Para Inspirar
Na sexta temporada do Podcast Plenae, Daniela Mercury conta como ser verdadeira com seus sentimentos pode ser transformador.
5 de Setembro de 2021
Leia a transcrição completa do episódio abaixo:
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Daniela Mercury: Era 2013 e nenhum artista até então havia anunciado publicamente seu casamento com alguém do mesmo sexo da forma como fizemos. O meu amor por Malu foi capa de várias revistas importantes do Brasil. O nosso casamento virou notícia no Jornal Nacional e se tornou um tema político.
Nossas entrevistas deram oxigênio pra discussão da causa LGBTQIA+ no Brasil e em outros países. Ativistas e ONGs de direitos humanos reforçam constantemente que o nosso testemunho inspirou muita gente a falar sobre sua orientação sexual e identidade de gênero e a lutar por seu direito de amar.
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Geyze Diniz: Sua vida vive sob os holofotes há mais de três décadas, mas foi em 2013 que mesmo acostumada com a grande exposição midiática, a cantora Daniela Mercury deu luz a um tema importante que mexeria com sua vida e privacidade: a homofobia. Daniela anunciou seu relacionamento com a jornalista Malu Verçosa e, mesmo sabendo do grande preconceito que relacionamentos homoafetivos sofrem, agarrou com unhas e dentes a luta por respeito e amor que qualquer relacionamento deve ter.
Conheça a história de entrega e amor de Daniela Mercury. Ouça no final do episódio as reflexões da psicanalista Vera Iaconelli para lhe ajudar a se conectar com a história e com o momento presente. Eu sou Geyze Diniz e esse é o Podcast Plenae. Ouça e reconecte-se.
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Daniela Mercury: Eu conhecia Malu há mais de cinco anos. Ela é jornalista e trabalhava na área cultural. O nosso caminho já havia se cruzado algumas vezes, sempre de forma rápida. Um dia a gente participou de um evento, em Salvador, e no final, por coincidência, nós nos sentamos lado a lado numa mesa de umas 20 pessoas, num restaurante. Na época, eu morava em São Paulo e contei a Malu que eu estava com muita dificuldade de ficar longe da Bahia. Apesar de amar São Paulo, eu sentia muita falta da minha família e da energia do mar que me ajuda a compor.
Malu tinha vivido oito anos em São Paulo e ficou muito sensibilizada. O cuidado dela acendeu alguma coisa em mim. Porque normalmente as pessoas não se preocupam com os artistas. Olham pra gente, como se a nossa vida fosse perfeita, sem problemas, o que obviamente não é verdade. É difícil saber em que momento nasce a paixão. O que eu sei é que, daquele dia em diante, o rosto e as palavras de Malu nunca mais saíram da minha cabeça.
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Por muito tempo não nos encontramos, nem nos vimos. Mas eu pensava nela com frequência, sem entender o porquê. Meses depois, quando voltei a morar em Salvador, tentei falar com ela. Mandei algumas mensagens só pra conversar. E nossa amizade se aprofundou. Até que percebi que o que sentia por ela, era mais do que amizade. Então mandei uma poesia para ela e sutilmente tentei descobrir se havia reciprocidade. Ela silenciou. E eu também. Até que não resisti e então mandei mais um poema, dessa vez, de Mia Couto que dizia: “E todo silêncio é música em estado de gravidez “e ela respondeu: “então eu vou parir uma orquestra.”
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Eu vinha de dois casamentos e me questionei: “Será que é isso mesmo? Faz sentido ficar com ela e viver essa revolução?" Sou movida por desafios, sou artista desde menina e tenho uma mente muito aberta, sempre fui livre sexualmente e tive coragem de fazer mudanças radicais em minha carreira.
Decidi ser bailarina profissional aos 10 anos de idade. Aos 15, comecei a cantar em barzinhos e trios elétricos. Com 17 anos fazia teatro. Entrei na faculdade de dança aos 18. Um ano depois, me casei. Aos 20, tive meu primeiro filho. Aos 21, minha primeira menina chegou. Sou precursora de um gênero musical, o Axé, criei um novo circuito oficial no carnaval de Salvador, coloquei música eletrônica e música erudita em cima do trio elétrico. Faço parte do início do carnaval de rua de São Paulo, investi numa carreira internacional.
A minha trajetória artística tinha me dado largueza de espírito para experimentar o novo. E namorar Malu era me entregar ao desconhecido e a surpresa. As conversas da gente aumentaram e, conforme o tempo passava, eu me encantava cada vez mais pela sua altivez, inteligência, personalidade forte e beleza. E me encantei ainda mais quando descobri que tínhamos visões de mundo parecidas, os mesmos valores humanos e muitos sonhos em comum.
Paixão é um sentimento agudo e fascinante. Quando acontece, incendeia a gente por dentro, é um rebuliço, um tumulto. A paixão é deliciosamente perigosa. Sem ela a vida fica chata e burocrática. Eu sou inconsequente. Quando a paixão vem, eu me jogo.
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Com Malu conheci uma relação de igual pra igual, de mulheres fortes e independentes que sabem o que querem.
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Somos duas leoninas bem sucedidas em suas profissões, que sempre foram protagonistas de sua própria história. Em poucos meses de namoro, eu e Malu decidimos trocar alianças. Foi em Paris, num dia lindo de primavera, com céu azul, sol e frio. Eu queria uma aliança bem básica, igual à dos meus pais. Procuramos uma joalheria na Galeria Lafayette e o vendedor só percebeu que a gente era um casal quando nós duas estendemos as mãos pra medir os anéis.
Ele pareceu um pouco surpreso, mas sorriu e atendeu a gente com gentileza. Ali, eu me dei conta de que até na França, onde os direitos civis são mais avançados, casais de mulheres ainda causam alguma surpresa. Saímos da loja com as alianças, saltitando como duas adolescentes apaixonadas e eufóricas, de mãos dadas. Passeamos de bicicleta e fomos a duas igrejas, a basílica de Sacré Coeur e a igreja de Sant Madeleine. Trocar alianças foi uma maneira simbólica e romântica de celebrar nossa união.
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Da França, fomos a Portugal, onde eu tinha shows agendados no Coliseu de Lisboa. Eu ia ter que falar com a imprensa e disse a Malu: “Acho que vai ser necessário anunciar a nossa relação. Eu sou uma artista tão conhecida aqui, quanto no Brasil”.
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Não foi uma decisão simples, porque nós tínhamos pouco tempo juntas. Eu nunca gostei de falar sobre minha vida pessoal, prefiro dar entrevistas sobre o meu trabalho. Mas não dava pra esconder. Além do mais, anunciar o nosso casamento não era só comunicar o amor entre duas pessoas. Era um ato contra o preconceito. A gente imaginava que a repercussão seria enorme e que as nossas vidas seriam devassadas, mas a gente não imaginava como o assunto ia ser tratado. E essa era a nossa maior preocupação.
Era também a preocupação com as nossas famílias. A minha mãe é uma intelectual, assistente social, meu pai é muito culto e tem a cabeça e o coração abertos. Os pais de Malu e irmãos também. Mas tínhamos que avisar a eles que íamos tornar público o nosso relacionamento.
Meus filhos receberam a notícia muito bem também. Sempre me preocupei sobre como a fama impacta em meus filhos, como eles podem lidar com isso e serem felizes, e a partir do momento em que anunciasse minha relação com Malu, a repercussão seria enorme e eles provavelmente seriam questionados e teriam que se manifestar sobre o assunto.
Eu e Malu passamos uma noite, praticamente em claro, conversando como fazer esse anúncio. Decidimos publicar um post no meu perfil do Instagram, que em 2013 não era uma rede social tão grande como hoje. Foi no dia 3 de abril. Fizemos uma montagem de fotos e um texto com um tom firme, natural e alegre. Na legenda do post eu dizia: “Malu agora é minha esposa, minha família, minha inspiração pra cantar”.
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A repercussão foi bombástica e muito mais consistente e positiva do que poderíamos imaginar. Como artista, eu já fazia parte da família brasileira. Quando anunciei que estava apaixonada por Malu, o tema das relações homoafetivas entrou nas casas das pessoas. Foi uma vitória enorme pra nós e pra causa LGBTQIA+.
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Nesses 9 anos de dedicação mais profunda à causa LGBTQIA+, eu compreendi melhor como a invisibilidade social e o discurso de ódio desumanizam os grupos minoritários. A sexualidade envolve todos os aspectos da vida de todas as pessoas. Para confrontar o preconceito é necessário fomentar debates com a família, com a escola, com o Estado, com a sociedade e questionar as relações de poder, para então buscar uma nova forma de lidar com as questões de gênero.
Vivemos tempos obscuros no Brasil. O autoritarismo voltou a nos assombrar e fragiliza nossas conquistas democráticas. Vemos tentativas de silenciamento e censura. Há uma guerra cultural contra os artistas, jornalistas, LGBTs, líderes indígenas, cientistas, ONGs e ativistas de direitos humanos. A nossa democracia está em risco. A pandemia de coronavírus já matou milhares de brasileiros e desde o início da pandemia o governo federal descumpre a obrigação de elaborar e executar, de modo eficiente, um programa nacional contra a COVID-19.
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Felizmente, em contraponto a tudo isso, há um crescente engajamento social. A sociedade civil, os artistas, a imprensa e as ONGs de direitos humanos têm denunciado e repudiado as atitudes antidemocráticas. Os jovens lutam cada vez mais contra o racismo, o machismo, a LGBTFOBIA e contra a destruição do meio ambiente. Mas, nesse contexto político, está muito difícil avançar. A paz e o desenvolvimento só serão alcançados através da educação, da justiça social, da distribuição de renda, do reconhecimento, da igualdade e da liberdade.
Não há crescimento sustentável sem respeito aos direitos humanos. E essas lutas são de todos os brasileiros. Trabalho por uma sociedade inclusiva, que valorize a diversidade de todas as formas. De gênero, étnica, racial, econômica, política, cultural, de crenças, de origem e outras. E a educação é a principal ferramenta para atingirmos esse objetivo.
Aprender a conviver com as diferenças ensina a gente a amar os diferentes. Além do meu trabalho com a UNICEF, atuo como conselheira da sociedade civil no Observatório de Direitos Humanos, do CNJ. Eu e Malu somos embaixadoras da igualdade da ONU e lançamos, em Nova York, a primeira campanha mundial, da organização, contra a homofobia e a transfobia.
As nossas três filhas, Márcia, Alice e Bela e meus filhos mais velhos Gabriel e Giovana também são militantes da causa LGBTQIA+. As nossas meninas são o maior símbolo do nosso amor. Nós também escrevemos um livro com a nossa história de amor e damos palestras e entrevistas. Malu sempre fala que "o nosso amor é maior que nós.”
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A minha arte é um poderoso instrumento de luta e transformação. Desde que estamos juntas, fiz várias músicas pra Malu, “Maria Casaria”, com o texto do primeiro poema que escrevi para ela. "Oh Maria, oh Maria, oh Maria, oh Maria, oh Maria, casaria". “Sem Argumento”, que é o meu pedido de casamento pra ela. "Duas Leoas" que cantamos juntas e tem um lindo videoclipe com a participação das nossas filhas. E “Rainha do Axé”: "Eu e ela, eu e ela, eu e ela, ela e eu, Malu e eu". Repetimos uma foto icônica de John Lennon e Yoko Ono na cama para a capa do meu álbum Vinil Virtual.
E, para afrontar com amor, fizemos uma cerimônia de casamento em cima do trio elétrico, no carnaval. "Tá proibido o carnaval, nesse país tropical. Abra a porta desse armário que não tem censura pra me segurar". O hit "Proibido o Carnaval" que eu gravei com Caetano se tornou um novo hino contra a LGBTfobia e a censura. Gerou até reações do presidente da república.
No ano passado lancei minha versão de “Toda Forma de Amor”, de Lulu Santos, com os versos no feminino. "Eu sou sua esposa e você é minha mulher." Viver livremente minha relação com Malu mudou a realidade de muitas pessoas. Houve avanços relevantes na legislação do casamento civil e da criminalização da homotransfobia. São conquistas jurídicas importantíssimas
Nós duas abrimos mão de muitas coisas para nos dedicar à militância (LGBTQIA+).E estou muito feliz. Estava a nosso critério abraçar essa causa ou não. Mas a gente decidiu fazer isso, porque mudar o mundo faz parte do nosso encantamento uma pela outra. Hoje nós temos certeza que o nosso amor mudou o mundo.
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Vera Iaconelli: O depoimento da Daniela Mercury traz pra gente a confirmação de um fato muitas vezes esquecido. O amor é um ato político, o amor, ele faz parte do que é legítimo e do que é interditado na polis. Existem as pessoas que têm direito a amar, e as que não têm. Na hora que a Daniela descobre em si mesma o desejo pela Malu e reconhece que é recíproco, ela poderia ter deixado isso como um assunto de foro íntimo e pessoal só tendo efeitos ali, na família.
Mas, na hora que ela resolve levantar essa bandeira publicamente pra legitimar o amor entre duas mulheres, ela dá um passo a mais e repercute a escolha dela para enfrentar preconceitos, mas também criar um espaço onde outros sujeitos, que às vezes não admitem para si mesmos, possam se sentir representados e também pra que outros sujeitos possam ser mais tolerantes com filhos, irmãos amigas, ex-esposas que se descubram desejando pessoas do mesmo gênero, sejam homens ou sejam mulheres.
Então, a Daniela pega essa expressão social, cultural, artística, toda essa admiração que as pessoas já tinham por ela e transforma isso em uma munição em favor do amor. Então, eu acho que a grande importância do gesto dela é que ela pode se fazer ouvir no mundo e cada um de nós, seja onde você tiver, também tem esta ação, representando a si mesmo e aos demais e com isso, abrindo portas pra quem vier. Nem todo mundo tem essa expressão pública que a Daniela e a Malu tem, mas todo mundo ali no seu mundo pode, não reproduzindo violência e preconceitos, agir em favor do amor, lá no seu espaço, no seu trabalho, na sua vida particular.
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Geyze Diniz: Nossas histórias não acabam por aqui. Confira mais dos nossos conteúdos em plenae.com e em nosso perfil no Instagram @portalplenae.
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Para Inspirar
Ouça e leia o episódio da nona temporada do Podcast Plenae, conheça a história dos irmãos Filpi e como foi para sua família a transição de gênero de Miguel.
21 de Agosto de 2022
Leia a transcrição completa do episódio abaixo:
Miguel: Minha mãe me contou que, quando eu tinha 5 anos, eu falei pra ela: “Eu sou um garoto e eu gosto de menina”. Assim, na lata, com essas palavras. E ela respondeu: “Ah, é uma fase, vai passar.” Eu interpretei aquilo como uma rejeição. Várias situações desse tipo fizeram de mim uma pessoa muito revoltada. Eu nasci num corpo de mulher, mas sempre me encaixei melhor no mundo entendido como masculino. Aos 24 anos, eu decidi fazer a transição de gênero, e a minha vida mudou.
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Geyze Diniz: Miguel e Natália são gêmeos idênticos, pelo menos de acordo com a ciência, mas sempre se enxergaram completamente diferentes. Desde brigas na infância à estranhezas durante a adolescência, os gêmeos nunca se viram tão distantes e afastados por conta da maioria querer que eles fossem iguais. Mas a proximidade entre os dois só veio quando as diferenças começaram a ser reconhecidas. Miguel passou por uma transição de gênero e hoje é um homem trans que mostra que o respeito pode ser o maior elo de amor e união em qualquer relação. Conheça a história de mudanças, respeito e amor dos Irmãos Filpi.
Ouça no final do episódio as reflexões da Neurocientista Claudia Feitosa-Santana para te ajudar a se conectar com a história e com você mesmo. Eu sou Geyze Diniz e esse é o Podcast Plenae. Ouça e reconecte-se.
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Miguel: “Existe uma visão romantizada de que a relação entre gêmeos é a mais bonita que existe. As pessoas acham que, porque os irmãos nasceram juntos, eles vão se identificar muito e até sentir o que o outro sente. Comigo não foi bem assim. Eu não cresci sendo o melhor amigo da minha irmã, e nem ela a minha melhor amiga. Na verdade, eu tenho poucas memórias de uma boa convivência entre nós. Eu lembro mais das brigas.
Eu sempre me comparei muito com a Natália. A gente é muito parecido fisicamente e, pra mim, ela é uma referência do que tava certo. Desde pequena, ela seguia aquele modelo feminino estabelecido pela sociedade. Gostava de maquiagem, adorava arrumar o cabelo, fazia a unha. Já eu jogava bola e não gostava de roupa apertada. Eu detestava ter o cabelo comprido, mas não cortava, porque morria de medo da minha mãe ficar triste. Meus pais nunca me falaram nada, mas eu sentia que eles queriam que eu fosse um pouco mais parecido com a Natália. A presença da minha irmã era um constante lembrete de que tinha alguma coisa errada comigo, só que eu não sabia o que que era.
Natália: Eu tive uma infância tranquila, sem grandes preocupações comigo mesma. Mas o meu irmão, não. Desde pequenininho, ele era bravo, agressivo com todo mundo, principalmente comigo, seu saco de pancadas. Eu lembro que a gente tinha uns 10 anos e alguém chamou ele de “moleca”. Ele ficou transtornado de um jeito, que eu não entendi o tamanho da revolta.
O Miguel explodia por causa de coisas que eu considerava muito pequenas, tipo se arrumar para uma festa. Teve o casamento de um primo que ele fez um escândalo porque ele não queria colocar um vestido. Ele chorava e falava: “Eu não quero arrumar o cabelo, eu não quero pôr essa roupa”. Ele tava muito incomodado, mas não sabia se comunicar direito e não sabia comunicar o que tava sentindo. Depois de muita insistência nossa, ele finalmente se vestiu e a gente acabou indo pro casamento. Mas, dava pra ver que ele estava muito triste.
Em casa, o Miguel era naturalmente o centro das atenções, porque ele peitava os meus pais em relação a tudo. Questionava, literalmente, qualquer ordem. Hoje eu vejo com clareza que a minha mãe e meu pai sentiam que precisavam dar mais atenção pra ele. Mas, quando eu era menor, interpretava essa preocupação como preferência. Eu achava que o Miguel era o filho mais amado e eu acabava me sentia meio sozinha, sabe? Escanteada. Pra não criar mais problemas na família, eu engolia os sapos e obedecia tudo o que meus pais mandavam, mesmo sem concordar. Eu falava sim pra todo mundo, menos pra mim.
Miguel: Quando a gente tinha 16 anos, a Natália e eu fizemos intercâmbio pros Estados Unidos, cada um pra um lugar.
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Eu já tinha entendido que eu me sentia atraído por mulheres. Mas, mesmo assim, eu queria desesperadamente me encaixar na sociedade normativa. No Brasil, eu tentava esconder o óbvio e levava uma dupla vida. Na escola e na família, eu tentava disfarçar que gostava de meninos. Cheguei até a ter dois namoradinhos, por livre espontânea pressão social. Foi horrível, horrível. Era um sacrifício beijar na boca deles, era um sacrifício falar que eu tava namorando um cara.
Aí, quando eu cheguei na escola americana, eu ouvi dos amigos: “Mas por que você tá mentindo pra gente? Não tem problema nenhum você gostar de mulher”. Aquele acolhimento foi libertador. Eu me senti muito à vontade e decidi que eu não ia mais mentir. Ainda nos Estados Unidos, eu telefonei pra Natália e falei: “Ná, preciso te contar uma coisa. Eu sou lésbica”. Ela reagiu com naturalidade, porque na verdade ela já tinha percebido.
Assim que eu cheguei no Brasil, dei a notícia pro resto da família. O meu pai foi bem de boa, falou que pra ele o importante era eu ser feliz. Minha mãe começou a chorar e disse que tinha expectativas pra mim. Eu respondi: “Mãe, a sua expectativa é casamento? É filho? Eu também quero casar e ter filhos”. Até que ela aceitou rápido, assim. Em pouco tempo eu já tava apresentando a minha namorada pra família. Tirei um “pesaço” das costas.
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Eu passei no vestibular de engenharia, mudei de cidade, cortei o cabelo e aí comecei a comprar roupas na sessão masculina. Aí eu pensei: “Beleza, resolvi meu problema. Sou lésbica, e é isso”. Só que não foi o que aconteceu. Eu ainda não me sentia nada bem, continuava me sentindo deslocado. E eu odiava me olhar no espelho, odiava meu corpo, odiava não ter barba. Os seios, então, eu não suportava. Pra esconder, eu apertava tanto o top, que me machucava. Eu não gostava de entrar no banheiro feminino, e não gostava de ter voz fina. Bom, enfim, eu não era mulher.
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Lá pelos meus 22 anos, eu mergulhei numa depressão. Passei uns dois anos pra baixo, assim, sem ver graça em nada ao meu redor. Eu já tava conformado em levar uma vida inteira infeliz, até que um telefonema em 2019 mudou a minha vida. Uma amiga me convidou pra ir a um bar com mais gente, e aí entre elas um boy que eu não tinha ideia de quem era. Eu detestei saber que um cara ia junto. Eu tinha completo horror a homem, odiava, assim, gratuitamente. Acho que Freud explica, né? Hoje eu entendo que eu sentia inveja deles.
Eu não tinha vontade nenhuma de sair de casa, mas acabei indo ao bar. Quando eu cheguei no rolê, a minha amiga falou: “Oh, só pra você saber, tá, ele é um cara trans”. Nossa, a minha cabeça bugou na hora. Eu falei: “O quê??”. Eu botei esse cara na parede e disse: “Pode me explicar tudo!”. Depois que eu fui saber que era o Luca Scarpelli, ele era um dos poucos youtubers que produzia vídeos sobre o universo trans.
O Luca me falou sobre o trabalho, sobre a família, sobre os sentimentos dele. E eu me identificava com cada frase que ele falava. Ele parecia um clone meu que tava feliz e bem resolvido. Eu fiquei tão alucinado, que fui embora do bar e passei 3 dias trancado em casa, pesquisando sobre transição de gênero e chorando horrores. Eu sabia que isso existia, só que até então era uma coisa muito distante do meu universo, e eu não conhecia ninguém que tivesse feito. Bom, procurei ajuda psicológica e médica e, aos 24 anos, comecei o meu processo de transição.
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Natália: Eu fui a primeira pessoa da família pra quem o Miguel falou a novidade. Eu não fui pega de surpresa quando ele contou que era lésbica. Mas, a transição de gênero confesso que eu não tava esperando. Eu não sabia nada sobre desse assunto e talvez eu nunca vá entender completamente o que é. Mas eu sabia que não precisava entender, eu só precisava respeitar. Então, quando o Miguel me falou, eu respondi: “Olha Mi, eu não sei o que você tá falando, não tenho ideia, mas vambora. Se é o que vai te fazer feliz, pra mim é a única coisa que importa. Então, conta comigo pro que você precisar”. Pros meus pais o anúncio foi um choque…
Miguel: Quando uma pessoa faz uma transição de gênero, quem tá ao redor dela transiciona junto. Eu sabia que eu podia perder os meus pais pra sempre, que talvez eles não fossem aceitar a minha decisão. Só que eu tava tão feliz, eu tinha tanta certeza de que era a coisa certa, que nada, nenhum obstáculo ia me impedir de concretizar o meu plano. Eu passei 24 anos sendo triste e solitário. Não tinha sentido eu passar o resto da vida me sentindo miserável em função do que outras pessoas queriam pra mim.
A minha terapeuta resolveu chamar os meus pais e a minha irmã no consultório, pra uma sessão em família. A minha mãe só chorava, se lamentava que eu ia me mutilar. Quando a psicóloga perguntou o que o meu pai pensava sobre mim, ele respondeu que sentia decepção, que era um desperdício eu não poder engravidar. Ele disse que nunca me enxergaria como um filho. Foi difícil ouvir essas palavras, só que ao mesmo tempo eu pensava: “Meu pai e minha mãe nunca me aceitaram mesmo. Que se dane, eu vou em frente de qualquer jeito”.
Natália: Meus pais não disseram exatamente o que Miguel queria ouvir. A palavra “decepção” foi muito forte, mas eu interpretei que o que meu pai tava falando era como médico, um médico que tava preocupado acima de tudo com a saúde do filho. Ele tava inconformado que o meu irmão tomaria hormônio e acabaria com o corpo dele. Eu lembro que o meu pai falou: “Mas ele tem uma saúde perfeita e quer jogar fora por causa de um pensamento temporário, de uma preocupação estética?”. Então, eu acho que meu pai usou a palavra “decepção” nesse sentido, não que ele tava decepcionado com o Miguel enquanto pessoa.
Meu pai perguntava pro meu irmão: “Você não tá satisfeito em saber quem você é por dentro? Precisa mudar por fora também?”. Acho que o medo dos meus pais era que o Miguel se arrependesse e não pudesse mais voltar atrás da decisão. Mas, eles acabaram aceitando que o meu irmão já tinha idade suficiente pra tomar as suas próprias decisões.
Miguel: Depois dessa sessão, eu passei mais ou menos 1 ano falando bem pouco com os meus pais. Eles nunca me abandonaram, mas ficaram super tristes. A gente meio que entrou num acordo de que eu precisava de apoio, inclusive financeiro, e eles precisavam de um tempo pra processar o que tava acontecendo. Eu comecei a fazer terapia hormonal com testosterona e o meu corpo foi mudando. Depois de um ano, eu fiz a mastectomia para remover os seios. E foi aí que meus pais compreenderam que não se tratava de uma fase, mas sim um caminho sem volta.
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A minha mudança não foi só externa. Foi inclusive, principalmente, interna. Eu era muito arisco, eu tinha pavor de crítica, assim. Qualquer pessoa que tentasse estragar o pouco de felicidade que eu sentia, levava uma patada. Hoje é raro você me ver de cara fechada, de mau humor. Eu sou muito confortável na minha pele, e muito mais tranquilo, mais feliz, mais calmo. O relacionamento com a Natália melhorou muito. A gente descobriu, no caso, que a conversa é um método bem melhor de comunicação do que o grito e a porrada. Eu não conseguia ter uma boa relação com ela e com os meus pais, porque eu achava que parte da minha tristeza era o fato de que eles não acolhiam como eu era.
Coitados, pai e mãe não têm manual de instrução. E mudança de gênero não é exatamente uma coisa simples de se entender. Meus pais não tinham informação sobre esse assunto e só queriam me proteger.
Natália: Eu errei muitas vezes o pronome masculino depois que o Miguel fez a transição. Ele ficava bravo e achava que eu tava querendo boicotar o processo dele. Mas, na verdade, era só uma questão de hábito. Depois que ele deixou crescer a barba, sua voz engrossou e ele ganhou uma feição masculina, aí ficou fácil chamar ele de Miguel. Eu comecei a enxergar ele como um homem mesmo e hoje é impossível usar o pronome feminino. Agora só tenho que aguentar minhas amigas falando: “Ai, como o seu irmão é lindo! Ele ficou mais bonito como homem do que como mulher”.
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No segundo que o Miguel decidiu fazer a transição de gênero, eu, imediatamente, consegui ver que a impaciência, a intolerância e a agressividade dele ficaram pra trás. Eu também comecei a fazer terapia e aprendi a me posicionar, aprendi a parar de me anular só pra agradar os outros, inclusive o Miguel. A gente teve uns períodos afastados, com pouca conversa, mas hoje graças a Deus a nossa relação é bem melhor. No fim das contas, a gente sempre tá ajudando um ao outro.
Miguel: Quando a minha família começou a respeitar o pronome masculino, eu pensei: “Quer saber? Tá bom, não preciso de mais que isso.” Uma coisa é chamar pelo nome que eu escolhi, outra é de fato acreditar que eu sou um homem. Mas tudo bem, já tá ótimo que eles me respeitem.
Se tem duas pessoas no mundo que viraram militantes da transição de gênero foram os meus avós. Eu tenho certeza que o meu avô sente no fundo do coração dele que eu nasci homem e nunca fui mulher. Mesmo ele sendo de uma geração passada, eu sinto que ele não força nada a barra quando me chama de Miguel. A minha avó, então, ameaça bater em quem erra o pronome comigo. Eu tinha muito medo, muito medo de como eles iam reagir quando eu mudei de gênero. Mas eles aceitaram com mais facilidade do que todo mundo. No fim das contas, o acolhimento que mais me importa é o da minha família.
A mensagem que eu tenho pra passar, tanto pras pessoas cis quanto pras pessoas trans, é que a vida é uma só. Na hora da morte, o que vai importar de fato é o quanto você conseguiu ser feliz, o quanto conseguiu amar, o quanto se sentiu confortável na própria pele. Eu não vou falar que a transição de gênero é um processo fácil. Só que nada, nada, foi mais difícil pra mim do que passar 24 anos sendo quem eu não era, tentando interpretar o personagem que a sociedade esperava de mim. Pessoas bem resolvidas com elas mesmas são melhores pra sociedade. A gente propaga felicidade quando a gente é feliz.
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Claudia Feitosa-Santana: Os gêmeos idênticos Miguel e Natália compartilham conosco a transição de gênero dele e como as relações familiares transacionaram junto.
Como ele, quando descobrimos que o que parecia intransponível, além de insuportável, era apenas uma pedra no meio do caminho, precisamos de apoio para retirá-la, pois somos seres sociais e é extremamente importante vivermos juntos - em família, entre amigos e, inclusive, no meio da multidão. Por isso, pessoas podem ser sentidas como se fossem obstáculos. Mas podem também ser acolhimento. O que precisamos é ter a consciência da relacionalidade, o fato de que estamos inter-relacionados uns com os outros, logo: intersomos.
E, assim, no meio do caminho havia um outro... um outro que nos ama, um outro que você empatiza, um outro que eu respeito, e por aí vai. Pedras que se transformam em companhias, com as quais nos sentimos confortáveis em nossa própria pele.
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Geyze Diniz: Nossas histórias não acabam por aqui. Confira mais dos nossos conteúdos em plenae.com e em nosso perfil no Instagram @portalplenae.
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