Leia a transcrição completa do episódio abaixo:
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Alexandra Loras: Eu cresci sendo a única negra da casa, porque eu só convivi com o lado branco da família. Os meus irmãos biológicos são loiros e ruivos. Na infância, eu sempre pensava: “Não é possível eu ter nascido num lar tão diferente. Um dia os meus pais verdadeiros vão me resgatar”. E mais tarde eu entendi que a melhor forma de me resgatar era através do empoderamento feminino e do desenvolvimento pessoal.
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Geyze Diniz: Quando pequena, Alexandra Loras aprendeu que, mesmo com os desafios impostos pela cor da sua pele, ela podia sonhar mais alto. Sua trajetória acabou levando ela para experiências que a ajudaram a encontrar o seu propósito: impactar e ajudar mulheres. Eu sou Geyze Diniz e esse é o podcast Plenae. Ouça e reconecte-se.
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Alexandra Loras: Quando eu tinha 7, 8 anos, inventei uma brincadeira com a minha vizinha. A gente tocava a campainha das casas ao redor e pedia licença pra procurar o nosso gato, que tinha fugido. Na verdade, não existia nenhum gato. Era só um jeito de entrar nas casas dos outros.
Como criança, claro, o objetivo era ganhar um copo de leite e uns biscoitos. Mas eu já tinha o desejo antropológico de observar a decoração e a estrutura de outros lares e famílias. Eram realidades muito diferentes da minha.
Eu que nasci e cresci em Paris, na França, mas não na Paris turística que o brasileiro conhece. Eu morava na periferia. A minha mãe era professora de ioga e bem esotérica. Era sindicalista e engajada em política. Uma feminista.
Ela teve cinco filhos com quatro maridos diferentes. Já o meu pai nasceu na Gâmbia, na África, numa aldeia que até hoje não tem eletricidade. Ele emigrou para França nos anos 70. Depois que ele se separou da minha mãe, eu convivi pouco com ele. Eu tinha 15 anos quando o meu pai morreu, alcoólatra e morador de rua. Na minha leitura é que o racismo estrutural francês matou ele.
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A minha mãe tinha uma origem de classe média alta. O meu bisavô era engenheiro e foi um grande industrial. Meus avós e bisavós nunca aceitaram minha mãe branca se casar com meu pai negro. Eu sofria racismo dentro de casa. Um dos meus padrastos, por exemplo, falava para meus irmãos coisas como: “Vocês não acham que a Alexandra tem cor do cocô?”. Também do meu avô, eu ouvi: “Não quero que você saia, Alexandra, porque é perigoso lá fora, tem negros e árabes”. Ele talvez não me enxergou como uma negra nem percebeu que aquela frase era ofensiva. Mas o racismo não precisa, muitas vezes, ser verbalizado. Ele tá numa estrutura que te inferioriza. Tenta imaginar, os teus próprios livros didáticos não te representam. O desenho animado não tem nenhuma criança negra ou nenhum super-herói negro ou jamais uma princesa negra.
Já desde pequenininha aprendi a amar racistas e eles aprenderam também a me amar. Por isso, de uma certa forma, desenvolvi uma certa expertise para lidar com pessoas que não enxergam a dor histórica da escravidão como um problema global.
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Eu tive o privilégio de estudar em internato de freiras católicas. Fui a única entre os cinco filhos que frequentou escolas particulares da elite. Não sei exatamente porque a minha mãe fez isso, mas acredito que foi pelo meu bom desempenho acadêmico.
No internato, eu convivi com muitas meninas ricas. Eu morria de vergonha de levar amigas pra minha casa. A gente morava no depósito de uma livraria que a minha mãe abriu. No banheiro, não tinha vaso sanitário com assento. Era banheiro turco, sabe aquele com buraco? Que a gente cobria com um pedaço de madeira pra tomar banho.
Eu sofri muito com racismo na escola. Eu não era convidada pras festas de aniversário, por exemplo. Até que eu não aguentei mais. A dor do racismo e a dor de estudar num colégio extremamente competitivo me fizeram largar tudo. Eu pedi pra minha mãe pra morar fora da França. Aos 17 anos, fiz um intercâmbio como au pair na Alemanha, na Inglaterra e nos Estados Unidos. E como au pair, eu trabalhava como babá 5 horas por dia, em troca de moradia, alimentação e uma ajuda de custo.
Essa experiência mudou a minha vida pra sempre.
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Na Alemanha, eu caí com uma família de origem aristocrata. Durante seis meses, em imersão total, vivi coisas que só quem nasce na nobreza vive. Toda noite, os jantares tinham candelabro e música clássica. Eu fiquei hospedada em castelos e participei de caçadas, como aquelas da corte inglesa. Os alemães não me deixavam na cozinha por eu ser babá. Eu era incluída em todas as atividades como uma grande irmã da família.
Da Alemanha, fui para Inglaterra, onde morei com uma família que transitava entre celebridades. Um dia, a gente assistiu a um documentário e eu percebi que o personagem principal do filme tava sentado na sala. Era o escritor Salman Rushdie. Em outra ocasião, a gente viajou para a Itália e assistiu a gravação do filme Beleza Roubada, do Bernardo Bertolucci, que era nosso vizinho e amigo da família.
Era uma imersão extraordinária com intelectuais e pessoas de sucesso. Eu fui aprendendo, pouco a pouco, os códigos de como eles se vestiam, como comiam, como decoravam suas casas.
Claro que eu não queria mais voltar pra escassez, pra uma realidade disfuncional. Eu queria viver aquela narrativa também.
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Esse desejo cresceu quando eu apliquei pra uma vaga de au pair nos Estados Unidos.
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Com a primeira família, não rolou bem. Aí eu fiquei morando de forma ilegal nos Estados Unidos, até eu me tornar babá do filho de um bilionário. Esse homem me apresentou o conceito de desenvolvimento pessoal. Ele tinha umas fitas cassete com gravações do Tony Robbins, o coach do Bill Clinton, da Oprah Winfrey e de tanta gente de sucesso.
A partir dali, eu comecei uma jornada de autoconhecimento que nunca mais parou. No primeiro curso de desenvolvimento pessoal, eu comecei a fazer as pazes com as dificuldades que eu enfrentei. Fui entendendo que a adversidade muitas vezes tá lá pra te fazer crescer. Nascer numa família racista e disfuncional, talvez, me preparou pra eu ser quem eu sou.
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Eu voltei pra França, estudei marketing e multimídia e eu fui trabalhar na IBM. Em dois meses de trabalho, fui promovida. Depois de um ano, quiseram me promover de novo, mas eu me auto sabotei.
Os meus chefes enxergavam em mim uma liderança que eu não enxergava. Era a síndrome da impostora. Eu me sentia uma fraude, porque não era engenheira de TI. Me sentia mal, porque percebia os ciúmes dos meus colegas.
Aí, eu soube que o Tony Robbins ia dar um workshop de três dias em Londres. Pedi autorização pro meu chefe e tirei umas folgas. Nesse curso, eu andei sobre a brasa ardente e me dei conta que eu tinha muitas crenças limitantes ao meu respeito. Quando eu perdi o medo de queimar o pé, eu perdi o medo de todo o resto. E a partir dali, o céu era o limite.
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No workshop do Tony Robbins, eu percebi que o meu propósito era sanar a dor de ter crescido num país monocraticamente branco na televisão. E eu pensei: “Posso continuar a xingar o sistema, mas porque eu não vou lá mudar ele”. Então, eu pedi demissão da IBM e fiz tudo pra me tornar apresentadora de TV. Eu de fato me tornei uma das primeiras apresentadoras de TV negras da França, nos canais TF1 e France 3.
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Foi nessa época que eu cansei de morar em bairros de periferia. Eu me mudei para um apartamento pequenininho ao lado da Champs-Élysées e comecei a me sentir mais respeitada. Acahava um absurdo, porque eu sou a mesma Alexandra, mas isso acontece. Eu morava no sexto andar de um prédio sem elevador e em um lugar que deve ter sido construído pra abrigar as faxineiras de alguém que vivia embaixo.
Um dia, o proprietário perguntou se eu conhecia uma pessoa pra alugar o apartamento do térreo. Era um imóvel iluminado e reformado de 150 metros quadrados. Já tava mobiliado, com móveis luxuosos e obras de arte. Eu me candidatei.
Ele riu da minha cara, porque sabia que eu não podia pagar um aluguel desse. Mas ele me deixou sublocar o apartamentinho de cima e, com isso, eu pagava metade do aluguel de baixo. Como eu já era meio empreendedora, eu lancei uma coleção de bijuteria naquela época e usei o apartamento como showroom. Essa coleção bombou. E eu também estava bombando na TV.
Eu comecei a fazer jantares e coquetéis, misturando convidados da mídia e de várias áreas. As pessoas ficavam impressionadas. Como uma negra poderia morar num lugar que só era acessível aos herdeiros da aristocracia? Eu virei anfitriã e as minhas festas passaram a ser disputadas. Foi numa dessas conexões que eu conheci o meu marido.
Por causa dele, eu acabaria deixando o meu emprego na TV. O Damien era diplomata e conselheiro do Nicolas Sarkozy, presidente da França na época. Havia um conflito de interesse entre a função dele e a minha, como apresentadora de um programa político. Então, eu acabei abdicando da minha carreira, como tantas mulheres fazem numa sociedade patriarcal.
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O meu marido foi nomeado embaixador da França na Tailândia, que é o meu país preferido. A nossa mudança já seguia de navio para Bangkok, quando o Sarkozy perdeu a eleição pro François Hollande. Então, nos cortaram a cabeça e nos mandaram de castigo para o Brasil.
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Mas o que pra mim parecia uma punição, no final se tornou uma jornada fantástica, algo que, talvez, estava escrito nas estrelas.
Eu cheguei a São Paulo com a expectativa de aprender sobre o mundo diplomático e exercer a maternidade. O meu filho, Raphael, nasceu um pouco antes da nossa mudança.
Como consulesa da França, eu organizava eventos sociais para promover a excelência à francesa. Tinha degustação de Dom Pérignon e jantar preparado pelo chef Erick Jacquin. Nós recebemos políticos, presidentes, governadores, prefeitos e empresários. Mas, também, grafiteiros, artistas e socialites.
Foram mais de 6 mil convidados por ano. Eu, que tinha vergonha de levar as minhas amigas ricas pra minha casa na infância, fui eleita a melhor anfitriã de São Paulo pela revista Vogue.
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Só que o Brasil me ensinou muito mais do que transitar entre a elite sul-americana. Foi aqui que eu descobri a minha negritude numa escala diferente. Eu senti todo o significado de ser uma mulher negra. Eu muitas vezes fui confundida como babá e barrada na portaria de um clube de São Paulo. Seguranças de supermercados me seguiam enquanto eu escolhia produtos importados. Nas minhas próprias recepções, muitos convidados passavam direto sem me cumprimentar na porta. Achavam que eu era a faxineira do cônsul.
Essa dor é um processo de aprendizado que nenhum branco pode entender, como um homem nunca vai saber o que é ser mulher. E dentro dessa interseccionalidade de gênero e de raça, eu me fortaleci. Eu resgatei o meu poder com a ayahuasca, sim, essa medicina sagrada dos povos originários do Brasil. Eu já tinha ouvido falar do chá.
Muita gente, em vários países que eu visitei, me recomendavam essa experiência. Eu nunca quis. Tinha medo e pavor. Até que eu fui a um festival de ayahuasca em Alto Paraíso, Goiás. A minha ideia era vender um documentário sobre aquela temática pra TV francesa. Mas, quando eu tava lá, tomei coragem e participei do ritual.
Foi a noite mais linda da minha vida. Eu que já fui seis vezes para o Burning Man, um evento colaborativo que acontece no meio de um deserto dos Estados Unidos, e o fato de já ter participado de mais de 100 retiros de desenvolvimento pessoal, posso dizer que na Europa, as experiências são muito focadas na racionalidade. Mas a ayahuasca me conectou diretamente com o meu coração. Foi parecido com a iboga, uma raiz sagrada que cresce no Gabão e vem da cultura bwiti.
Nas visões da ayahuasca, eu vi uma mulher negra na frente de um caldeirão com um turbante branco na cabeça. É como se fosse uma entidade minha. Eu enxerguei a força dela. Enxerguei o meu poder de transformar vidas e de poder impactar mulheres. Depois que eu tive essa epifania, o mundo conspirou. Quando você está na sua essência, os portais se abrem. Através das plantas sagradas indígenas eu me encontrei.
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Primeiro, o meu lado militante aflorou. Na França e nos Estados Unidos, a militância negra é muito acadêmica e restrita a grupinhos radicais. No Brasil, ela é mais plural. Depois da ayahuasca, eu lancei meu primeiro livro sobre inventores negros e de lá, fui convidada para ir ao programa do Jô Soares, e de repente da Regina Casé, e do Pedro Bial, e da Fátima Bernardes.
Eu usei o meu status para fomentar algumas iniciativas sociais. Uma delas é o Plano de Menina, um projeto que capacita e conecta garotas de periferias com grandes oportunidades profissionais. Outro evento foi um TEDx só de mulheres negras, trazendo o Grajaú e o Capão Redondo dentro do hotel Unique em São Paulo.
Depois de tantas mudanças, eu me reinventei no setor privado. Hoje, eu me dedico a ajudar mulheres a revelarem sua melhor versão. Eu, que cheguei no Brasil machista, me tornei aqui feminista e atualmente sou a provedora da casa.
Neste ano, eu criei o Instituto do Protagonismo Feminino, pra ensinar a fórmula do sucesso a mulheres periféricas ambiciosas. Eu quero ajudar elas e mentorar elas a entender como criar esse caminho de sucesso. Eu já mentorei centenas de mulheres negras advogadas do projeto Black Sisters in Law. Também mentorei mulheres negras do governo atual, para elas poderem se tornarem senadoras, deputadas e vereadoras. A minha expertise é tanto negociar com as pessoas da Fiesp para contratar essas mulheres quanto ajudá-las a crescer na carreira.
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Eu acredito que as mulheres podem salvar o mundo. Se olhamos o modelo capitalista de produzir cada vez mais está causando o aquecimento global. Se a gente quiser reverter a destruição do mundo, precisa mudar esse sistema que polui o ar, os oceanos e os rios.
Há milhares de anos, os homens lideram o mundo, muitas vezes, através de guerras, de violência, de competição, de hierarquia. Por que não testar lideranças femininas em todas as esferas? A mulher, muitas das quais dão à luz aos seres humanos, e que representa mais da metade do planeta, precisa protagonizar a mudança que queremos ver no mundo. Eu acredito muito que uma sociedade governada por mulheres nos ajudaria a equilibrar a balança da desigualdade e tornar o mundo um lugar melhor.
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