Para Inspirar
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Para Inspirar
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Geyze Diniz: Rene Silva fundou o jornal Voz das Comunidades com apenas 11 anos. Ele morava no Morro do Adeus, no Rio de Janeiro, e percebeu que a comunicação era um instrumento poderoso para ajudar a melhorar a vida dos moradores. Com o passar dos anos, o Voz das Comunidades rompeu a bolha regional e se tornou referência sobre o cotidiano dos bairros periféricos do Brasil. Eu sou Geyze Diniz e esse é o podcast Plenae. Ouça e reconecte-se.
Rene Silva: Eu nasci no Rio de Janeiro. Mas o Rio que eu conheci na infância não é a Cidade Maravilhosa que aparece nas novelas da Globo. Eu cresci no Morro do Adeus, no Complexo do Alemão, Zona Norte do Rio. A minha infância, ela foi marcada por uma guerra entre facções criminosas que disputavam o tráfico de drogas dentro da comunidade. Os territórios eram separados por muros invisíveis, e cada lado da rua era comandado por uma facção diferente. Ninguém podia cruzar essa linha imaginária, nem mesmo as crianças e adolescentes do bairro.
A minha família morava bem no alto do morro, e dava para ver os rastros dos tiros atravessando de um lado para o outro. A gente tinha que chegar em casa cedo e fechar tudo para diminuir o risco de morrer. Mesmo assim, de vez em quando, alguma bala perdida entrava em casa. A geladeira da minha da minha mãe, alguns móveis e as paredes tinham marcas de tiro. Às vezes, o tiroteio começava tipo 10h da noite e varava a madrugada inteira, até amanhecer.
Da minha casa dava para ver a pista do aeroporto do Galeão. Eu olhava aqueles aviões pousando e decolando e ficava imaginando se um dia eu poderia viajar pelo mundo também. Era algo muito distante da minha realidade, mas eu sonhava com um futuro diferente no meio daquele caos que eu vivia.
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O melhor refúgio para os meus sonhos era a escola pública que eu frequentava. A diretora e os professores conseguiram criar um ambiente acolhedor para os alunos, apesar do entorno violento. A minha escola tinha um jornal e uma rádio comunitária. Eram projetos criados e tocados pelos alunos mais velhos, já perto do Ensino Médio. Quando eu tinha 11 anos de idade, eu quis participar desse jornal, mas a diretora disse: “você ainda é muito novo, não dá pra você participar, você acabou de chegar na escola”. Mas eu insisti tanto, tanto, que ela me deixou entrar no projeto.
Aquela atividade me fez enxergar várias coisas que eu não notava antes. Eu passei a perceber os problemas sociais no caminho de casa para escola e da escola para casa. Tinha esgoto a céu aberto, rua sem asfalto, poste sem iluminação, campo de futebol que precisava de reforma, pracinha em mau estado… não faltava assunto. Era o tipo de coisa que, se acontecesse no Leblon, ia aparecer na TV e nos jornais no mesmo dia.
Mas, numa favela, a grande mídia não dava a menor bola, e o poder público, menos ainda. Aí eu tive a ideia de criar um jornal dentro da comunidade para denunciar todas essas coisas. Eu fui conversar com a diretora da escola sobre isso. Ela achou que eu era muito cru para fazer um jornal sozinho. Fazia uns três meses que eu estava contribuindo com o jornal dos alunos.
Mas eu sou muito insistente. E eu bati o pé e ela topou me ajudar. A escola conseguiu para mim um computador usado, uma impressora e uma máquina fotográfica. Eu escrevia os textos, tirava fotos, diagramava as páginas, imprimia o jornal e distribuía os exemplares pelo bairro. As primeiras edições, por exemplo, eram feitas em uma folha, aquela folha A4 dobrada. Cada edição tinha, sei lá, quatro páginas, no máximo.
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O projeto foi crescendo e, em 2010, eu me tornei conhecido fora da comunidade também. Naquele ano, na manhã de 28 de novembro, 3.500 homens da Polícia Civil, da Polícia Militar, da Marinha e da Polícia Federal ocuparam o Complexo do Alemão. Imagens gravadas pela Globo em um helicóptero mostravam traficantes armados fugindo por uma estrada de chão batido. Essas cenas rodaram o mundo.
E as pessoas no Brasil inteiro queriam saber como é que estava a vida dentro da comunidade, e eu comecei a postar as coisas no Twitter, na conta do Voz. Eu escrevia coisas do tipo: “Nesse momento, as escolas e as creches da comunidade pararam de funcionar; ou sei lá, o ônibus parou de circular; o comércio fechou, as pessoas não estão conseguindo voltar pra suas casas”. E a cobertura da mídia estava muito focada nas apreensões de drogas, nas mortes, nessas informações que as autoridades passam, geralmente, via assessoria de imprensa.
Mas eu estava ali, reportando o impacto daquela operação no cotidiano de milhares de pessoas que moravam dentro da comunidade e não conseguiam sair para trabalhar ou voltar pra casa. A situação estava cada vez mais tensa dentro da comunidade. E eu tinha acesso a informações exclusivas, que a grande mídia não tinha, porque eles não estavam ali dentro da comunidade.
E de uma hora para outra, passei a ser seguido por milhares de pessoas. Eu virei narrador em tempo real daquela megaoperação. Quando os jornalistas descobriram que eu era um garoto de 16 anos de idade e tinha um jornal, eles começaram a me chamar, e eu virei uma espécie de “correspondente de guerra”.
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Depois disso, a gente rompeu as barreiras da comunidade, e a grande mídia se tornou nossa parceira.
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As redações de jornais, rádios e TVs começaram a abrir os espaços para assuntos que aconteciam dentro das favelas. Não só para os problemas sociais, mas também para as notícias boas também, tipo mostrar os projetos sociais, culturais. A gente ganhou mais visibilidade num espaço que não existia pra gente antes.
Quem está de fora não entende direito que Complexo do Alemão é uma coisa, Complexo da Maré é outra completamente diferente e assim por diante. Cada lugar tem as suas particularidades, as suas questões internas. Mas, de qualquer maneira, é muito importante furar essas bolhas, principalmente pelo fato de a gente ganhar mais aliados na defesa dos nossos interesses.
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Quando uma criança morre por bala perdida numa comunidade, a gente vai até a casa da família e mostra tudo o que aconteceu. Foi assim com a menina Eloah da Silva dos Santos, de 5 anos. No ano passado, ela levou um tiro dentro de casa, durante a comemoração do mêsversário da irmã caçula. Nas páginas do Voz das Comunidades, as pessoas não são só uma estatística triste. Elas têm um rosto, uma história.
E os eventos ficaram grandes e as pessoas famosas cada vez mais, interessadas em participar das nossas festas. A gente já fez feira de gastronomia e bloco de carnaval, que não tinha na comunidade. E esse ano, a gente promoveu o Arraiá do Alemão, que foi a maior festa junina da Zona Norte do Rio de Janeiro, um evento para mais de 20 mil pessoas. No encerramento, teve um showzaço da Daniela Mercury com 2 horas e meia de duração, de graça, para toda a comunidade.
No Dia das Crianças, eu pedi para minha equipe pensar em algo diferente. O pessoal, então, começou a viajar. E a gente falou: ”Vamos levar a Xuxa”, “a Xuxa pra dentro do Complexo do Alemão?”. Até que virou uma realidade. A gente fez uma sessão de exibição de um filme dela num campo de futebol lotado, eram mais de 700 crianças assistindo. A festa tinha corte de cabelo, trança, maquiagem, oficina de perna de pau, orientação sobre saúde bucal, yoga e uma sessão de vacinação infantil com a presença do Zé Gotinha. A Xuxa nunca tinha subido o Complexo do Alemão. Ela subiu o morro, andou pela comunidade e tirou muitas fotos com os fãs.
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Eu costumo dizer que sou uma pessoa movida a desafios. Eu gosto de fazer barulho, eu gosto de criar atos grandiosos. E na última eleição, eu desafiei o presidente Lula a visitar o Complexo do Alemão. Ele foi e colocou 0 boné com as siglas do CPX, que significa Complexo do Alemão.
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Eu vivo viajando, mas eu mantenho uma conexão muito forte com a comunidade e ainda moro no Morro do Adeus. Os problemas sociais que eu publicava numa folha A4 ainda existem. Tem esgoto a céu aberto, buraco na rua, poste sem iluminação, praça sem reforma. A diferença é que, hoje, a gente tem voz e um veículo próprio para denunciar tudo o que acontece na favela.
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Não dá pra resolver todos os problemas do mundo, mas é possível diminuir o sofrimento humano. Os meus maiores sonhos são: não ter ninguém passando fome, nem sendo vítima de injustiça, violência e racismo. Eu sei que esse desejo é uma grande utopia, mas eu luto dia e noite por um mundo melhor.
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Geyze Diniz: Nossas histórias não acabam por aqui. Confira mais dos nossos conteúdos em plenae.com e em nosso perfil no Instagram @portalplenae.
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