Para Inspirar

Meu esquecimento é normal?

Nosso cérebro está constantemente “esquecendo” algumas informações para abrir espaço para novos dados. Mas quando devo começar a me preocupar?

15 de Janeiro de 2024


A memória é um dos mecanismos mais complexos e importantes do nosso corpo. Por isso mesmo, ela é exaustivamente estudada e pesquisada por cientistas das mais variadas especialidades - e as descobertas não param de chegar. Ainda assim, há algumas zonas cinzas sem explicação ou que carecem de mais informações.

O que já se sabe com toda a certeza é que algum nível de esquecimento é comum e ele pode se dar por vários motivos. Mas quando o esquecimento começa a se tornar anormal? Quais são os indicativos? Abaixo, te explicaremos mais sobre o assunto.

O mecanismo da memória

A espécie humana chegou onde chegou muito por conta de sua capacidade de memorização. Esse armazenamento foi fundamental no desenvolvimento do nosso intelecto. Sem ele, não teríamos construído o conhecimento, as ferramentas e nem desenvolvido as habilidades necessárias para a evolução social e tecnológica que atingimos atualmente, como pontua artigo do Ministério da Saúde.

Na infância, graças a nossa neuroplasticidade - que te contamos mais por aqui -, essa função fica ainda mais latente, já que é a fase também onde mais demandamos da nossa memorização para aprendermos basicamente tudo: linguagem, coordenação motora, etc. Mas, o segredo da memória é que, quanto mais estimulada, melhor ela fica ao longo da vida.

O seu processo é complexo: os neurônios, cujo funcionamento é de origem bio-elétrica, formam uma rede e cada um deles estabelece várias ligações. Quando aprendemos algo, esses neurônios vão tecendo uma rede cada vez mais complexa e com ligações mais fortes entre eles.

Além de sua bioquímica, a memória está também relacionada às nossas emoções e experiências pessoais, e isso torna o seu estudo ainda mais complexo e específico, já que estamos falando de questões individuais. Apesar dessa dificuldades, os cientistas já conseguiram distinguir algumas questões mais básicas. Uma delas são os tipos de memória: existe a declarativa e a processual. 

A primeira, também chamada de memória explícita, é aquela responsável por guardar informações sobre fatos mais comuns, como o número de telefone de alguém ou a data de um aniversário. Ela armazena e evoca informação de fatos e de dados levados ao nosso conhecimento através dos sentidos e de processos internos do cérebro, como associação de dados, dedução e criação de ideias. É mais rápida de se adquirir, mas também mais rápida em se esquecer. 

Já a processual guarda informações sobre procedimentos e habilidades adquiridas, como andar de bicicleta, dirigir um automóvel etc. Ela inclui a memória de fatos vivenciados pela pessoa (memória episódica) e de informações adquiridas pela transmissão do saber de forma escrita, visual e sonora (memória semântica), como explica o artigo do Dr. Drauzio Varella. É mais demorada para ser adquirida e, também, é mais difícil de ser esquecida. 

Além disso, todas as informações chegam ao nosso cérebro na forma de um estímulo, que pode ser auditivo, visual, tátil, olfativo ou gustativo. Eles são transformados em uma “percepção”, ou seja, numa sequência inteligível, relacionada a outras similares, como explica o artigo da Fundep. 

Os vários esquecimentos

“Nenhum esquecimento é normal, mesmo aqueles que se tornam comum com o avançar da idade. Mas há os parâmetros utilizados por nós para observar se essa função cognitiva está muito prejudicada ou se é algo pontual”, explica o neurologista especialista em cognição e comportamento, Fábio Henrique de Gobbi Porto. 

Colaborador voluntário do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo, diretor científico da Associação Brasileira de Alzheimer (ABRAz) regional São Paulo e secretário de neurologia da Associação Brasileira de Neuropsiquiatria Geriátrica (ABNPG), Fábio dedicou toda a sua carreira a olhar com profundidade para os processos de memorização do ser humano.

Para ele, não há de se normalizar nenhum tipo de esquecimento, mas alguns de fato se tornam mais comuns por conta de alguma causa primária: envelhecimento, estresse, cansaço, problemas psíquicos, insônia, infecções (como a covid-19, que tem como uma das principais sequelas, o esquecimento temporário), entre outros. 

“O Alzheimer é sim o responsável por grande parte das doenças degenerativas, mas hoje, com tantos estudos, já sabemos que há outras comorbidades que podem comprometer a memorização. Às vezes será algo mais sério, como as demências ou uma hidrocefalia, que podem até mimetizar o Alzheimer. Outras vezes, são causas secundárias, potencialmente reversíveis: uma depressão, uma infecção, a apneia de sono, falta de algumas vitaminas”, explica.

Mas, o esquecimento se torna preocupante quando se torna recorrente, progressivo e causa impacto social. “Se você está esquecendo informações, principalmente recentes, há um tempo, e isso vai ficando cada vez mais intenso, gerando prejuízos sociais, é importante procurar um médico”, diz. 

Além do esquecimento, a pessoa pode apresentar uma dificuldade em aprender informações novas em geral, e esse esquecimento recente é o mais perigoso. “Lembro tudo da minha infância, mas não lembro que falei com você ontem ou o que almocei. Perco o fio da meada sempre que estou falando e já não lembro o nome das pessoas: isso tudo é um sinal de alerta”, pontua Porto.

O passar dos anos

Assim como o resto do corpo, o cérebro também envelhece. A memória, como toda função biológica, é muito suscetível a fatores externos explicados anteriormente. Mas a verdade é que esse envelhecimento cerebral é muito heterogêneo e não vai se dar da mesma forma para cada um. 

“Um grupo menor de pessoas privilegiadas envelhecem com a cognição totalmente normal, são os chamados super agers. Um grupo maior, não é todo mundo mas é a maioria, envelhece com algum declínio, que em geral não causa impacto funcional, a pessoa consegue viver normal. Quando esse declínio interfere na rotina, que é a minoria, aí sim não é normal”, pontua Porto. 

É a partir dos 30 anos que nossa capacidade de aprender coisas novas começa a declinar, mas outras funções, como a linguagem, vão melhorando. Os chamados conhecimentos mais solidificados e semânticos vão aumentando com a idade, enquanto os conhecimentos mais fluidos tendem a ir embora. 

“É a chamada inteligência cristalizada, ela não diminui. O vocabulário, o conhecimento semântico (como saber o que é um elefante? Como chama o cabelo do leão?), o conhecimento emocional - tudo isso vai acumulando”, relata. 

O diagnóstico

Uma vez identificado o problema, é hora de buscar por um médico neurologista. Nessa avaliação, o especialista irá analisar todas as questões prévias, incluindo o nível de escolaridade, que pode influenciar nesse processo. “Um dos grandes objetivos de toda avaliação médica é tornar objetivo uma queixa subjetiva. É pra isso também que existem os testes. Eles irão apontar o tamanho do problema”, diz.

Mas qual é o teste ideal? Há um monte deles disponíveis e a todo o tempo surgem novos. Há disponível de forma gratuita o Mini Exame do Estado Mental, criado em 1979 e que reúne perguntas básicas, mas que garantem um primeiro norte importante. Fábio ainda menciona o MOCA (Avaliação Cognitiva de Montreal) como um dos mais novos e validados para se fazer. Aqui no Brasil há ainda alguns específicos para testar pessoas com baixos níveis de escolaridade. 

O ideal é falar com o seu especialista, que irá te guiar para o que ele está acostumado a aplicar. “O importante é testar. Dependendo do resultado e do contexto, vale repeti-lo ou não. Se for uma pessoa jovem, cujo teste deu normal ou pouco alterado, eu peço pra que volte só depois de um tempo”, explica. 

“Agora se vem uma pessoa de 80 anos e diz que a memória recente está falhando, eu faço o teste e está um pouco alterado, é outra situação. Peço que volte poucos meses depois e se eu vejo que piorou em relação a ela mesmo, tenho a resposta”, conclui. Nesse caso, a repetição do teste é um marcador de progressão, justamente um dos parâmetros mencionados anteriormente como algo a se preocupar em caso de esquecimento. 

Outros fatores

Para além de se manter estudando e treinando o cérebro, é importante cuidar bem de fatores vasculares como pressão alta ou diabetes, que são prejudiciais para o corpo como um todo. Evitar o tabagismo, ter um sono adequado para a boa fixação de novos conhecimentos, ter hobbies, animal de estimação  - tudo isso impacta muito nesse processo, já que a memória é um reflexo de um todo. 

“O estímulo cognitivo é também fundamental. Alguns estudos mostram que pessoas que participam da comunidade, se envolvem com o seu entorno, realizam trabalho voluntário e não estão solitárias, são menos suscetíveis ao declínio de suas faculdades mentais”, conta o neurologista. 

Não há dieta mágica também. Ter uma alimentação saudável é importante, mas não há nenhuma grande evidência que determinados suplementos específicos vão ter uma função definitiva para beneficiar a memória e a cognição. A dica é focar em uma boa nutrição como um todo. 

Por fim, neste artigo te demos algumas dicas de como exercitar essas funções do seu corpo. Mas o ideal é que haja sempre em seu dia a dia uma atividade lúdica e, mais importante, que você goste. Sem o gosto pela prática, não haverá aderência e logo você irá desistir e deixar para lá. O importante é estar atento ao seu corpo e, para isso, o autoconhecimento é sempre o degrau mais importante dessa jornada. Preste atenção a si mesmo: ninguém poderá fazer isso melhor do que você!

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Alexandra Loras em "Uma jornada de autoconhecimento constante"

O sexto episódio da décima terceira temporada do Podcast Plenae é com Alexandra Loras, representando o pilar Propósito!

22 de Outubro de 2023



Leia a transcrição completa do episódio abaixo:


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Alexandra Loras: Eu cresci sendo a única negra da casa, porque eu só convivi com o lado branco da família. Os meus irmãos biológicos são loiros e ruivos. Na infância, eu sempre pensava: “Não é possível eu ter nascido num lar tão diferente. Um dia os meus pais verdadeiros vão me resgatar”. E mais tarde eu entendi que a melhor forma de me resgatar era através do empoderamento feminino e do desenvolvimento pessoal.

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Geyze Diniz: Quando pequena, Alexandra Loras aprendeu que, mesmo com os desafios impostos pela cor da sua pele, ela podia sonhar mais alto. Sua trajetória acabou levando ela para experiências que a ajudaram a encontrar o seu propósito: impactar e ajudar mulheres. Eu sou Geyze Diniz e esse é o podcast Plenae. Ouça e reconecte-se.

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Alexandra Loras: Quando eu tinha 7, 8 anos, inventei uma brincadeira com a minha vizinha. A gente tocava a campainha das casas ao redor e pedia licença pra procurar o nosso gato, que tinha fugido. Na verdade, não existia nenhum gato. Era só um jeito de entrar nas casas dos outros.

Como criança, claro, o objetivo era ganhar um copo de leite e uns biscoitos. Mas eu já tinha o desejo antropológico de observar a decoração e a estrutura de outros lares e famílias. Eram realidades muito diferentes da minha.

Eu que nasci e cresci em Paris, na França, mas não na Paris turística que o brasileiro conhece. Eu morava na periferia. A minha mãe era professora de ioga e bem esotérica. Era sindicalista e engajada em política. Uma feminista.

Ela teve cinco filhos com quatro maridos diferentes. Já o meu pai nasceu na Gâmbia, na África, numa aldeia que até hoje não tem eletricidade. Ele emigrou para França nos anos 70. Depois que ele se separou da minha mãe, eu convivi pouco com ele. Eu tinha 15 anos quando o meu pai morreu, alcoólatra e morador de rua. Na minha leitura é que o racismo estrutural francês matou ele.

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A minha mãe tinha uma origem de classe média alta. O meu bisavô era engenheiro e foi um grande industrial. Meus avós e bisavós nunca aceitaram minha mãe branca se casar com meu pai negro. Eu sofria racismo dentro de casa. Um dos meus padrastos, por exemplo, falava para meus irmãos coisas como: “Vocês não acham que a Alexandra tem cor do cocô?”. Também do meu avô, eu ouvi: “Não quero que você saia, Alexandra, porque é perigoso lá fora, tem negros e árabes”. Ele talvez não me enxergou como uma negra nem percebeu que aquela frase era ofensiva. Mas o racismo não precisa, muitas vezes, ser verbalizado. Ele tá numa estrutura que te inferioriza. Tenta imaginar, os teus próprios livros didáticos não te representam. O desenho animado não tem nenhuma criança negra ou nenhum super-herói negro ou jamais uma princesa negra.

Já desde pequenininha aprendi a amar racistas e eles aprenderam também a me amar. Por isso, de uma certa forma, desenvolvi uma certa expertise para lidar com pessoas que não enxergam a dor histórica da escravidão como um problema global.

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Eu tive o privilégio de estudar em internato de freiras católicas. Fui a única entre os cinco filhos que frequentou escolas particulares da elite. Não sei exatamente porque a minha mãe fez isso, mas acredito que foi pelo meu bom desempenho acadêmico.

No internato, eu convivi com muitas meninas ricas. Eu morria de vergonha de levar amigas pra minha casa. A gente morava no depósito de uma livraria que a minha mãe abriu. No banheiro, não tinha vaso sanitário com assento. Era banheiro turco, sabe aquele com buraco? Que a gente cobria com um pedaço de madeira pra tomar banho.

Eu sofri muito com racismo na escola. Eu não era convidada pras festas de aniversário, por exemplo. Até que eu não aguentei mais. A dor do racismo e a dor de estudar num colégio extremamente competitivo me fizeram largar tudo. Eu pedi pra minha mãe pra morar fora da França. Aos 17 anos, fiz um intercâmbio como au pair na Alemanha, na Inglaterra e nos Estados Unidos. E como au pair, eu trabalhava como babá 5 horas por dia, em troca de moradia, alimentação e uma ajuda de custo.

Essa experiência mudou a minha vida pra sempre.

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Na Alemanha, eu caí com uma família de origem aristocrata. Durante seis meses, em imersão total, vivi coisas que só quem nasce na nobreza vive. Toda noite, os jantares tinham candelabro e música clássica. Eu fiquei hospedada em castelos e participei de caçadas, como aquelas da corte inglesa. Os alemães não me deixavam na cozinha por eu ser babá. Eu era incluída em todas as atividades como uma grande irmã da família.

Da Alemanha, fui para Inglaterra, onde morei com uma família que transitava entre celebridades. Um dia, a gente assistiu a um documentário e eu percebi que o personagem principal do filme tava sentado na sala. Era o escritor Salman Rushdie. Em outra ocasião, a gente viajou para a Itália e assistiu a gravação do filme Beleza Roubada, do Bernardo Bertolucci, que era nosso vizinho e amigo da família.

Era uma imersão extraordinária com intelectuais e pessoas de sucesso. Eu fui aprendendo, pouco a pouco, os códigos de como eles se vestiam, como comiam, como decoravam suas casas.

Claro que eu não queria mais voltar pra escassez, pra uma realidade disfuncional. Eu queria viver aquela narrativa também.

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Esse desejo cresceu quando eu apliquei pra uma vaga de au pair nos Estados Unidos.

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Com a primeira família, não rolou bem. Aí eu fiquei morando de forma ilegal nos Estados Unidos, até eu me tornar babá do filho de um bilionário. Esse homem me apresentou o conceito de desenvolvimento pessoal. Ele tinha umas fitas cassete com gravações do Tony Robbins, o coach do Bill Clinton, da Oprah Winfrey e de tanta gente de sucesso.

A partir dali, eu comecei uma jornada de autoconhecimento que nunca mais parou. No primeiro curso de desenvolvimento pessoal, eu comecei a fazer as pazes com as dificuldades que eu enfrentei. Fui entendendo que a adversidade muitas vezes tá lá pra te fazer crescer. Nascer numa família racista e disfuncional, talvez, me preparou pra eu ser quem eu sou.

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Eu voltei pra França, estudei marketing e multimídia e eu fui trabalhar na IBM. Em dois meses de trabalho, fui promovida. Depois de um ano, quiseram me promover de novo, mas eu me auto sabotei.

Os meus chefes enxergavam em mim uma liderança que eu não enxergava. Era a síndrome da impostora. Eu me sentia uma fraude, porque não era engenheira de TI. Me sentia mal, porque percebia os ciúmes dos meus colegas. 

Aí, eu soube que o Tony Robbins ia dar um workshop de três dias em Londres. Pedi autorização pro meu chefe e tirei umas folgas. Nesse curso, eu andei sobre a brasa ardente e me dei conta que eu tinha muitas crenças limitantes ao meu respeito. Quando eu perdi o medo de queimar o pé, eu perdi o medo de todo o resto. E a partir dali, o céu era o limite.


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No workshop do Tony Robbins, eu percebi que o meu propósito era sanar a dor de ter crescido num país monocraticamente branco na televisão. E eu pensei: “Posso continuar a xingar o sistema, mas porque eu não vou lá mudar ele”. Então, eu pedi demissão da IBM e fiz tudo pra me tornar apresentadora de TV. Eu de fato me tornei uma das primeiras apresentadoras de TV negras da França, nos canais TF1 e France 3.

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Foi nessa época que eu cansei de morar em bairros de periferia. Eu me mudei para um apartamento pequenininho ao lado da Champs-Élysées e comecei a me sentir mais respeitada. Acahava um absurdo, porque eu sou a mesma Alexandra, mas isso acontece. Eu morava no sexto andar de um prédio sem elevador e em um lugar que deve ter sido construído pra abrigar as faxineiras de alguém que vivia embaixo.

Um dia, o proprietário perguntou se eu conhecia uma pessoa pra alugar o apartamento do térreo. Era um imóvel iluminado e reformado de 150 metros quadrados. Já tava mobiliado, com móveis luxuosos e obras de arte. Eu me candidatei.

Ele riu da minha cara, porque sabia que eu não podia pagar um aluguel desse. Mas ele me deixou sublocar o apartamentinho de cima e, com isso, eu pagava metade do aluguel de baixo. Como eu já era meio empreendedora, eu lancei uma coleção de bijuteria naquela época e usei o apartamento como showroom. Essa coleção bombou. E eu também estava bombando na TV.

Eu comecei a fazer jantares e coquetéis, misturando convidados da mídia e de várias áreas. As pessoas ficavam impressionadas. Como uma negra poderia morar num lugar que só era acessível aos herdeiros da aristocracia? Eu virei anfitriã e as minhas festas passaram a ser disputadas. Foi numa dessas conexões que eu conheci o meu marido.

Por causa dele, eu acabaria deixando o meu emprego na TV. O Damien era diplomata e conselheiro do Nicolas Sarkozy, presidente da França na época. Havia um conflito de interesse entre a função dele e a minha, como apresentadora de um programa político. Então, eu acabei abdicando da minha carreira, como tantas mulheres fazem numa sociedade patriarcal.

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O meu marido foi nomeado embaixador da França na Tailândia, que é o meu país preferido. A nossa mudança já seguia de navio para Bangkok, quando o Sarkozy perdeu a eleição pro François Hollande. Então, nos cortaram a cabeça e nos mandaram de castigo para o Brasil. 

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Mas o que pra mim parecia uma punição, no final se tornou uma jornada fantástica, algo que, talvez, estava escrito nas estrelas.

Eu cheguei a São Paulo com a expectativa de aprender sobre o mundo diplomático e exercer a maternidade. O meu filho, Raphael, nasceu um pouco antes da nossa mudança.

Como consulesa da França, eu organizava eventos sociais para promover a excelência à francesa. Tinha degustação de Dom Pérignon e jantar preparado pelo chef Erick Jacquin. Nós recebemos políticos, presidentes, governadores, prefeitos e empresários. Mas, também, grafiteiros, artistas e socialites.

Foram mais de 6 mil convidados por ano. Eu, que tinha vergonha de levar as minhas amigas ricas pra minha casa na infância, fui eleita a melhor anfitriã de São Paulo pela revista Vogue. 

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Só que o Brasil me ensinou muito mais do que transitar entre a elite sul-americana. Foi aqui que eu descobri a minha negritude numa escala diferente. Eu senti todo o significado de ser uma mulher negra. Eu muitas vezes fui confundida como babá e barrada na portaria de um clube de São Paulo. Seguranças de supermercados me seguiam enquanto eu escolhia produtos importados. Nas minhas próprias recepções, muitos convidados passavam direto sem me cumprimentar na porta. Achavam que eu era a faxineira do cônsul.

Essa dor é um processo de aprendizado que nenhum branco pode entender, como um homem nunca vai saber o que é ser mulher. E dentro dessa interseccionalidade de gênero e de raça, eu me fortaleci. Eu resgatei o meu poder com a ayahuasca, sim, essa medicina sagrada dos povos originários do Brasil. Eu já tinha ouvido falar do chá.

Muita gente, em vários países que eu visitei, me recomendavam essa experiência. Eu nunca quis. Tinha medo e pavor. Até que eu fui a um festival de ayahuasca em Alto Paraíso, Goiás. A minha ideia era vender um documentário sobre aquela temática pra TV francesa. Mas, quando eu tava lá, tomei coragem e participei do ritual.

Foi a noite mais linda da minha vida. Eu que já fui seis vezes para o Burning Man, um evento colaborativo que acontece no meio de um deserto dos Estados Unidos, e o fato de já ter participado de mais de 100 retiros de desenvolvimento pessoal, posso dizer que na Europa, as experiências são muito focadas na racionalidade. Mas a ayahuasca me conectou diretamente com o meu coração. Foi parecido com a iboga, uma raiz sagrada que cresce no Gabão e vem da cultura bwiti.

Nas visões da ayahuasca, eu vi uma mulher negra na frente de um caldeirão com um turbante branco na cabeça. É como se fosse uma entidade minha. Eu enxerguei a força dela. Enxerguei o meu poder de transformar vidas e de poder impactar mulheres. Depois que eu tive essa epifania, o mundo conspirou. Quando você está na sua essência, os portais se abrem. Através das plantas sagradas indígenas eu me encontrei.

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Primeiro, o meu lado militante aflorou. Na França e nos Estados Unidos, a militância negra é muito acadêmica e restrita a grupinhos radicais. No Brasil, ela é mais plural. Depois da ayahuasca, eu lancei meu primeiro livro sobre inventores negros e de lá, fui convidada para ir ao programa do Jô Soares, e de repente da Regina Casé, e do Pedro Bial, e da Fátima Bernardes.

Eu usei o meu status para fomentar algumas iniciativas sociais. Uma delas é o Plano de Menina, um projeto que capacita e conecta garotas de periferias com grandes oportunidades profissionais. Outro evento foi um TEDx só de mulheres negras, trazendo o Grajaú e o Capão Redondo dentro do hotel Unique em São Paulo.

Depois de tantas mudanças, eu me reinventei no setor privado. Hoje, eu me dedico a ajudar mulheres a revelarem sua melhor versão. Eu, que cheguei no Brasil machista, me tornei aqui feminista e atualmente sou a provedora da casa.

Neste ano, eu criei o Instituto do Protagonismo Feminino, pra ensinar a fórmula do sucesso a mulheres periféricas ambiciosas. Eu quero ajudar elas e mentorar elas a entender como criar esse caminho de sucesso. Eu já mentorei centenas de mulheres negras advogadas do projeto Black Sisters in Law. Também mentorei mulheres negras do governo atual, para elas poderem se tornarem senadoras, deputadas e vereadoras. A minha expertise é tanto negociar com as pessoas da Fiesp para contratar essas mulheres quanto ajudá-las a crescer na carreira.

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Eu acredito que as mulheres podem salvar o mundo. Se olhamos o modelo capitalista de produzir cada vez mais está causando o aquecimento global. Se a gente quiser reverter a destruição do mundo, precisa mudar esse sistema que polui o ar, os oceanos e os rios.

Há milhares de anos, os homens lideram o mundo, muitas vezes, através de guerras, de violência, de competição, de hierarquia. Por que não testar lideranças femininas em todas as esferas? A mulher, muitas das quais dão à luz aos seres humanos, e que representa mais da metade do planeta, precisa protagonizar a mudança que queremos ver no mundo. Eu acredito muito que uma sociedade governada por mulheres nos ajudaria a equilibrar a balança da desigualdade e tornar o mundo um lugar melhor. 

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Geyze Diniz: Nossas histórias não acabam por aqui. Confira mais dos nossos conteúdos em plenae.com e em nosso perfil no Instagram @portalplenae.


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