Para Inspirar
Na quarta temporada do Podcast Plenae - Histórias para Refletir, conheça a jornada espiritual da modelo e apresentadora Isabella Fiorentino
21 de Março de 2021
Leia a transcrição completa abaixo:
[trilha sonora] Isabella Fiorentino: Dizem que a gente vai pra Deus por amor ou pela dor. Eu fui pelo segundo caminho. A religião fazia parte da minha vida, mas eu me voltei de verdade a Deus, a Nossa Senhora, à oração e à meditação católica na minha gravidez. Ser mãe era tudo que eu mais queria na vida. Só que eu nunca imaginei engravidar de trigêmeos univitelinos! Eu passei a gestação em repouso absoluto, correndo um risco enorme de perder um, dois ou até mesmo os três bebês. Foi um período de muita introspecção e quietude, em que a fé se tornou a minha melhor amiga, minha companheira. Geyze Diniz: A apresentadora Isabella Fiorentino sempre teve a fé como uma presença constante em sua vida. Mas foi durante a gravidez de seus três filhos que ela percebeu que mesmo quando a vida prepara alguns percalços a fé pode te manter no prumo com força e serenidade. Acompanhe o lindo relato da Isabella dividindo com a gente as suas percepções sobre espiritualidade e fé. Ouça no final do episódio as reflexões da especialista em desenvolvimento humano, Ana Raia, para te ajudar a se conectar com a história e com você mesmo. Eu sou Geyze Diniz e esse é o Podcast Plenae. Ouça e reconecte-se. Isabella Fiorentino: Eu venho de uma família católica praticante. Desde pequena, eu sou acostumada a agradecer a Deus, a rezar antes de comer e à noite. Em momentos difíceis, eu peço: “Deus, eu preciso da Tua ajuda”. E foi assim quando o meu irmão Fábio morreu de leucemia, aos 15 anos. Eu tinha 17. Ele era meu melhor amigo, a gente estudava na mesma escola, ficávamos juntos no recreio. Foi uma tragédia. Naquela época, eu já estava trabalhando como modelo e quis desistir da minha carreira. Eu só tinha vontade de ficar em casa com a minha mãe, com minhas irmãs e meu outro irmão. Até hoje, a religião é o que segura a minha mãe. E foi o que me deu gás pra voltar à vida. Eu carreguei a espiritualidade dentro de mim durante toda minha carreira. Teve uma época que eu morei em Milão e dividi um quarto com várias meninas. Enquanto elas escutavam música pop, eu ouvia um CD do Padre Marcelo Rossi. Na época, ele tava começando a ficar famoso. As minhas amigas me zoavam: “O que que você tá ouvindo, Isabella!?” E eu falava: “Gente, eu amo!”. Eu realmente me sentia bem escutando música religiosa. [trilha sonora] Com 20 e poucos anos, eu fui diagnosticada com anorexia. Eu não conseguia comer, eu não salivava e eu enxergava a comida como inimiga. Eu não queria ganhar peso, porque eu dependia daquele corpo magro pra trabalhar. O meu psiquiatra me ajudou muito quando perguntou qual era o maior sonho da minha vida. Eu disse, sem pestanejar, que era ser mãe. Ele falou que, com aquela alimentação dificilmente eu conseguiria engravidar. O alerta dele foi crucial pra eu querer me tratar. Eu me curei com remédio e com terapia. Uns dez anos depois, já casada, eu tomei hormônios para ativar a ovulação, mas eu não engravidei. Eu estava numa época muito importante de trabalho, renovando um contrato muito bom com o SBT e falei: “Quer saber? Não é a minha hora de ser mãe”. Então eu desencanei e achei melhor esperar mais alguns meses. No momento em que eu desisti de tentar, não é que eu fiquei grávida… Eu descobri num teste de farmácia, mas eu pulava de alegria na hora e agradeci tanto a Deus pela realização daquele sonho. No primeiro ultrassom, eu já descobri que eu estava esperando trigêmeos univitelinos. Eu tinha uma placenta pra três bebês idênticos, um acontecimento raríssimo na natureza. A gestação fazia parte do meu sonho de ser mãe. Eu tinha vontade de apresentar o Esquadrão da Moda grávida, de falar sobre moda gestante, de exibir meu barrigão na praia... E eu sonhava, claro, com um parto natural. Só que saiu tudo diferente do que eu tinha imaginado. [trilha sonora] Pra começar, a gravidez durou menos de seis meses. E no segundo mês, eu já entrei em repouso absoluto. Eu, que sou uma pessoa tão ativa, de repente tive que me ver numa cama. Eu só levantava pra ir ao banheiro e tomar um banho com a ajuda da minha mãe, claro. Eu me sentia fraca, com falta de ar, porque meu pulmão já estava sendo espremido pelos bebês. Na época, não tinha Instagram, nem um canal de comunicação que eu pudesse compartilhar o que estava acontecendo comigo. Eu passei muito tempo sozinha, porque embora meu marido, minha mãe, minha sogra e minhas irmãs ficassem comigo, todo mundo tinha suas coisas pra fazer. Deitada, em silêncio, eu me tornei mais introspectiva, mais reflexiva. Naturalmente, a fé aflorou dentro de mim e se tornou a minha maior companheira. Eu conversava com Deus e Nossa Senhora e perguntava: “Por que eu fui escolhida pra ser mãe de trigêmeos?” Na décima segunda semana de gravidez, eu fiz um exame e o médico disse que meus filhos poderiam ter síndrome de down. Tirando a morte do meu irmão, foi o momento mais difícil da minha vida. [trilha sonora] Apesar de toda aquela angústia, eu me senti muito poderosa. Porque estava nas minhas mãos que esses meninos nascessem. Eu disse pros três dentro na minha barriga que eu seria uma mãe maravilhosa pra eles, não importava como eles viessem. A minha bolsa estourou com 27 semanas de gestação. Eram 3 horas da manhã, eu estava deitada, dormindo, quando senti o líquido vazando. Meus filhos nasceram às 6h da manhã. Mas, eu não consegui nem colocá-los no meu colo. Eu só vi as cabecinhas minúsculas e pretinhas passando bem rápido, porque eles foram levados direto pra UTI e entubados. O primeiro que chegou foi o Bernardo, com 1 kg, depois o Lorenzo, com 1,2 kg, e por último o Nicholas, com 800 gramas. Era praticamente um saquinho de açúcar. O meu marido estava muito emocionado e repetia: “Eles são muito pequenos, eles são muito pequenos”. Eles eram mesmo. Eles cabiam na palma da minha mão. Os três passaram 90 dias na UTI, um período que foi um grande teste pra minha fé. Porque imagina, eu tive três filhos, mas voltei pra casa sem nenhum deles. Eles foram meus companheiros durante a gravidez. Naquele momento eu me senti muito sozinha. [trilha sonora] Eu ficava no hospital das 7h da manhã até meia noite. O Bernardo teve uma infecção e suspeita de meningite. O Lorenzo, com três dias de vida, sofreu uma hemorragia cerebral, por causa de uma pressão de ar no pulmão que estourou uma veia do lado direito do cérebro. Ele passou por uma cirurgia pra colocar uma válvula na cabecinha e o médico já avisou: foi uma hemorragia extensa, provavelmente, vai deixar sequela. E ele realmente ficou com um atraso motor. [trilha sonora] Foi muito duro, mas naqueles três meses, eu nunca tive uma expressão de “não aguento mais, tô cansada ou coitada de mim”. [trilha sonora] Eu falava: “Deus, não quero saber, eles têm que ficar bem, eu quero esses moleques na minha casa. Eu preciso deles comigo, não importa como nem com que sequela”. E foi Deus quem me segurou pra eu não enlouquecer e não perder as esperanças. Eu não fiz promessa, porque pra mim fé não é barganha: “Eu não como isso, você me dá aquilo”. O que eu faço são mortificações, que são rituais de oferecer a Deus algo que eu não goste de fazer e que eu precise fazer. Por exemplo, se eu preciso acordar muito cedo e não tenho vontade, eu falo: “Deus, eu ofereço esse sacrifício pra você, porque eu te amo muito”. Mas, sem esperar nada em troca. Eu aceito as coisas na minha vida como elas são, porque eu entendo que tudo é pra minha evolução. Se algo não sai conforme os meus planos, eu não me revolto, não reclamo, eu não fico perguntando o porquê. A minha pergunta é pra quê. O que eu posso fazer para tirar algo bom daquela situação? Eu conheço muitas religiões e entendo um pouco a história da energia e da lei da atração. Eu concordo que é importantíssimo ter pensamento positivo, mas colocar na nossa conta tudo que acontece na vida, acho cruel. Na minha visão, as coisas boas e as coisas ruins podem acontecer com qualquer um de nós. A diferença é que a espiritualidade e a fé dão forças pra gente enfrentar momentos de dor, de dificuldade. E Deus pra mim é uma pessoa, que conversa comigo, que sabe o meu nome, que sabe todos os fios de cabelo da minha cabeça. Ele não é uma coisa, não é uma estrela, uma energia. Nos momentos de angústia com as crianças, fez uma grande diferença na minha vida ter uma pessoa ao meu lado, não uma energia. [trilha sonora] Os meninos foram pra casa com uma semana de intervalo cada um. Primeiro, chegou o Nicholas. Mas eu sentia uma culpa enorme de ver um deles quentinho, no silêncio do berço, enquanto os outros estavam cheios de furos, fios e com um monte de apito no ouvido. Foram semanas de vai-volta, vai-volta de casa pro hospital. Eu tenho até uma foto de quando, finalmente, o Bernardo, o último a ter alta, chegou em casa. Foi um alívio! Aquele período difícil tinha definitivamente ficado pra trás. [trilha sonora] Eu sou muito fiel e grata a Deus. Espiritualidade é algo que se sente, não precisa ter explicação. Tem até aquela frase durante a missa, na hora da consagração, onde o padre diz: eis o mistério da fé. Várias coisas do catolicismo eu não entendo, mas eu não questiono. Eu converso com Deus em vários momentos do dia. De manhã, eu faço uma oração de agradecimento e oferecimento de obras. Ao meio-dia, eu rezo o Angelus, que é uma tradição que celebra o momento em o Anjo anunciou a Nossa Senhora a vinda do menino Jesus. Às 3 da tarde eu rezo o Terço da Misericórdia. E às seis da tarde, eu rezo o rosário. Eu não sou muito apegada a santo, amuleto, nem tenho superstição. Eu carrego o terço na minha bolsa só pra poder rezar sem perder a conta. Toda semana, eu participo da missa e também recebo em casa por volta de dez amigas para um grupo de oração. A gente reza o terço, medita e estuda a palavra sagrada com a ajuda da nossa diretora espiritual. Hoje, eu procuro transmitir a espiritualidade e a fé pros meus filhos de uma maneira bem orgânica. À noite, antes de dormir, faço uma atividade com eles que se chama exame de consciência. Primeiro, a gente reza o Pai Nosso, a Ave Maria e agradecemos pelo dia. Aí eu pergunto: “O que vocês gostariam de agradecer a Deus pelo dia de hoje?” Eles respondem e em seguida eu pergunto: “E o que vocês fizeram hoje que poderiam ter feito melhor?” E aí eles analisam as atitudes deles, como falar alto com alguém ou esquecer de agradecer antes de comer, por exemplo. Mas é um ensinamento leve e amoroso. E eu digo pra eles: Deus é teu Pai. Deus é teu amigo. Deus é amor. [trilha sonora] Ana Raia: A vida é uma experiência de movimentos e mudanças constantes. Fazemos muitos planos, temos grandes sonhos, muitas expectativas. Mas, a real é que muitos desses eventos são inesperados e inevitáveis. Alguns deles são bênçãos, outros pedem muito protagonismo e alguns nos tiram o chão e nos deixam sem ar. E esses, que muitas vezes são os mais difíceis de aceitar, muitas vezes nos tiram do caminho esperado e nos levam para onde realmente devemos estar. E a fé, quando escolhida pra lidar com essas situações, nos conecta com os mistérios da vida, traz compreensão, clareza, faz a ligação entre o conhecido e o desconhecido, nos aproxima do sagrado e nos motiva a continuar adiante. E a história de Isabella não foge dessa realidade. Segundo Immanuel Kant, que foi um filósofo alemão: "Avalia-se a inteligência de um indivíduo pela quantidade de incertezas que ele é capaz de suportar". Não podemos ter controle de tudo, mas podemos escolher como enfrentar o inesperado e a fé é uma dessas escolhas. A fé, não importa qual, tem o potencial de ser a ponte da travessia que nos guia com confiança até o desconhecido. E, no momento atual, frágil, incompreensível, em que prevalece a ansiedade e não linearidade dos eventos, a fé se torna uma ferramenta essencial em nossas vidas. Pois a fé é sobre isso, sobre acreditar e confiar. Segundo o escritor inglês William Shakespeare: "Há mais coisas entre o céu e a terra do que pode imaginar nossa vã filosofia". [trilha sonora] Geyze Diniz: Nossas histórias não acabam por aqui. Confira mais dos nossos conteúdos em plenae.com e em nosso perfil no Instagram @portalplenae. [trilha sonora]
Para Inspirar
Ouça e leia o episódio da nona temporada do Podcast Plenae, conheça a história dos irmãos Filpi e como foi para sua família a transição de gênero de Miguel.
21 de Agosto de 2022
Leia a transcrição completa do episódio abaixo:
Miguel: Minha mãe me contou que, quando eu tinha 5 anos, eu falei pra ela: “Eu sou um garoto e eu gosto de menina”. Assim, na lata, com essas palavras. E ela respondeu: “Ah, é uma fase, vai passar.” Eu interpretei aquilo como uma rejeição. Várias situações desse tipo fizeram de mim uma pessoa muito revoltada. Eu nasci num corpo de mulher, mas sempre me encaixei melhor no mundo entendido como masculino. Aos 24 anos, eu decidi fazer a transição de gênero, e a minha vida mudou.
[trilha sonora]
Geyze Diniz: Miguel e Natália são gêmeos idênticos, pelo menos de acordo com a ciência, mas sempre se enxergaram completamente diferentes. Desde brigas na infância à estranhezas durante a adolescência, os gêmeos nunca se viram tão distantes e afastados por conta da maioria querer que eles fossem iguais. Mas a proximidade entre os dois só veio quando as diferenças começaram a ser reconhecidas. Miguel passou por uma transição de gênero e hoje é um homem trans que mostra que o respeito pode ser o maior elo de amor e união em qualquer relação. Conheça a história de mudanças, respeito e amor dos Irmãos Filpi.
Ouça no final do episódio as reflexões da Neurocientista Claudia Feitosa-Santana para te ajudar a se conectar com a história e com você mesmo. Eu sou Geyze Diniz e esse é o Podcast Plenae. Ouça e reconecte-se.
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Miguel: “Existe uma visão romantizada de que a relação entre gêmeos é a mais bonita que existe. As pessoas acham que, porque os irmãos nasceram juntos, eles vão se identificar muito e até sentir o que o outro sente. Comigo não foi bem assim. Eu não cresci sendo o melhor amigo da minha irmã, e nem ela a minha melhor amiga. Na verdade, eu tenho poucas memórias de uma boa convivência entre nós. Eu lembro mais das brigas.
Eu sempre me comparei muito com a Natália. A gente é muito parecido fisicamente e, pra mim, ela é uma referência do que tava certo. Desde pequena, ela seguia aquele modelo feminino estabelecido pela sociedade. Gostava de maquiagem, adorava arrumar o cabelo, fazia a unha. Já eu jogava bola e não gostava de roupa apertada. Eu detestava ter o cabelo comprido, mas não cortava, porque morria de medo da minha mãe ficar triste. Meus pais nunca me falaram nada, mas eu sentia que eles queriam que eu fosse um pouco mais parecido com a Natália. A presença da minha irmã era um constante lembrete de que tinha alguma coisa errada comigo, só que eu não sabia o que que era.
Natália: Eu tive uma infância tranquila, sem grandes preocupações comigo mesma. Mas o meu irmão, não. Desde pequenininho, ele era bravo, agressivo com todo mundo, principalmente comigo, seu saco de pancadas. Eu lembro que a gente tinha uns 10 anos e alguém chamou ele de “moleca”. Ele ficou transtornado de um jeito, que eu não entendi o tamanho da revolta.
O Miguel explodia por causa de coisas que eu considerava muito pequenas, tipo se arrumar para uma festa. Teve o casamento de um primo que ele fez um escândalo porque ele não queria colocar um vestido. Ele chorava e falava: “Eu não quero arrumar o cabelo, eu não quero pôr essa roupa”. Ele tava muito incomodado, mas não sabia se comunicar direito e não sabia comunicar o que tava sentindo. Depois de muita insistência nossa, ele finalmente se vestiu e a gente acabou indo pro casamento. Mas, dava pra ver que ele estava muito triste.
Em casa, o Miguel era naturalmente o centro das atenções, porque ele peitava os meus pais em relação a tudo. Questionava, literalmente, qualquer ordem. Hoje eu vejo com clareza que a minha mãe e meu pai sentiam que precisavam dar mais atenção pra ele. Mas, quando eu era menor, interpretava essa preocupação como preferência. Eu achava que o Miguel era o filho mais amado e eu acabava me sentia meio sozinha, sabe? Escanteada. Pra não criar mais problemas na família, eu engolia os sapos e obedecia tudo o que meus pais mandavam, mesmo sem concordar. Eu falava sim pra todo mundo, menos pra mim.
Miguel: Quando a gente tinha 16 anos, a Natália e eu fizemos intercâmbio pros Estados Unidos, cada um pra um lugar.
[trilha sonora]
Eu já tinha entendido que eu me sentia atraído por mulheres. Mas, mesmo assim, eu queria desesperadamente me encaixar na sociedade normativa. No Brasil, eu tentava esconder o óbvio e levava uma dupla vida. Na escola e na família, eu tentava disfarçar que gostava de meninos. Cheguei até a ter dois namoradinhos, por livre espontânea pressão social. Foi horrível, horrível. Era um sacrifício beijar na boca deles, era um sacrifício falar que eu tava namorando um cara.
Aí, quando eu cheguei na escola americana, eu ouvi dos amigos: “Mas por que você tá mentindo pra gente? Não tem problema nenhum você gostar de mulher”. Aquele acolhimento foi libertador. Eu me senti muito à vontade e decidi que eu não ia mais mentir. Ainda nos Estados Unidos, eu telefonei pra Natália e falei: “Ná, preciso te contar uma coisa. Eu sou lésbica”. Ela reagiu com naturalidade, porque na verdade ela já tinha percebido.
Assim que eu cheguei no Brasil, dei a notícia pro resto da família. O meu pai foi bem de boa, falou que pra ele o importante era eu ser feliz. Minha mãe começou a chorar e disse que tinha expectativas pra mim. Eu respondi: “Mãe, a sua expectativa é casamento? É filho? Eu também quero casar e ter filhos”. Até que ela aceitou rápido, assim. Em pouco tempo eu já tava apresentando a minha namorada pra família. Tirei um “pesaço” das costas.
[trilha sonora]
Eu passei no vestibular de engenharia, mudei de cidade, cortei o cabelo e aí comecei a comprar roupas na sessão masculina. Aí eu pensei: “Beleza, resolvi meu problema. Sou lésbica, e é isso”. Só que não foi o que aconteceu. Eu ainda não me sentia nada bem, continuava me sentindo deslocado. E eu odiava me olhar no espelho, odiava meu corpo, odiava não ter barba. Os seios, então, eu não suportava. Pra esconder, eu apertava tanto o top, que me machucava. Eu não gostava de entrar no banheiro feminino, e não gostava de ter voz fina. Bom, enfim, eu não era mulher.
[trilha sonora]
Lá pelos meus 22 anos, eu mergulhei numa depressão. Passei uns dois anos pra baixo, assim, sem ver graça em nada ao meu redor. Eu já tava conformado em levar uma vida inteira infeliz, até que um telefonema em 2019 mudou a minha vida. Uma amiga me convidou pra ir a um bar com mais gente, e aí entre elas um boy que eu não tinha ideia de quem era. Eu detestei saber que um cara ia junto. Eu tinha completo horror a homem, odiava, assim, gratuitamente. Acho que Freud explica, né? Hoje eu entendo que eu sentia inveja deles.
Eu não tinha vontade nenhuma de sair de casa, mas acabei indo ao bar. Quando eu cheguei no rolê, a minha amiga falou: “Oh, só pra você saber, tá, ele é um cara trans”. Nossa, a minha cabeça bugou na hora. Eu falei: “O quê??”. Eu botei esse cara na parede e disse: “Pode me explicar tudo!”. Depois que eu fui saber que era o Luca Scarpelli, ele era um dos poucos youtubers que produzia vídeos sobre o universo trans.
O Luca me falou sobre o trabalho, sobre a família, sobre os sentimentos dele. E eu me identificava com cada frase que ele falava. Ele parecia um clone meu que tava feliz e bem resolvido. Eu fiquei tão alucinado, que fui embora do bar e passei 3 dias trancado em casa, pesquisando sobre transição de gênero e chorando horrores. Eu sabia que isso existia, só que até então era uma coisa muito distante do meu universo, e eu não conhecia ninguém que tivesse feito. Bom, procurei ajuda psicológica e médica e, aos 24 anos, comecei o meu processo de transição.
[trilha sonora]
Natália: Eu fui a primeira pessoa da família pra quem o Miguel falou a novidade. Eu não fui pega de surpresa quando ele contou que era lésbica. Mas, a transição de gênero confesso que eu não tava esperando. Eu não sabia nada sobre desse assunto e talvez eu nunca vá entender completamente o que é. Mas eu sabia que não precisava entender, eu só precisava respeitar. Então, quando o Miguel me falou, eu respondi: “Olha Mi, eu não sei o que você tá falando, não tenho ideia, mas vambora. Se é o que vai te fazer feliz, pra mim é a única coisa que importa. Então, conta comigo pro que você precisar”. Pros meus pais o anúncio foi um choque…
Miguel: Quando uma pessoa faz uma transição de gênero, quem tá ao redor dela transiciona junto. Eu sabia que eu podia perder os meus pais pra sempre, que talvez eles não fossem aceitar a minha decisão. Só que eu tava tão feliz, eu tinha tanta certeza de que era a coisa certa, que nada, nenhum obstáculo ia me impedir de concretizar o meu plano. Eu passei 24 anos sendo triste e solitário. Não tinha sentido eu passar o resto da vida me sentindo miserável em função do que outras pessoas queriam pra mim.
A minha terapeuta resolveu chamar os meus pais e a minha irmã no consultório, pra uma sessão em família. A minha mãe só chorava, se lamentava que eu ia me mutilar. Quando a psicóloga perguntou o que o meu pai pensava sobre mim, ele respondeu que sentia decepção, que era um desperdício eu não poder engravidar. Ele disse que nunca me enxergaria como um filho. Foi difícil ouvir essas palavras, só que ao mesmo tempo eu pensava: “Meu pai e minha mãe nunca me aceitaram mesmo. Que se dane, eu vou em frente de qualquer jeito”.
Natália: Meus pais não disseram exatamente o que Miguel queria ouvir. A palavra “decepção” foi muito forte, mas eu interpretei que o que meu pai tava falando era como médico, um médico que tava preocupado acima de tudo com a saúde do filho. Ele tava inconformado que o meu irmão tomaria hormônio e acabaria com o corpo dele. Eu lembro que o meu pai falou: “Mas ele tem uma saúde perfeita e quer jogar fora por causa de um pensamento temporário, de uma preocupação estética?”. Então, eu acho que meu pai usou a palavra “decepção” nesse sentido, não que ele tava decepcionado com o Miguel enquanto pessoa.
Meu pai perguntava pro meu irmão: “Você não tá satisfeito em saber quem você é por dentro? Precisa mudar por fora também?”. Acho que o medo dos meus pais era que o Miguel se arrependesse e não pudesse mais voltar atrás da decisão. Mas, eles acabaram aceitando que o meu irmão já tinha idade suficiente pra tomar as suas próprias decisões.
Miguel: Depois dessa sessão, eu passei mais ou menos 1 ano falando bem pouco com os meus pais. Eles nunca me abandonaram, mas ficaram super tristes. A gente meio que entrou num acordo de que eu precisava de apoio, inclusive financeiro, e eles precisavam de um tempo pra processar o que tava acontecendo. Eu comecei a fazer terapia hormonal com testosterona e o meu corpo foi mudando. Depois de um ano, eu fiz a mastectomia para remover os seios. E foi aí que meus pais compreenderam que não se tratava de uma fase, mas sim um caminho sem volta.
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A minha mudança não foi só externa. Foi inclusive, principalmente, interna. Eu era muito arisco, eu tinha pavor de crítica, assim. Qualquer pessoa que tentasse estragar o pouco de felicidade que eu sentia, levava uma patada. Hoje é raro você me ver de cara fechada, de mau humor. Eu sou muito confortável na minha pele, e muito mais tranquilo, mais feliz, mais calmo. O relacionamento com a Natália melhorou muito. A gente descobriu, no caso, que a conversa é um método bem melhor de comunicação do que o grito e a porrada. Eu não conseguia ter uma boa relação com ela e com os meus pais, porque eu achava que parte da minha tristeza era o fato de que eles não acolhiam como eu era.
Coitados, pai e mãe não têm manual de instrução. E mudança de gênero não é exatamente uma coisa simples de se entender. Meus pais não tinham informação sobre esse assunto e só queriam me proteger.
Natália: Eu errei muitas vezes o pronome masculino depois que o Miguel fez a transição. Ele ficava bravo e achava que eu tava querendo boicotar o processo dele. Mas, na verdade, era só uma questão de hábito. Depois que ele deixou crescer a barba, sua voz engrossou e ele ganhou uma feição masculina, aí ficou fácil chamar ele de Miguel. Eu comecei a enxergar ele como um homem mesmo e hoje é impossível usar o pronome feminino. Agora só tenho que aguentar minhas amigas falando: “Ai, como o seu irmão é lindo! Ele ficou mais bonito como homem do que como mulher”.
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No segundo que o Miguel decidiu fazer a transição de gênero, eu, imediatamente, consegui ver que a impaciência, a intolerância e a agressividade dele ficaram pra trás. Eu também comecei a fazer terapia e aprendi a me posicionar, aprendi a parar de me anular só pra agradar os outros, inclusive o Miguel. A gente teve uns períodos afastados, com pouca conversa, mas hoje graças a Deus a nossa relação é bem melhor. No fim das contas, a gente sempre tá ajudando um ao outro.
Miguel: Quando a minha família começou a respeitar o pronome masculino, eu pensei: “Quer saber? Tá bom, não preciso de mais que isso.” Uma coisa é chamar pelo nome que eu escolhi, outra é de fato acreditar que eu sou um homem. Mas tudo bem, já tá ótimo que eles me respeitem.
Se tem duas pessoas no mundo que viraram militantes da transição de gênero foram os meus avós. Eu tenho certeza que o meu avô sente no fundo do coração dele que eu nasci homem e nunca fui mulher. Mesmo ele sendo de uma geração passada, eu sinto que ele não força nada a barra quando me chama de Miguel. A minha avó, então, ameaça bater em quem erra o pronome comigo. Eu tinha muito medo, muito medo de como eles iam reagir quando eu mudei de gênero. Mas eles aceitaram com mais facilidade do que todo mundo. No fim das contas, o acolhimento que mais me importa é o da minha família.
A mensagem que eu tenho pra passar, tanto pras pessoas cis quanto pras pessoas trans, é que a vida é uma só. Na hora da morte, o que vai importar de fato é o quanto você conseguiu ser feliz, o quanto conseguiu amar, o quanto se sentiu confortável na própria pele. Eu não vou falar que a transição de gênero é um processo fácil. Só que nada, nada, foi mais difícil pra mim do que passar 24 anos sendo quem eu não era, tentando interpretar o personagem que a sociedade esperava de mim. Pessoas bem resolvidas com elas mesmas são melhores pra sociedade. A gente propaga felicidade quando a gente é feliz.
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Claudia Feitosa-Santana: Os gêmeos idênticos Miguel e Natália compartilham conosco a transição de gênero dele e como as relações familiares transacionaram junto.
Como ele, quando descobrimos que o que parecia intransponível, além de insuportável, era apenas uma pedra no meio do caminho, precisamos de apoio para retirá-la, pois somos seres sociais e é extremamente importante vivermos juntos - em família, entre amigos e, inclusive, no meio da multidão. Por isso, pessoas podem ser sentidas como se fossem obstáculos. Mas podem também ser acolhimento. O que precisamos é ter a consciência da relacionalidade, o fato de que estamos inter-relacionados uns com os outros, logo: intersomos.
E, assim, no meio do caminho havia um outro... um outro que nos ama, um outro que você empatiza, um outro que eu respeito, e por aí vai. Pedras que se transformam em companhias, com as quais nos sentimos confortáveis em nossa própria pele.
[trilha sonora]
Geyze Diniz: Nossas histórias não acabam por aqui. Confira mais dos nossos conteúdos em plenae.com e em nosso perfil no Instagram @portalplenae.
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