gastronomia como ponte para outros mundos, culturas, para dentro de si e, porque não, para outras religiões. Foi por meio do seu ofício que ela se reconectou com o seu lado mais espiritualizado e hoje vê de forma muito clara a relação íntima que esses dois universos possuem. 

Hoje, vamos trazer um pouco mais sobre esse laço poderoso e mais antigo do que imaginamos. Acompanhe a seguir!

A comida no centro da celebração


A gastronomia e a religião podem se encontrar em muitas curvas desse caminho. O principal, e talvez mais óbvio, é a presença das comidas específicas em celebrações específicas. A páscoa, por exemplo, é um feriado cristão cujo cardápio é bem estabelecido e cheio de regras - e te explicamos um pouco mais sobre isso e sobre o Pessach, a “páscoa” judaica, aqui nesse artigo.

Aos fiéis mais praticantes, por exemplo, há a privação da carne quarenta dias antes da data oficial, em respeito ao sacrifício de Cristo, a chamada quaresma. Um dos significados por trás desses jejuns está relacionado ao auto privar-se de prazeres e impulsos da "carne" e remissão de pecados, como pontua esse artigo da PUC. Já no dia oficial, costuma-se servir peixe ou outra especiaria e, somente no dia seguinte volta-se a comer então a carne. 

Até mesmo o ovo era proibido durante esse período, então os povos antigos costumavam decorá-lo para presentear as crianças e entes queridos logo depois da celebração. Esse costume, aliás, foi o precursor dos nossos já conhecidos ovos de chocolate, que surgiram por volta do século 19, na França e na Alemanha - e aperfeiçoados desde então. 

A comida pode carregar significados simbólicos profundos para esses dogmas, o pão e o vinho, por exemplo, representam o corpo e o sangue de Cristo durante a Eucaristia. Outros rituais celebram as colheitas e farturas e homenageiam santos, como no caso das festas populares juninas, que celebram com danças e comidas, geralmente à base de milho, os santos católicos, como segue explicando o artigo da PUC.

Já durante o Sêder, como é chamado o jantar que abre as comemorações judaicas, há muito vinho, pão sem fermento (conhecido como Matsá), ovo cozido (chamado de Betsá)  além de outras comidas específicas que representam cada uma um diferente simbolismo da festa. E elas são protagonistas nesse momento. 

Há ainda a comida de terreiro, provavelmente a maior herança africana preservada em nossa história, e mencionada no episódio por Morena Leite. “Quando eu me interessei por compreender melhor a espiritualidade, por exemplo, foi um movimento natural me debruçar sobre a culinária das religiões. A comida dos orixás e dos terreiros me ensinou sobre o candomblé. O candomblé entrou na minha vida há uns 20 anos, quando eu conheci meu pai de santo, que é o Paulo de Oyá. Eu descobri que tenho três orixás de cabeça, como a gente diz: Xangô, Oxum e Iemanjá”, conta. 

Em uma celebração candomblecista ou umbandista, a alimentação oferecida é diferente a cada um dos deuses, chamados de orixás, possui diferentes funções e é chamada de “comida de santo”. “Não existe candomblé sem comida. É uma religião que gira em torno de comer, daquilo que se oferece aos orixás e da maneira como nos relacionamos com essa comida”, explica o professor de antropologia da Universidade Federal da Bahia, Vilson Caetano, à revista Gama.

Proibições e condutas


Certos alimentos são considerados sagrados em diversas tradições. No hinduísmo, por exemplo, a vaca é um animal sagrado e sua carne é evitada e o seu leite é oferecido aos deuses por ser considerado sagrado. “Com os hindus, aprendi que o corpo é a nossa morada e eu não posso negligenciar o meu templo. Por isso eles fazem rituais de limpeza todos os dias ao acordar”, relata Morena em seu episódio. 

A tâmara, para os islãs, é frequentemente consumida durante o Ramadã para quebrar o jejum. E os budistas, por pregarem o respeito a todos os seres vivos, buscam seguir uma dieta vegetariana. Há ainda diretrizes específicas sobre o que pode ou não ser consumido em várias religiões - como a carne de vaca, que mencionamos anteriormente, no hinduísmo.


O judaísmo, com suas leis Kosher, permitem somente a ingestão de animais ruminantes e com cascos fendidos. Isso inclui vacas, ovelhas e cabras - mas porcos ou coelhos, por exemplo, estão fora da lista. No islamismo há as leis Halal, em mais um exemplo claro de como a religião pode moldar hábitos alimentares. Os muçulmanos também não podem consumir porco e ainda alimentos com álcool etílico, carnes ou vegetais intoxicados. 

Eles só devem comer frango ou carne bonita caso o abate tenha sido Halal, ou seja, o animal degolado vivo, com o corpo voltado para a cidade sagrada de Meca e pelas mãos de um muçulmano, como conta esse artigo no jornal Estadão. Além disso, a faca deve ser muito afiada, para que a morte seja rápida e não gere sofrimento ao animal.

Os peixes, aqueles que saem da água vivo são considerados Halal, bem como os animais que vivem na terra e na água, como crocodilos. Os vegetais, frutas, sementes e produtos minerais ou químicos também podem, contanto que não estejam intoxicados ou causem qualquer prejuízo à saúde.

Outras relações


A partilha de refeições é um importante aspecto da vida comunitária em geral, e como te contamos aqui, o ser humano é a única espécie que se senta ao redor de uma mesa para partilhar refeições, além de ser a única que pensa sobre o que vai se alimentar e submete esse alimento a um método de cocção. 

Para algumas religiões, esse momento de partilha se torna ainda mais importante. Isso pode ser visto em eventos como o Sêder judaico ou as refeições comunitárias na igreja católica. No espiritismo, parte da sua jornada rumo à elevação espiritual é inclusive alimentar os pobres e estar envolvido em alguma atividade do tipo, como sopa no inverno para moradores de rua. 

A comida pode ainda ser política dentro de manifestações que são espirituais. No caso dos povos originários, apesar de não se resumirem a um só doma e sim, vários, a comida tem um papel espiritual e social importante porque ainda vêm majoritariamente de sua própria caça ou plantação, ou seja, há todo o processo de suas mãos envolvidas, da comida como subsistência coletiva e de uma marginalização da sociedade ainda muito pungente. 

“Falar sobre comida e religião é refletir também sobre relações políticas a partir de populações que historicamente passaram pelo genocídio, que foram escravizadas e invisibilizadas, mas que não obstante a isso, na contramão de tudo que o discurso colonialista alardeou, estão aí, comendo e bebendo, celebrando os seus ancestrais por meio de verdadeiros banquetes porque, desde cedo, descobriram que comida é força e que o comer está investido de poder, afinal, nada mantém-se vivo sem ele”, ressaltam os editores da nova edição da Revista de Alimentação e Cultura das Américas (RACA), publicada pelo Programa de Alimentação, Nutrição e Cultura (Palin) da Fiocruz Brasília, Vilson Caetano Sousa Junior, da Universidade Federal da Bahia, e Denise Oliveira, vice-diretora da Fiocruz Brasília e coordenadora do Palin.

Comida, afinal, nunca é só um prato sobre a mesa.

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