Para Inspirar

Marcos Piangers em “Paternidade é afeto”

Na quinta temporada do Podcast Plenae - Histórias para Refletir, conheça a paternidade afetuosa do escritor Marcos Piangers

6 de Junho de 2021


Leia a transcrição completa do episódio abaixo:

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Piangers: Eu devia ter uns 4 ou 5 anos quando perguntei pra minha mãe, Heloisa: “Por que todo mundo tem pai e eu não?”. Eu lembro que ela ficou desestabilizada com a pergunta. Acho que por isso essa passagem ficou tão marcada na minha memória. 

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Geyze Diniz: Ele já escreveu dois livros sobre sua experiência como pai, mas sua história com a paternidade vai além dessas páginas escritas. Piangers passou mais de 35 anos sem saber quem era seu pai biológico, e metade desse tempo se preparando para ser o melhor pai do mundo para suas filhas, Anita e Aurora. 

Conheça a história cheia de emoção,  cuidado e amor de Marcos Piangers. Ouça, no final do episódio as reflexões do rabino Michel Schlesinger para te ajudar a se conectar com a história e com você mesmo. Eu sou Geyze Diniz e esse é o Podcast Plenae. Ouça e reconecte-se. 

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Piangers: Não é nada fácil a vida de uma mãe solo. A gente morava só nós dois num apartamento pequeno, em Florianópolis, e meus avós cortaram relação com a minha mãe quando descobriram que ela engravidou antes de casar. Eu só fui conhecer os meus avós quando eu tinha 2, 3 anos, depois de muito esforço de uma amiga que intermediou as relações. 

Eu cresci sonhando com quem seria o meu pai. A gente tem essa narrativa do herói muito forte na nossa produção cultural, e eu ficava pensando: será que ele é o Super-Homem? Ou ele é um ator famoso? Um jogador de futebol? Um milionário? Mas também tinha o outro lado: e se ele fosse um vilão? Um bandido? Uma pessoa ruim? 

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Na adolescência, quando eu perguntava pra minha mãe quem era o meu pai, ela sempre repetia que era ela. Eu acho que ela tinha medo de me contar, de eu ir atrás e me magoar com a reação dele. Aquela coisa de mãe protetora sabe? Eu acho que ela se sentia até orgulhosamente empoderada de me criar sozinha. De provar pro meu pai biológico e pros meus avós, e pro mundo, que ela dava conta de pagar todas as contas e lidar com todos os desafios de ser uma mãe solo. Até hoje ela tem esse espírito forte de lidar com os problemas de uma maneira objetiva, de aparentemente não sofrer com os percalços da vida.   

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Depois de muuuuitos anos, ela me contou uma história que foi decisiva para não revelar quem era o meu pai. Ela conta que, quando eu tinha uns 3 anos, a gente foi na praia da Joaquina e eu ia de barraca em barraca pedindo picolé de molango. Ela ia atrás tomando conta de mim. Em um guarda-sol, o pessoal já estava meio bêbado e me deu caipirinha pra provar. Depois disso, eu pedia picolé de molango ou caipilinha. Aí todo mundo dava risada, era uma diversão na praia. Numa dessas barracas, eu encontrei o meu pai biológico. Ele reconheceu a minha mãe, mas virou a cara pra ela. Ela passou mal, quase desmaiou. Eu me lembro vagamente das amigas abanando, jogando água e falando: “O cara tá lá, o cara tá lá”. É claro que na época eu não entendi quase nada, mas fiquei angustiado de ver a minha mãe passando mal. Foi a partir desse dia que ela resolveu não me contar quem era o meu pai.

[trilha sonora]

Eu me casei e a minha esposa já estava grávida da nossa primeira filha, a Anita, quando eu fui perguntar pra minha mãe de novo: “Mãe, minha filha não vai conhecer o avô?” E ela disse: “Pra que você quer saber?”. Ia sempre desconversando.  

Quando a minha filha já tinha 8, 9 anos, a minha mãe descobriu um câncer. E aí ela resolveu me contar: seu pai tem esse primeiro nome, esse segundo nome, a gente se conheceu na empresa, teve uma história, ele fugiu quando descobriu que eu estava grávida, virou a cara pra mim na praia, se mudou de cidade e aí eu decidi que eu mesma ia criar você. 

Aquilo foi profundamente libertador pra mim, ouvir a verdade. Abracei ela e falei: “Que bom”. Meu pai não é um jogador de futebol, um empresário famoso, um milionário, mas também não é um bandido. É só uma pessoa comum que cometeu um erro. E isso me deu um alívio, tirou um peso das minhas costas. 

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Depois disso, por incrível que pareça, não me deu vontade NENHUMA de conhecer o cara. Primeiro, por respeito pela minha mãe, por ela ter ficado e cuidado de mim. Segundo, porque, naquela altura, eu preferia dedicar o meu tempo, a minha energia, para minha esposa, pras minhas filhas, pros meus amigos, e pra minha mãe, em vez de fazer um esforço tremendo para procurar e me relacionar com um cara que me abandonou. Pra que eu faria isso? Por causa do nome, da convenção social, do laço sanguíneo? O meu pai biológico contribuiu com UMA célula apenas para minha formação. Paternidade não é DNA, é afeto, presença, carinho. Hoje eu tenho uma família estendida amorosa e presente, uma pequena aldeia para criar as minhas filhas. Essa rede de amor substitui um pouco aquela falta que eu sentia quando eu era pequeno.

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Só que a minha esposa, que é muito curiosa, buscou no Facebook pessoas com o nome do meu pai biológico. E achou vários caras e começou a mandar pedido de amizade, e um deles aceitou e disse: “Oi, Ana”. Ela escreveu que queria conversar, e ele já respondeu: “Eu acho que eu sou o pai do Marcos”.  Então ela perguntou: “Por que você nunca falou com ele?”. E ele respondeu que durante muito tempo não teve certeza se era o meu pai, apesar da minha mãe ter dito pra ele que era.

Quando a minha esposa me contou essa história, eu falei: “Pronto, é o mesmo papo de SEMPRE”. “Ah, mas eu não tinha certeza que eu era o pai”; “Ah, mas a mãe não me deixou participar como eu queria”. É um comportamento MUITO egoico e machista. Os caras sempre colocam a culpa na mulher. E eu fiquei pensando: “Poxa, a minha mãe estava lá por mim, com todas as dificuldades, até hoje ela tá aqui por mim. E o cara vai botar a culpa nela!?”.

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A essa altura eu já tinha lançado o meu primeiro livro, O papai é pop, sobre a minha experiência como pai. Já tinha mergulhado no universo da paternidade e da masculinidade e já tinha ouvido relatos de muitos pais que cuidaram e abandonaram seus filhos. Um ano depois dessa conversa, a minha esposa publicou o livro dela, A Mamãe é Rock, e eu lancei o O Papai é Pop 2. A gente foi lançar os livros na livraria Travessa, no Rio de Janeiro. Estava um dia incrível, com vários amigos, altas filas, vinho branco. Na tarde de autógrafos, eu senti que a Ana estava cada vez mais nervosa, olhando pra alguém da fila. Olhando e nervosa, olhando e nervosa. Eu pensei: “Peraí. Ela já me contou que o meu pai biológico mora aqui no Rio”. 

Eu não sabia a cara dele, mas ela sabia, então, deve ser o meu pai biológico. Vi o cara chegando, acompanhado de duas amigas. Continuei recebendo todo mundo de forma carinhosa, atenciosa, tirando fotos, dando autógrafos, conversando com todas as pessoas. Quando chegou a vez dele, eu estendi a mão e falei: "ô, rapaz, tudo bom? Eu sei quem você é”. 

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Ele me olhou assustado. A amiga dele falou: “Ai, meu Deus, tô nervosa!”. Eu falei: “Calma, você não precisa ficar nervosa, tá tudo certo, deu tudo certo. A minha mãe me criou super bem. Eu não tenho mágoa, eu não tenho raiva, nem vontade de voltar no tempo”. Ele ficou ali do lado por um tempo. A gente se despediu quando ele foi embora, mas depois a gente nunca mais se falou.

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Embora eu tenha dito pro meu pai biológico que eu não queria voltar no tempo, na verdade, se eu pudesse e se o meu pai estivesse disposto e pudesse ter sido amoroso, atento e sensível, eu ia querer voltar sim.

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 Porque eu senti muita falta de ter um pai. De ter um gigante protetor do meu lado, segurando a minha mão. De deitar numa barriga grande e pensar: “Aqui ninguém me pega, eu tô seguro”. Eu senti falta de ter um pai quando eu comecei a me apaixonar pelas meninas e não sabia o que falar, o que fazer. Senti falta de ter um pai pra me ensinar a andar de bicicleta. Eu só fui aprender depois de velho. Eu senti falta de ter um pai pra me levar no futebol, me dar um time do coração. Senti falta de ter pai quando nasceram as minhas duas filhas. Alguém pra me falar: “Não sai pra beber cerveja. Você tem filha pequena em casa. Volta pra cuidar delas, se conecta com essa engrenagem, que é importante nos primeiros dias, meses e anos”. Eu senti falta de ter um pai ontem. Eu senti falta de ter um pai hoje, de poder ligar pra alguém e conversar. 

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Eu passei e passo a vida tentando entender a figura masculina. Por que que desde pequeno a gente ouve que os homens têm que ser conquistador, forte, malandro, alheio às questões da família e dos afetos? Esse modelo coloca muita pressão sobre as mulheres, mas também é altamente prejudicial pros próprios homens. A paternidade é uma chance do homem se transformar não pela dor, mas pelo amor. É a chance dele se conectar com ele mesmo. Isso é tão importante que a ciência mostra que até a saúde do homem melhora quando ele participa da criação dos filhos. 

Eu já viajei para vários países tentando passar uma mensagem de que a gente precisa mudar essa visão de paternidade e masculinidade. Vi famílias japonesas chorando, porque lá os homens são frios com os filhos e as esposas. Senti a mesma coisa numa palestra em Londres. Na Ilha da Madeira, em Portugal, um cidadão de idade avançada levantou e falou: “Eu passei a vida fugindo dessa sensibilidade que você tá falando, desse carinho com os filhos. Eu me arrependo profundamente disso”. Em Criciúma, em outra palestra, um outro senhor falou a mesma coisa. Tem muito homem que morre infeliz por não ter expressado seus sentimentos, abraçado mais e vivido a sua verdade.

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Com os meus livros e vídeos, eu acredito que a mensagem já tenha chegado, talvez, a 1% da população brasileira. Ainda tem muuuuito homem afastado da família, agressivo com os filhos, perdendo a chance de viver um casamento feliz. Eu sozinho não vou dar conta de alcançar todo mundo. Por isso eu incentivo que mais homens escrevam e falem sobre esse assunto. A gente tem que multiplicar a mensagem. E não é sobre mim, é sobre 6 milhões de crianças que não têm o nome do pai na certidão de nascimento, e outras milhões que não tiveram um pai presente e afetuoso dentro de casa. É importante pros homens, pras mulheres, pra sociedade e especialmente pras crianças. Essa é a minha missão. 

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Miguel Schlesinger: Ninguém faz filho sozinho. E, portanto, ninguém deveria criar um filho sozinho. É muito doloroso para uma pessoa, como contou o Marcos Piangers, quando o pai ou a mãe estão vivos e não assumem a sua paternidade ou maternidade. Esse é um cenário mais comum entre homens, que muitas vezes deixam para a mulher a difícil tarefa de criar um ser humano. Esses homens não prejudicam somente as mulheres e as crianças, mas a si mesmos. Eles perdem a oportunidade de conhecer um amor profundo, e de envelhecer ao lado de um filho.

Que nós saibamos fortalecer juntos, uma sociedade na qual as pessoas assumam a responsabilidade por seus filhos. E quando os filhos não tiverem a sorte de ter pais presentes, que saibamos abraçar esses órfãos e mostrar que é possível mudar o curso da história. Mesmo aquele que não recebeu afeto pode constituir uma família repleta de amor. Como tão lindamente faz Marcos Piangers. Certa vez, um amigo me ensinou que professores são aqueles que nos ensinam como se comportar, mas não menos mestres, são aqueles que nos mostram o caminho a NÃO ser seguido. Às vezes são os anti-heróis, os anti-exemplos, que fazem com que sejamos quem somos, que fazem com que tenhamos a vontade de escrever uma história diferente. 

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Geyze Diniz: Nossas histórias não acabam por aqui. Confira mais dos nossos conteúdos em plenae.com e em nosso perfil no Instagram @portalplenae.

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Para Inspirar

Patricia Fonseca em "Um novo coração"

O quinto episódio da décima sexta temporada traz a história de vida e paixão pelo viver que Patricia Fonseca soube ter mais do que ninguém.

1 de Setembro de 2024



[trilha sonora] 

 

Patricia Fonseca: Eu brinco que sou a verdadeira história de Benjamin Button. Aos 30 anos de idade, eu já tinha passado pela velhice. Só depois do transplante eu fui descobrir o que é ter uma juventude cheia de vitalidade. 
 

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Geyze Diniz: Patricia Fonseca nasceu com uma cardiopatia congênita grave. Por várias vezes, os médicos disseram que ela tinha poucos meses ou poucos anos de vida. Mas, contra todos os prognósticos, ela sobreviveu. Patricia passou por um transplante de coração, se tornou atleta e transformou a doação de órgãos como a sua missão de vida. Eu sou Geyze Diniz e esse é o podcast Plenae. Ouça e reconecte-se. 

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Patricia Fonseca: Eu era recém-nascida na primeira vez que eu fui desenganada pelos  Eu era recém-nascida na primeira vez que eu fui desenganada pelos médicos. Minha mãe conta que eu era um bebê que só chorava e tinha dificuldade para mamar. Quando eu tinha 20 dias de vida, ela percebeu que eu estava com a pele roxa.

No desespero, ela saiu correndo comigo
para o pronto-socorro, só de camisola. Assim que a gente chegou, eu fui internada na UTI pediátrica. Nesse mesmo dia, minha avó diz que viu os médicos fazendo massagem cardíaca três vezes para me reanimar. Imagina essa cena. Um bebezinho de 20 dias. 
 

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Os exames mostraram que eu tinha uma cardiopatia congênita. Era um problema que fazia o meu coração bater com pouca força. Lá mesmo no hospital, os médicos chamaram meus pais de canto para explicar que eu não completaria um ano de idade. Depois, disseram que eu não passaria dos três.

Quando eu completei 14, tive que fazer uma operação de urgência, e me deram uma semana de vida. Aos 20 anos, eu fui internada de novo e falaram que eu não viveria mais do que seis meses. Com 30, parecia o fim da linha. Eu fui salva tantas vezes que não tem como não acreditar em milagre.
 

 

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Eu tive a sorte de crescer numa família sensível que não tornou as minhas limitações mais pesadas do que elas precisavam ser. Eu sabia que eu tinha um “probleminha no coração”, como meus pais diziam, mas sem tanta consciência sobre o tamanho da encrenca. Minha mãe falava assim: “Sai da piscina, sua boca es roxa! Para de pular, sua boca es roxa!”. Eu achava que eu tinha também algum problema de boca. Mas, na verdade, era o meu coração que não dava conta de bombear sangue para as extremidades do corpo.  

 

Eu não fui, assim, a criança mais energética na escola. Eu era proibida de fazer educação física, e ficava assistindo às aulas na arquibancada, morrendo de vontade de participar. Nas brincadeiras, eu não era chamada para fazer parte das equipes ou era a última a ser chamada, porque eu não tinha força para correr ou atirar uma bola. Eu fui entender a gravidade do meu “probleminha de coração” quando eu passei por uma cirurgia aos 14 anos.  


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A minha grande preocupação era a cicatriz, porque a operação era de peito aberto. Eu tinha ficado na UTI quando era menor, mas com outro nível de consciência sobre o que estava acontecendo. eu vi aquele monte de criança chorando, gritando pela mãe, e entendi que a minha condição era séria.  
 
Quando voltei pra escola, eu não conseguia subir com facilidade três andares para chegar na classe. Como o recreio durava 30 minutos, eu ficava 15 minutos com os meus amigos, depois começava a subir as escadas. E eu era sempre a última a entrar na sala. O interessante é que eu não me fazia de vítima. Eu acho que eu aprendi isso com o exemplo que eu tinha em casa.

Eu lembro que, um dia, meu pai es
tava passando no corredor, parou na porta do meu quarto e falou assim, do nada: “Patricia, presta bastante atenção no que eu vou te falar. A vida é como um jogo de cartas. A gente não escolhe as cartas que vêm na nossa mão. E vencedor não é quem ganha o jogo, mas quem faz o melhor que pode com as cartas que tem”. 
 

[trilha sonora] 

Meu pai sempre gostou de jogar baralho e aquela metáfora fez um clique na minha cabeça. Eu acho que um dos maiores exterminadores da felicidade humana é a comparação. Meu coração segurou as pontas até os 20 anos de idade, quando eu tive uma arritmia grave. A essa altura, os outros órgãos estavam sobrecarregados. Meus rins não funcionavam tão bem e o pulmão estava com hipertensão.

O médico disse que eu precisava escolher entre a faculdade de economia e o estágio. Eu larguei o trabalho, mas meses depois
eu tive que trancar o curso também. Meu corpo simplesmente não tinha forças.
 Eu me consultei com uns quatro ou cinco médicos. O primeiro falou assim: “Você no fio da navalha, menina. Não te dou nem 6 meses de vida”.

A partir
daí, meus pais iam na consulta antes de mim. O padrão de comportamento dos cardiologistas era assim: eles olhavam meus exames, olhavam para mim, olhavam os meus exames e faziam cara de velório
Nessa época, já se falava sobre a possibilidade de um transplante de coração. Só que meu corpo não ia aguentar um procedimento tão invasivo. Meus pais não queriam que eu perdesse a esperança, então eles me contaram uma versão alternativa. Segundo eles, era melhor que eu me tratasse apenas com medicamentos.  

 
Eu comecei a tomar novos medicamentos, combinando a medicina tradicional com a alternativa, e fiquei um ano de cama tentando melhorar. É claro que isso me deixava triste. Eu queria no show da Ivete com os meus amigos. Queria na faculdade. Mas não era possível naquele momento. Aí eu pensei: o que eu posso fazer com as cartas que eu tenho? Depois de refletir muito, eu cheguei à conclusão de que a melhor forma era encarar aquele repouso forçado como um período sabático e gastar meu tempo lendo.  

 

Eu li romances, livros de filosofia, de espiritualidade, de autoajuda. A leitura abre a mente. Primeiro, porque você entende que não é o umbigo do mundo. Tem coisa muito pior acontecendo por aí. Segundo, porque ganha perspectiva, ferramentas e ideias que você pode agregar na sua vida. Os livros foram uma parte importante do meu tratamento, porque me deram recursos para construir a minha própria narrativa. 

 

[trilha sonora] 

 

Depois de um ano, eu voltei para faculdade devagar, pegando duas ou três matérias por semestre.  

 

[trilha sonora] 

 

Demorei oito anos para me formar. E aí, quando eu estava com 29, eu finalmente me tornei elegível para o transplante, graças a um novo medicamento que podia controlar o meu coração durante a cirurgia.  que eu estava bem fraca. Eu passei três meses na UTI esperando um novo órgão. A UTI é um espaço temporal fora da realidade comum. Um dia ali vale uma semana. Uma semana parece um ano, porque o tempo, simplesmente, não passa.

Eu entrei num estado de ansiedade, porque eu achava que cada pessoa que falava comigo ia trazer a
notícia de que o coração tinha chegado.
 Para não ficar maluca, eu procurava picotar o problema em pedaços pequenos. Eu mentalizava assim: “Hoje vai ser um dia bom; Essa noite eu vou dormir”. Eu procurei me agarrar em tudo que pudesse pra me trazer esperança. Todo dia, eu rezava para um monte de santos e entidades, de tudo quanto é religião. Eu fiz uma lista com 22 nomes para quem eu rezava todos os dias. Parecia chamada de escola.  
 

Eu não tinha forças nem para segurar o celular e responder um WhatsApp. Mas eu sentia o amor das pessoas ao meu redor, e ele me nutria. Eu pedi para minha mãe trazer papéis amarelos e caneta, porque eu queria grudar na parede da UTI mensagens positivas. Foram cinco frases: “Vem coração”; “Recuperação recorde”; “Já deu certo”; “Eu sou uma atleta”; e “Coração de atleta”.  
 
Durante 60 dias, eu lia esses papeis, fechava os olhos e mentalizava que eu estava em outro lugar. Eu me imaginava num campo verde, grande, correndo, correndo. Eu sentia a corrida. Eu me imaginava dançando e eu sentia a dança. A nossa cabeça é tão mágica, que, mesmo sem eu conseguir me mexer na cama, eu tinha algum prazer e felicidade só com a imaginação.  

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O meu aniversário de 30 anos estava chegando e eu não queria que a data passasse em branco. Afinal, eu ainda estava viva. Eu tinha que comemorar. Então, eu encomendei um bolo de 17 quilos de doce de leite com coco. E eu queria que tivesse bolo para todo mundo que estava cuidando de mim na UTI. Era para os técnicos de enfermagem, para as enfermeiras, para os médicos, para os fisioterapeutas, para os psicólogos, para o time da limpeza. Pra todo mundo, de todos os turnos. E eu tinha conseguido liberação para os meus amigos me visitarem fora do horário de visita. 

Na véspera, eu fui dormir pensando: “Amanhã vai ser um dia bom”. De manhã, eu ainda estava dormindo, quando uma enfermeira de cabelos longos e loiros entrou no meu box e falou: “Pati, atende o celular, é o seu médico”. Aí eu pensei: “Que bonitinho, ele quer ser o primeiro a me dar parabéns”. Só que ele disse: “Patricia, aguenta firme. O coração chegou!” 

[trilha sonora] 

 
Eu não conseguia acreditar. Como assim!? Eu chorava, eu ria, eu chorava, eu ria. A lista de espera por um transplante era e ainda hoje é uma loteria. Nem todo mundo tem a sorte de receber um órgão. E eu ganhei na loteria. O hospital inteiro veio comer meu bolo e comemorar aquela notícia comigo. É muito impactante você pensar que alguém não te conhece e nunca vai te conhecer escolheu salvar sua vida.  

 

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A operação aconteceu no mesmo dia e foi um sucesso. A minha vida mudou a partir do instante em que eu acordei da anestesia. A primeira diferença é que eu senti foi fome. Fazia mais de 10 anos que eu não sabia o que era fome. O nosso corpo é tão sábio que, quando o coração es fraco, ele não manda sangue para o estômago, para poupar energia. 

 

Nos 10 anos anteriores ao transplante, eu só podia tomar 1 litro de líquido por dia, contando o das refeições, porque os meus rins estavam sobrecarregados. Então eu passava sede. E a minha primeira refeição depois da operação foi líquida. Uma pessoa trouxe uma bandeja com dois sucos, uma água de coco e dois iogurtes, pedindo desculpa por ser aquilo. Eu falei: “O quê?! É o meu sonho!” 

 

A previsão era que eu ficasse no mínimo 15 dias na UTI. Eu fiquei 5. No terceiro dia, eu já estava de pé. Lembra do papelzinho amarelo com o desejo “recuperação recorde”? Com um mês de transplante eu já estava na academia do hospital. Eu precisei reaprender a sentar e a andar, porque eu fiquei meses de cama. Em um ano, eu estava correndo. “Coração de atleta.” 

 

Mas correr só era pouco, porque eu queria nadar. Quando me liberaram, eu fui pra piscina também. Mas eu queria mais, e comecei a pedalar. E aí eu descobri que existiam as Olimpíadas dos Transplantados, que é um evento reconhecido pelo Comitê Olímpico Internacional. Eu me inscrevi nos Jogos e o ápice da minha vida foi competir no triathlon, em Málaga, na Espanha. Eu fui a última a chegar, mas dane-se. Eu estava tão feliz, mas tão feliz, mas tão feliz, que eu comemorei com toda certeza mais que o primeiro colocado. Eu virei uma atleta. 

 

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E eu me tornei uma ativista também. Depois da cirurgia, eu fundei o Instituto Sou Doador, uma ONG que tem o objetivo de zerar a mortalidade na fila de espera por um órgão. Em 2019, eu escrevi uma lei chamada Lei Tatiane, em homenagem a uma amiga que esperou por dois anos por um coração, mas não aguentou. Em novembro de 2023, a Lei Tatiane foi sancionada. Agora, é obrigatório no Brasil que toda escola e faculdade fale sobre doação de órgãos e transplante.  

 

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Ao longo desses anos de luta, eu percebi que a única coisa que falta no Brasil pra aumentar o número de transplantes é informação. Ninguém é obrigado a ser doador. Cada um tem o direito de escolher a sua preferência. Mas se a pessoa nunca ouviu falar sobre esse assunto, como esperar que na hora de um familiar discuta se vai doar ou não? Eu passei por isso. Oito meses depois do meu transplante, a minha mãe faleceu. Mas a gente sabia que ela queria ser doadora, então a gente doou as córneas dela.  

 

A Lei Tatiane entrou em vigor em fevereiro de 2024, mas ela precisa ser aplicada. O Instituto Sou Doador criou um guia didático gratuito disponível para todas as escolas do Brasil. Além disso, a gente desenvolveu um curso online gratuito para capacitar os professores. Assim, eles podem levar para sala de aula um conteúdo de qualidade, sem tabu, sem misticismo e com consciência. Quando você educa uma criança, educa um país inteiro, porque a criança leva o tema para dentro de casa.  

 

Você que es ouvindo esse podcast também pode ajudar a espalhar essa mensagem. Pergunta na escola do seu filho ou do seu bairro se eles tão falando do assunto. O Brasil tem o maior sistema de transplante de saúde pública do mundo. A gente tem a rede, a tecnologia e os médicos.

Mas o
número de doações é pequeno e as filas são grandes. Isso não faz sentido num país tão generoso e empático quanto o nosso.  Doação de órgãos não tem nada a ver com morte. tem a ver com vida, com saúde, com renascimento. A minha mãe não podia ser salva, mas duas pessoas no Brasil enxergam por causa dela. Onde ela estiver, ela colhe os frutos desse gesto de amor.
 

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