Para Inspirar

Boris Casoy em "Ficar sem fazer nada é abrir a porta para a depressão"

A oitava temporada do Podcast Plenae está no ar! Confira a história do jornalista Boris Casoy. Aperte o play e inspire-se!

12 de Junho de 2022


Leia a transcrição completa do episódio abaixo:


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Boris Casoy: Aos 80 anos, a minha vida se modificou. Eu tive que sair da RedeTV, devido a pandemia, e eu acabei seguindo por um caminho que eu já tinha imaginado percorrer, de fazer o Jornal do Boris na internet. Mais recentemente, fui contratado como comentarista da CNN.

A minha manhã estava totalmente ocupada, mas a tarde e a noite estavam livres, e eu acho que ter dois períodos do dia pra fazer nada é muito tempo vazio. Aí eu resolvi prestar vestibular e estudar veterinária, um desejo que eu tinha há muito tempo, materializado por um amor e uma grande curiosidade pelos animais. 


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Geyze Diniz: Qual é a idade limite para se realizar sonhos? Não existe idade quando o sonho é um propósito. Boris Casoy tem uma carreira consolidada na TV há mais de 50 anos, mas ainda é um calouro nos bancos da faculdade de veterinária. Conheça a história que fez Boris Casoy voltar para as salas de aula, aos 80 anos, para realizar um sonho. Ouça no final do episódio as reflexões do rabino, escritor e dramaturgo Nilton Bonder para te ajudar a se conectar com a história e com você mesmo. Eu sou Geyze Diniz e esse é o Podcast Plenae. Ouça e reconecte-se.


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Boris Casoy: Até os 9 anos de idade, eu praticamente não andei. Eu e a minha irmã gêmea tivemos poliomielite, uma doença para a qual não havia vacina naquela época, foi em 1942. A minha família tinha boa condição financeira e a minha mãe nos levou para os Estados Unidos, onde fomos operados. O problema foi remediado e eu fiquei com poucas sequelas, mas eu praticamente perdi a minha infância.


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Naquela época, a psicologia era uma coisa associada à loucura, então, como não era hábito, eu não tive nenhum auxílio psicológico para lidar com a minha paralisia. Nada, absolutamente nada. Quando entrei na adolescência, a partir dos 13, 14 anos, eu me tornei um garoto problema. Eu fazia o que eu queria, era birrento, era briguento e não estudava muito bem. Na minha cabeça, eu estava recuperando o tempo perdido, fazendo tudo que eu não tinha podido fazer antes. 


Eu não era malvado, malvaaaaado, mas era agitado e não me adaptava às restrições da época. Saía de casa sem autorização da minha mãe, pegava a bicicleta e ia longe. A bicicleta equivalia a um par de asas. Jogava futebol na rua, o que na época era algo MUITO grave, perseguido pela polícia, porque a vizinhança reclamava. A minha mãe achava que era coisa de moleque da rua, uma expressão muito forte naquela época, muito cerca, muito próximo de um marginal. 


Ao mesmo tempo, dentro daquela desobediência que levava a marca da pólio, curiosamente foi brotando dentro de mim um interesse pelos mistérios do universo, pela busca da presença divina. E esse interesse se materializava na contemplação da natureza e numa estima muito grande por animais. A gente não tinha nenhum bicho em casa, porque a minha mãe não era grande apreciadora da companhia deles. Ela acreditava que os animais transmitiam doenças, um tabu antigo. Ela gostava de bichos, achava que eles tinham que ser bem tratados, mas longe de casa. 


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Só depois de adulto eu fui ter animais de estimação, cachorro, gato, coelho. Eu gosto de todos os bichos e me esforcei e me esforço para compreendê-los melhor. Na minha casa eu tenho um quintal grande e não deixo matar nenhum bicho. Teia de aranha eu nem desmancho. Se você entrar em alguns cantos, vai achar que ninguém limpa a minha casa. Eu não trato a aranha como um animal doméstico, mas eu a respeito. Respeito e admiro. Cobra eu também nunca mato, eu espanto, mesmo as venenosas. E como há cobras venenosas neste planeta. Eu só procuro evitar animais que são prejudiciais ao ser humano, tipo pernilongo, barata, etc, aí não tem jeito. 


A companhia dos bichos me dá uma grande satisfação. Hoje eu tenho dois cachorros, a Neguinha, que é pretinha, adotada. Ela é uma princesa, inteligente e muito boazinha. Quando troveja, ela pede pra ficar comigo e dorme no meu quarto. Há uns meses, adotei outro cachorrinho que um amigo meu encontrou perdido na rua, é o Bimbo, um vira-lata caramelo. Ele chegou esquelético, sujo, mancando de uma pata e agora ele está lindo e nós estamos tratando as feridas dele. Ele é muito matreiro, é muito moleque, e já se adaptou muito bem na casa. 


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Foi desse amor pelos bichos que veio o interesse de estudar veterinária, numa fase da vida em que eu tinha muito tempo livre. Ainda estou no começo do curso, então as disciplinas, que são básicas, são as mais difíceis. Pelo menos é isso que me dizem. Duas delas são particularmente desafiadoras para mim, química e biologia, porque eu sempre fui um aluno mais voltado para as ciências humanas. Cursei o clássico, como se chamava um pedaço do curso médio, quando eu era adolescente.

Biologia tem sido muito mais fácil de me adaptar, eu busco material de estudo na internet e em livros. Me interessei pelo corpo humano também e fui pesquisar o assunto por curiosidade. Já química não me desperta nenhum interesse. Eu sei que ela é necessária, mas não é algo que eu vá lidar diretamente no dia a dia. Essa matéria eu só estudo pra passar de ano mesmo. 


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Por causa da pandemia, as aulas têm sido online, nessa experiência nova de educação pela internet. Claro que não é como voltar aos bancos escolares integralmente, inclusive toda uma relação com os outros alunos e com os professores. Eu estou lidando com imagens, não com as pessoas. Sinto falta desse contato olho no olho e, evidentemente,  só conheço a turma de maneira virtual, mas por enquanto tenho que me conformar, tem que ser assim.


Eu estudo no turno da noite, que vai das 19h até às 22h. No começo, por causa da notoriedade, a minha presença causou um pouco de surpresa na turma, mas o pessoal aparentemente já está se acostumando, inclusive os professores. Quando a gente puder ter as aulas presenciais, acho que vai haver um momento de curiosidade, mas depois eles vão acabar percebendo que eu não sou nenhum ET.


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Eu não sou o primeiro da classe, sou apenas um estudante mediano. A vantagem é que eu estudo porque eu gosto, pra satisfazer as minhas curiosidades, não pra exercer uma profissão. Se eu fosse trabalhar como veterinário, o que vai ser meio difícil, a minha predileção estaria com os animais silvestres. O bicho doméstico exige cuidados, enquanto o selvagem se vira e sobrevive por meios próprios. Por isso eu tenho uma grande admiração por eles. 


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O curso está me dando uma grande satisfação pessoal, ocupando o meu tempo e me trazendo novos desafios. Eu sei que, se eu ficar parado, eu me encaminho para um processo depressivo. Uns anos atrás, eu comecei a sentir um vazio que surgia, especialmente, aos sábados e domingos. Procurei meu médico e descobri que eu não tinha nada de patológico, mas era o que ele chamou de melancolia que, sim, poderia evoluir para uma depressão. 


O ser humano é sociável e, por isso, se isolar é remar contra a natureza. A gente não foi feito pra ficar parado. Eu comecei a trabalhar aos 15 anos, como narrador esportivo numa emissora de rádio, e nunca mais parei, nunca mais. Fui editor-chefe da Folha de São Paulo duas vezes, somando 8 anos. É uma função muito, muito pesada, que eu desempenhava com grande vontade.

Depois, foram mais de 30 anos como âncora de telejornais, numa rotina puxada, mas da qual eu sempre gostei. Sempre tive prazer. Aliás, eu nunca trabalhei com uma atividade que eu não gostasse. Que eu não gostasse muito. Pra mim, trabalhar não é muito distante de lazer, mas com responsabilidade. 


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Mesmo depois que eu parei de apresentar um jornal diário, eu não fiquei parado. Me tornei um youtuber e, mais recentemente, um comentarista da CNN. Foi uma surpresa o convite. Eu acho que a pessoa, se ela tem uma mínima condição física e mental para seguir uma atividade profissional, ela deve, precisa, tem de continuar. Eu não suportaria psicologicamente ficar sem fazer nada. Quando você tem uma profissão da qual você gosta, sente falta do exercício dela.

E também eu tenho o conceito de que essa aposentadoria de você ficar de chinelo, na praia, passeando, ou deitado numa rede, é uma espécie de morte em vida. O trabalho me dá prazer e implica um monte de coisas tipo relações pessoais, compromissos e objetivos. É preciso ter objetivos, é preciso ter um desafio. Se alguém não tem onde trabalhar, pode se voluntariar em alguma instituição. A pessoa vai se sentir mais feliz e realizada, vai dormir sabendo que trabalhou para ajudar o próximo. Isso não é só bom, é espetacular. 


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Eu acho que aquele cara que fica só com seus pensamentos abre um portal para a depressão. A gente precisa ter uma atividade, repito, um desafio no nosso dia a dia. Entre ser cauteloso e encarar um desafio, eu sempre, na minha vida toda, optei pelo desafio e vou continuar assim, vou continuar com essa opção. Não quero dizer que eu vá jogar dinheiro pela janela, mas, claro, assumir as opções possíveis sem assumir riscos. 


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A velhice por enquanto não me fez ter uma vida mais recolhida, mais calma, não. O que eu sinto e lamento é a decadência física, que chegou muito recentemente e de maneira acelerada. É inevitável. O corpo não responde com a mesma presteza. Eu ando mais devagarzinho, tenho medo de cair, medo de escorregar no banheiro, tomo mais cuidado pra descer as escadas. Mas eu sei que esse processo é um processo normal e sabia que algum dia ele viria, por isso, faço exercícios e tento manter uma alimentação adequada pra atrasar um pouco mais essa perda física.


A minha mente é a mesma e a memória aparente está boa, pelo menos por enquanto. Tenho os mesmos esquecimentos que eu sempre tive, como a dificuldade de reter nomes, mas não apareceu nada, nada de novo. Olha, ter uma atividade profissional ajuda a manter a minha cabeça e a minha memória em ordem. Eu tomei uma decisão de que, enquanto eu puder fazer alguma coisa, vou fazer. E eu recomendo o mesmo pra quem entra nos 60, 70 anos. A cabeça boa, na minha opinião, faz o corpo sadio, e o corpo sadio faz a cabeça boa. 


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Nilton Bonder: Muito linda a iniciativa do Boris, não só de iniciar este novo projeto, mas de torná-lo público, abrindo a possibilidade pra tantas pessoas, de imaginar reinvenções e mudanças em nossa realidade longeva. Os humanos ganharam cerca de 20 anos em média em sua expectativa de vida e há espaços existenciais novos a serem cobertos.

A aposentadoria, como o Boris aponta, era um grande sabático com prazo de validade, mas não é o mesmo em nossos dias. O ser humano pode fazer terapias ocupacionais por um tempo, mas não por décadas. E o ser humano precisa  sentido e propósito, condições para não estar condenado a viver de forma torturante e humilhante. 


Várias universidades mundo afora já ofereceram programas de reinvenção de carreiras, motivadas não por desagrado, mas porque as pessoas, de alguma forma, se graduam de certa função. Sempre digo que as coisas não necessariamente terminam, trabalhos ou relações, mas nos graduamos delas. E se a memória e a destreza não são as mesmas do primeiro vestibular, a experiência e a vivência neste segundo lhe conferem outra qualidade.

As sequelas da pólio e as sequelas dos desgastes do viver, sim, põe mais sobre o corpo do que sobre a mente, e como Boris diz, há sim que se cuidar mas para não cair e levar tombos, mas para a cabeça é o contrário, ela nunca foi tão potente em entendimento sobre o viver e a vida. Dar espaço para aventuras radicais não é contraindicado, muito pelo contrário. 


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Geyze Diniz: Nossas histórias não acabam por aqui. Confira mais dos nossos conteúdos em plenae.com e em nosso perfil no Instagram @portalplenae.


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Para Inspirar

Drauzio Varella em “Escolhas que mudam vidas”

Ouça e leia o episódio da nona temporada do Podcast Plenae, conheça a história do médico Drauzio Varella, que encontrou sua missão de vida nos corredores dos presídios.

18 de Setembro de 2022



Leia a transcrição completa do episódio abaixo:


Drauzio: Eu sou médico voluntário no sistema prisional de São Paulo há 33 anos. Atualmente, eu só pratico a medicina na cadeia. Eu parei de atender pacientes na clínica particular, depois de 45 anos de atividade intensa e ininterrupta. Eu hesitei bastante antes de tomar essa decisão, porque eu não conseguia me imaginar sem aquela correria com os pacientes no hospital, etc. O que me fez decidir foi o fato de que o meu trabalho na área de educação em saúde se tornou cada vez mais abrangente. Os clientes que eu atendia no consultório são pessoas que têm condições financeiras boas e que podem contratar outros médicos. Tá cheio de gente competente nessa área hoje, a minha ausência não faria a menor diferença. Mas na penitenciária e na comunicação, aí eu posso fazer a diferença.


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Geyze Diniz: Prestes a completar 80 anos, Drauzio Varella continua sua caminhada nutrindo seu propósito: transformar a vida por meio da educação e da medicina.
Trabalhando em presídios diretamente com a população carcerária ou repassando conhecimento através de veículos de comunicação que atingem a grande massa, Drauzio segue seus projetos e nos mostra que a idade não pode ser impeditivo para fazer ou deixar de fazer algo, como ele mesmo diz. Conheça a trajetória exemplar e inspiradora do médico Drauzio Varella. 

Ouça no final do episódio as reflexões da Neurocientista Claudia Feitosa-Santana para te ajudar a se conectar com a história e com você mesmo. Eu sou Geyze Diniz e esse é  o podcast Plenae. Ouça e reconecte-se

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Drauzio: No começo dos anos 80, quando surgiram os primeiros casos de aids no Brasil, a imprensa tratava a aids como “peste gay”. O preconceito contra os homens homossexuais ganhou dimensões avassaladoras. Eu fui a Estocolmo participar de um congresso sobre o HIV em 1985. Na última palestra do evento, o diretor do programa da aids da Organização Mundial da Saúde projetou um slide com uma frase da “Divina Comédia”. Dizia assim: “No inferno, os lugares mais quentes são reservados àqueles que escolheram a neutralidade em tempos de crise”.


Terminou a palestra e eu fui a pé pro hotel. Era uma dessas tardes intermináveis do verão sueco, em que uma luz alaranjada cai sobre as construções da cidade velha. Eu andei a esmo pelo menos por uma hora, com a frase do Dante Alighieri na cabeça. E eu pensei daqui a  20, 30 anos uma neta ou um neto pode me perguntar: “Vô, vocês sabiam que era um vírus sexualmente transmissível, mortal, e não explicaram pra sociedade?”.


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Quando eu voltei pro Brasil, eu fui visitar o meu amigo Fernando Vieira de Mello, que dirigia o jornalismo da rádio Jovem Pan, que era muito diferente dessa de hoje. Eu falei com ele sobre a gravidade do problema que estava por vir. Ele me interrompeu e disse: “Ah, vamos gravar isso que você tá dizendo!”. 


Eu tomei um susto. Naquela época, médicos sérios não falavam nos meios de comunicação de massa. Os que apareciam eram aqueles cirurgiões plásticos de reputação duvidosa que participavam de programas vespertinos de baixa qualidade. Mas naquele momento eu achei que não podia deixar de falar da doença.


Nós gravamos uma entrevista longa, na qual eu descrevi as formas de transmissão do HIV, o quadro clínico da doença e os caminhos que o vírus começava a percorrer no Brasil. Duas ou três semanas depois, encontrei um amigo na Avenida Paulista, ele disse tinha me ouvido na Jovem Pan no dia anterior. Respondi que ele tava enganado, que eu tinha feito essa entrevista semanas atrás. Ele insistiu que não.


Eu procurei o orelhão mais próximo e telefonei pro Fernando. Ele contou que tinha dividido a entrevista em pequenos fragmentos, pra transmitir na programação do dia e atingir mais gente. Eu não acreditei e falei: “Você não devia ter feito isso sem falar comigo. Médicos bons não aparecem nos meios de comunicação. Eu vou ficar mal afamado entre os meus colegas”. Ele respondeu com a frase que abriria um novo caminho na minha vida profissional: “Se é assim, você precisa decidir se quer ajudar a população a evitar a doença ou ficar bem com os seus colegas”.


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As mensagens que nós divulgamos na Jovem Pan tiveram grande repercussão nos anos que se seguiram. Nós estávamos em 1988. O Fernando me disse: “Um dia você vai fazer esse trabalho na TV Globo. Eu disse: “Como assim, Fernando? Que ideia é essa?” E ele disse: “É porque tudo começa no rádio. O que deu certo no rádio acabou na televisão: as novelas, os jornais, os programas de entrevista, de auditório, os humorísticos, os musicais”. De fato, onze anos mais tarde, eu recebi o convite da TV Globo pra falar sobre saúde no Fantástico. Nas mensagens que eu transmito hoje pelo Youtube, Instagram, Facebook, Twitter e até pelo Tik Tok, eu procuro seguir o formato idealizado pelo Fernando Vieira de Mello 40 anos atrás. O cara era um gênio. Ele conseguiu encontrar um formato que se manteve o mesmo até para um meio de comunicação que não existia na época, que era a internet. 


Foi uma outra gravação educativa que me abriu outro capítulo na minha vida: o trabalho voluntário em presídios. Em 89, eu entrei pra fazer um vídeo sobre aids na Casa de Detenção de São Paulo, conhecida popularmente como Carandiru. Aquele lugar era uma cidade, eram 7 pavilhões que chegavam a abrigar 8.000, 9.000 homens.


Vem da infância essa minha atração por filmes de cadeia. Eu adorava assistir aos filmes de presidiários que planejavam fugas cinematográficas, nas salas de cinema do Brás, o bairro onde eu nasci e cresci. A mesma tensão que me eletrizava no cinema tomou conta de mim quando eu entrei na Detenção. O bater das portas de ferro, os guardas com metralhadora nas muralhas, os presos de calça cáqui soltos nos pátios, os carcereiros, os doentes com aids em fase terminal não me saíram da cabeça nas semanas seguintes. O impacto do Carandiru foi enorme. 


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A ideia fixa me fez voltar à Detenção pra sugerir ao diretor, José Ismael Pedrosa, na época, uma pesquisa sobre a prevalência de HIV no presídio, que seria o embrião de uma atividade de atendimento como médico voluntário à população carcerária. Eu tinha 47 anos e uma carreira bem estruturada como médico oncologista. Gostei tanto da experiência na detenção, que nunca mais parei.


De cara nós fizemos um estudo com os presos que recebiam visitas íntimas, eram mais ou menos uns 1.500, 17,3% estavam infectados com o HIV. Mais de 90% deles foram infectados pelo uso de cocaína injetável, que era a droga da moda. Como a sociedade enfiava lá dentro 1.500 mulheres todo o fim de semana, pra transar com aqueles caras sem saber que eles estavam infectados? Sem dar nenhuma proteção pra elas, sem distribuir camisinha?

E quando levei esses dados a diversas autoridades do sistema penitenciário, ouvi as respostas de que seria absurdo distribuir preservativos gratuitos. Eles diziam: “Pra quê? Pra vagabundo fazer sexo na cadeia?”. Eu tive a certeza de que a má vontade era por se tratar de mulheres pobres, em sua maioria, pretas. Ainda levaria seis ou sete anos pra gente conseguir distribuir camisinha nos dias de visita em todos os pavilhões.


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A cadeia dominou o meu espírito. Minha mulher me disse que nunca tinha me visto tão calado. Foi no Carandiru que eu comecei a ver as primeiras mortes por esfaqueamento. É lógico que eu tinha visto mortes violentas no Hospital das Clínicas, no meu tempo de estudante. Mas no Carandiru era rotina. 


Eu lembro de uma segunda-feira em que eu atestei o óbito de quatro meninos esfaqueados. Quando eu peguei o metrô à noite pra ir pra casa, eu fiquei tentando lembrar a fisionomia dos quatro. Eu não consegui identificar um deles, não lembrava nem se ele era branco ou negro. A violência quando é repetitiva, cega a gente.


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Eu fiquei no Carandiru até a implosão da cadeia, que foi um espetáculo que eu não gosto nem de lembrar. Na época, eu senti como se uma parte da minha vida estivesse terminando ali, e na verdade terminou mesmo.


Em 2002, quando a Detenção foi implodida, eu passei a atender na Penitenciária do Estado, que depois seria transformada numa cadeia feminina. Já no primeiro dia, eu falei: “Preciso esquecer tudo o que eu aprendi nesses anos nas cadeias masculinas e começar tudo de novo”. Na cadeia feminina, eu aprendi o que era realmente a condição feminina. Entendi o massacre que a sociedade brasileira faz com as mulheres, especialmente com as mais pobres, mas não só com elas.

Entendi que algumas mulheres só têm liberdade sexual na cadeia. Olha a contradição. É que na prisão, ela pode fazer o que que quiser. Pode namorar outra mulher, pode fazer o papel de marido, pode fazer o papel de esposa, pode cortar o cabelo feito o homem, pode deixar os pelos do corpo crescerem. Não tem repressão. 


Eu permaneci na feminina até 2020, quando chegou a pandemia do coronavírus. Em 2022, voltei aos presídios masculinos, dessa vez como voluntário no Centro de Detenção Provisória do Belém, na zona leste de São Paulo. Eu sou o único médico da cadeia, tem mais de mil presos aguardando um julgamento. Não é fácil contratar profissionais dispostos a trabalhar no sistema penitenciário.


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Hoje, eu agradeço a clarividência e a determinação que eu tive aos 47 anos de idade ao encontrar esse caminho. Impossível imaginar quem eu seria agora se não fosse o contato com esse mundo que transformou a minha vida pessoal, a forma de entender a sociedade, o país e as paixões humanas.


A tendência nossa é sempre conviver com os iguais, com pessoas parecidas com a gente. Se possível da mesma faixa etária, classe social, situação financeira e candidato à presidência da república. Quando você está entre os seus semelhantes, tem segurança de que não vai acontecer nada desagradável. O que é ótimo, claro. O problema é que você começa a ver a realidade do mesmo ângulo o tempo inteiro. As pessoas vão te falar coisas com as quais você concorda e, inclusive, já sabia. Você perde espaço pro contraditório, pro desencontro, pra outras formas de enxergar a realidade. As consequências são: a perda da empatia, o desinteresse pelo outro, o conformismo e o medo de mudanças. A cadeia é uma experiência tão enriquecedora, que eu não consigo ficar sem ela.


Hoje, eu só pratico medicina clínica na cadeia. Estou com 79 anos e, na medida que o horizonte se encurta, aumenta a necessidade de nos concentrarmos no essencial. Nessa fase da vida, prefiro me dedicar mais ao trabalho educativo, porque ele atinge muito mais gente. O impacto dos programas que nós fizemos no Fantástico sobre o cigarro, por exemplo, que foi em 2011, reduziu o número de fumantes significativamente. Até hoje eu encontro gente que parou de fumar quando viu a comparação entre um pulmão saudável, rosadinho, bonito, e o de um fumante, que parecia coberto de piche. Recentemente, nós fizemos um programa sobre o cigarro eletrônico que repercutiu na internet entre a molecada. O impacto da prevenção é imensurável.


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Eu não me imagino parado, de chinelo esperando a morte chegar. Eu prefiro inventar coisas, produzir, estar vivo. Tenho o privilégio de uma genética que me permitiu chegar até aqui e com alguma sabedoria pra procurar novos caminhos. Estou com saúde, o que eu atribuo a duas decisões: ter parado de fumar aos 36 anos e começado a correr maratona aos 50. Quando eu comecei a treinar, eu queria provar pra mim mesmo que não estava ficando velho. Envelhecendo sim, claro, todos nós estamos. Atualmente, eu to treinando pra participar, não sei aí, pela vigésima ou vigésima quinta maratona. Eu perdi as contas.


A vida só vale a pena quando ela está preenchida de ideias e projetos. Idade não pode ser impeditivo para fazer ou deixar de fazer alguma coisa. Se você tem força física, disposição e habilidade, toca em frente.


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Claudia Feitosa-Santana: Drauzio Varella compartilhou relembrou as escolhas cruciais em sua construção e foram tão sincronizadas com seu propósito que ele nem consegue se imaginar sem elas. 

 

Você também faz escolhas congruentes com seu propósito ou para descobri-lo? Em retrospectiva, as boas escolhas sempre parecem óbvias. Porém, na hora da decisão não há garantia de felicidade nem de sucesso. Além disso, uma escolha implica em pelo menos uma não-escolha. Por tudo isso, uma boa tomada de decisão respeita o sentimento que é  formado pela emoção e razão juntas. 

 

Para estar sincronizado com seu propósito, busque continuamente superar a polarização da razão versus emoção para que você seja verdadeiramente sapiens, pois tu és eternamente responsável por aquilo que sentes.

 

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