Para Inspirar

David Hertz em “Atos que salvam vidas”

Na quinta temporada do Podcast Plenae - Histórias para Refletir, o empreendedor social David Hertz conta como olhar para si o ajudou a olhar para o outro

4 de Julho de 2021


Leia a transcrição completa do episódio abraço:
[trilha sonora] David Hertz:  Eu acredito que quando a gente se conecta com a nossa missão de vida e com a nossa espiritualidade, tudo vai se encaixando. Hoje, todos os projetos dos quais eu participo são resultados dessa ligação. Mas isso não vem do dia pra noite, eu sinto que eu tive 3 grandes chamados na vida e, ao escutá-los com atenção, eles me trouxeram onde eu estou hoje.  [trilha sonora] Geyze Diniz: Empreendedor social, cozinheiro e apaixonado por pessoas, David Hertz, co-fundador da ONG Gastromotiva, é uma daquelas pessoas que traz em sua trajetória de vida caminhos de autoconhecimento e intuição, capazes de construir pontes ao invés de muros. Pontes essas que o levaram para muitos lugares no mundo, mas o mais valioso foi para dentro de si mesmo. 

Conheça a história de ação e transformação de David Hertz. Ouça, no final do episódio, as reflexões do rabino Michel Schlesinger para te ajudar a se conectar com a história e com você mesmo. Eu sou Geyze Diniz e esse é o Podcast Plenae. Ouça e reconecte-se. 

[trilha sonora]

David Hertz: Aos 18 anos, eu tranquei meu curso de engenharia, em Curitiba, para viver num kibutz, em um programa oferecido pelo governo israelense. Isso foi em 1992, antes de existir internet. Eu não tinha ideia do que eu ia encontrar lá e para mim tudo foi novidade. Eu descobri que os jovens israelenses tiram um período sabático depois de servir o exército, que lá é obrigatório pra homem e pra mulher. Eles passam seis meses, um ano ou até mais tempo que isso viajando pelo mundo. 

Foi quando eu ouvi o meu primeiro chamado: eu não precisava me encaixar nos padrões impostos pela nossa sociedade e cumprir o destino que os meus pais traçaram pra mim. Eu não precisava voltar pra faculdade de engenharia, nem assumir a loja de armarinhos do meu pai um dia. Eu podia ser dono do meu destino. E o meu destino era conhecer pessoas, costumes, culturas de diferentes lugares no mundo.

[trilha sonora]

Eu passei sete anos mochilando e saí transformado dessa jornada. Na Índia e na Tailândia, eu descobri a meditação e o budismo, que me ajudaram a encontrar a minha identidade, porque nessa fase da vida eu ainda estava bem perdido. Eu aprendi a ouvir a minha intuição, a viver o momento e a ter flexibilidade, habilidades que me ajudam até hoje. Em várias situações, eu me confrontava com essas ferramentas. Como uma vez em que eu estava em uma praia e conheci duas francesas. Por causa daquele encontro de uma hora, toda a minha rota mudou e eu acabei no Vietnã. 

Na viagem, eu também conheci a Krista, uma canadense com quem me relacionei e morei junto por todos esses anos da viagem. Nessa relação eu entendi que não estava sendo honesto comigo, nem com ela. Eu sou gay. Depois de tantas viagens, passando por um processo de autoconhecimento profundo e entender a importância da verdade e da presença, a minha vida não teria mais sentido se eu não assumisse quem eu sou. 

[trilha sonora]

Eu voltei pro Brasil sem saber no que trabalhar, sem me achar bom em nada, mas muito em paz comigo mesmo por ter tido a coragem de viajar pelo mundo e também de me assumir. 

[trilha sonora]

A partir daí, as coisas começaram a se encaixar. Eu descobri que tinha talento para cozinhar fazendo jantares para amigos, em Curitiba mesmo, de comida tailandesa e indiana. Foi quando uma amiga veio com a ideia da gente abrir um restaurante. Fiquei animado, mas como eu não tinha nenhuma experiência, falei: “Olha, se for para abrir um restaurante, eu preciso me especializar e entender esse mercado”. Aí eu fiz um curso de tecnólogo em gastronomia lá no Senac, em Águas de São Pedro, no interior de São Paulo. Como eu já tinha feito tudo que um jovem pode fazer na vida, eu foquei muito nos estudos. 

E quando me formei, estavam começando a aparecer as faculdades de gastronomia no Brasil. Aí eu fui convidado para dar aula de comida asiática numa delas e também pra ser chef de cozinha de um restaurante em São Paulo. Eu logo virei professor de gastronomia e chef. 

[trilha sonora]

Ali no restaurante, eu percebi que eu tinha um talento para liderar equipe e também para administrar um negócio, talvez por essa origem comerciante da minha família. Mas a parte mais motivadora do meu trabalho era ensinar o que eu sabia para as pessoas. Aquelas pessoas que não tiveram as oportunidades que eu tive na vida. 

Eu tinha uma carreira super promissora ali no Santo Grão, mas algo me dizia que ali não era o meu lugar. E foi num dia ali, eu me lembro, eu completei 30 anos, 15 de dezembro de 2003, eu estava na cozinha do restaurante e perguntei pra mim mesmo: “É isso? Eu viajei pelo mundo, fiz uma jornada de autoconhecimento, conheci tantas pessoas, culturas e costumes, e estudei para ter uma vida tradicional, uma rotina, buscar segurança num emprego e ser movido por dinheiro? Não, isso não faz sentido”.

 

Naquele mesmo dia eu pedi demissão. Eu montei um plano de negócios de um restaurante indiano, que era meu sonho, e apresentei para o meu pai. A resposta dele me deixou sem chão. Meu pai é muito tradicional, religioso, nem ele nem ninguém na minha família aceitavam ali a minha sexualidade e ainda tinham esperança que eu casasse com uma mulher e construísse uma família. Ele também acreditava que cortar qualquer apoio seria uma forma de me manter perto. Então, naquele momento ele me disse: “Olha, David, com as tuas escolhas, para você, não tem recurso”. 


[trilha sonora]

A partir dali eu sabia que não poderia mais contar com a minha família e nossa relação ficou estremecida por muito anos.

[trilha sonora]

Eu fui acolhido muito pelos meus amigos, eu continuei dando aulas e eu me perguntava muito naquele momento qual era o meu propósito, pedindo para Deus me mostrar o caminho. Um grande amigo, que cresceu comigo, chegou pra mim e falou: “David, tem um projeto social relacionado à uma padaria dentro da favela do Jaguaré, aí em São Paulo, não quer conhecer?” Eu lembro até hoje do dia em que fui lá, o dia que eu escutei meu segundo chamado, em 2004. Era a primeira vez que eu entrava numa favela, com todos os estigmas relacionados àquele universo. Conforme eu fui subindo o morro, o filme da minha vida foi passando na minha cabeça. Eram flashs, eu revi as cenas de Curitiba, de Israel, da Índia, do Canadá, da faculdade, do Santo Grão… Mas o que eu mais me lembrava naquele momento, é que quando eu andava em lugares muito pobres pelo mundo, na Índia, eu não tinha medo de ser roubado, eu não pensava se as pessoas que eu encontrava no meio de tanta pobreza eram criminosas. E aí, foi quando veio a resposta, que a minha realização pessoal era ser mais do que chef de cozinha, era compartilhar conhecimento, me tornar um educador, um empreendedor social. Com a minha bagagem, eu podia ser um canal pra mudar aquela realidade. Ser ponte entre dois territórios.

[trilha sonora]

Foi nessa favela que eu criei o projeto Cozinheiro Cidadão, dedicado a profissionalizar jovens da comunidade, gratuitamente. Mas, naquele momento, ainda com muito preconceito e arrogância, crente que eu já sabia de tudo, eu acreditava que ensinar uma profissão era suficiente pra melhorar a trajetória daqueles jovens.

Para minha sorte, na mesma época eu recebi um e-mail da Fundação Artemísia, que estava buscando pessoas pra treiná-las em negócios de impacto social. Com a minha origem comerciante, eu pensei: como seria uma Gastronomia Social? Como seria um negócio feito por jovens da favela? Eu me conectei com essa vontade e eu guardei esse sonho, enquanto formava cozinheiros naquele curso gratuito.

A primeira coisa que o pessoal da Artemísia falou para mim foi: “Você quer mudar o mundo? Então primeiro a gente vai mudar você. A gente vai te oferecer um coach, uma psicóloga. Nós vamos te mandar para os eventos mais importantes do mundo que trabalham com empregabilidade e empreendedorismo para jovens na base da pirâmide”. Eu tinha perdido meu pai como investidor, mas eu ganhei uma organização social disposta a me desenvolver como ser humano e me treinar pra eu ser melhor na minha área de atuação. 

[trilha sonora]

Numa dessas viagens da Artemísia, eu tive a oportunidade de levar para uma exposição na Assembleia Geral da ONU, em Nova York, uma jovem que estudava no Cozinheiro Cidadão. A Uridéia Andrade é a maior inspiração da minha vida, uma parceira. Ela morava na favela e, durante o curso, descobriu que queria ser cozinheira. Ela é talentosíssima e conseguiu um estágio no Bistrô Charlô, um restaurante super conceituado de São Paulo. Parecia que a vida dela estava encaminhada, mas um dia ela sumiu do curso e do estágio. Fui atrás dela e descobri que ela tinha tentado suicídio. A Uridéia nunca foi aceita pelo pai, era maltratada pela mãe, tinha uma autoestima baixíssima. Eu disse pra ela: “Uridéia, meu pai também não fala comigo. Eu sinto o teu coração. Mas eu quero te mostrar que vale a pena viver”. Eu levei ela pra Nova York e, vendo ela lá na ONU, eu tive a resposta para o nosso projeto. Só ensinar uma profissão não era suficiente para transformar pessoas em situação de vulnerabilidade social.

Eu olhei no olho dela e falei: “Eu não sei o que é passar fome, não sei o que é morar numa favela, mas eu tenho relação com pessoas que tiveram oportunidade, posso me conectar com jornalistas, com a ONU, com empresários. Mas você sabe o que os jovens precisam para ser transformados. Vamos fazer algo juntos?”.

E assim, em 2005, nasceu a Gastromotiva, um projeto social dedicado a promover transformações através da comida. Nós montamos um buffet-escola na minha casa, com a Uridéia como chef e mais 4 beneficiários. A gente fazia eventos e revertia o lucro pra vagas de educação nesse mesmo tipo de gastronomia. O objetivo era que os alunos pudessem replicar o negócio dentro das suas comunidades, porque os buffets não entram nas favelas, mas as pessoas que moram lá também querem dar festas. Mais tarde, a Uridéia seguiu a frente no seu buffet e eu com a Gastromotiva, que veio a se tornar uma OSCIP.

[trilha sonora]

A Gastromotiva hoje é uma ONG que oferece muito mais do que cursos profissionalizantes. Os nossos pilares são resiliência econômica, educação nutricional e educação como um todo, porque a gastronomia é multidisciplinar. A parte mais importante de todo nosso trabalho é ligada às habilidades emocionais que trabalhamos em cada indivíduo. A gente criou na Gastromotiva uma metodologia de desenvolvimento humano baseada no que a Fundação Artemísia fez comigo. Gerar pertencimento, se empoderar como indivíduo e cidadão, ter resiliência, empatia, e solidariedade, o que naturalmente já têm muito a ver com o universo onde as pessoas que vivem em situação de vulnerabilidade moram. Os cursos profissionalizantes da Gastromotiva já atenderam mais de 6.300 pessoas no Brasil, no México e em El Salvador. 

E tudo isso me ajudou a criar o conceito de Gastronomia Social e levar esse movimento para ONU, pra Davos, assim como pro mundo da gastronomia e da hospitalidade. A Gastronomia Social é a gastronomia que transforma vidas e territórios. Ela foca na mitigação das desigualdades sociais e é uma solução multidisciplinar para muitos problemas da humanidade. Desde a fome à sustentabilidade ambiental. 

Ao longo de todos esses anos eu me tornei parte de várias comunidades. Sou fellow Ashoka, Ted fellow e me tornei um jovem líder global, do Fórum Econômico Mundial. Junto com todas estas conquistas veio um novo desconforto. Em 2014, eu fiz um curso em Harvard de 10 dias que se chamava liderança autêntica. Eu tive que rever mais uma vez toda a minha história. Tínhamos um grupo que se encontrava toda a manhã para dividir o que aprendíamos e como nos sentíamos. Era muito profundo e eu me empenhei muito. Era como se eu estivesse me preparando para encarar mais um grande desafio, um novo chamado. 

E novamente, foi na espiritualidade que eu encontrei minha energia interna para perceber as marcas que ainda tinham que ser curadas. Eu fiz um retiro chamado “Caminho do Amor”, de 21 dias de duração. Eu fiquei sem comer e sem beber por muitos dias. Sai de lá transformado, disposto a não buscar mais a aceitação da minha família e aprendi que era eu que deveria aceitá-los como são. Ali eu cheguei no meu pai e disse: “Pai, deu tudo certo. Eu estou bem, a Gastromotiva está bem. Está chegando algo muito importante para mim e eu quero contar com você. Com o teu apoio.” Daquele momento em diante nós restabelecemos uma relação de admiração, gratidão e fortalecimento.

[trilha sonora]

E aí, o que veio depois disso foi o projeto mais lindo e determinante da Gastromotiva. Eu me associei ao chef Massimo Botura, que naquele ano era o número 1 do mundo e a jornalista Alexandra Forbes e nós co-criamos o Refettorio Gastromotiva no Rio de Janeiro. Eu queria deixar um legado Olímpico para a cidade e lá criamos um restaurante escola, um lugar que cozinha apenas com doação de alimentos e atende pessoas em situação de rua. O lugar é lindo, repleto de cultura, de arte, onde celebramos todas as noites jantares com chefs renomados, voluntários, e os nossos beneficiários. Nós celebramos a gratidão, o amor, a vida. Agora na pandemia, o restaurante se tornou um banco de alimentos e já produzimos refeições para mais 1 milhão de pessoas. Nós estamos espalhando Cozinhas Solidárias pelo Brasil todo e nosso próximo passo é a América Latina.

O Movimento da Gastronomia Social, hoje está presente em mais de 60 países. Ao longo dos últimos 5 anos eu já visitei projetos similares ou complementares ao da Gastromotiva no mundo inteiro e juntos, nós vamos criando a nossa própria comunidade. Afinal, o alimento nos conecta, ele está ligado ao afeto, à memória e ao desenvolvimento dos nossos 5 sentidos.

[trilha sonora]

Todo dia eu acordo e me pergunto o que eu vou descobrir e como eu posso transformar isso em algo bom para o mundo. Eu tenho um sonho de transformar a vida de 10 milhões de pessoas até 2030 e construir legados como o Refettorio Gastromotiva no Brasil e mundo afora. Hoje eu reconheço que a cura, a sabedoria do passado, a presença no agora e a intenção genuína no futuro, criam realidades.

Eu posso resumir que tudo o que eu faço é trabalhar para que as pessoas se sintam livres como eu me senti durante e após a minha jornada de autoconhecimento. Eu desejo que todo ser humano tenha poder de escolha, auto responsabilidade e coragem de dar um passo à frente. Esse passo à frente muitas vezes não é claro, não é seguro, mas é ele que nos leva a uma próxima descoberta na vida. Eu não tenho ideia de como serão os meus próximos anos, mas eu tenho certeza que vale a pena deixar pra trás os medos, os traumas e acreditar no que diz o coração. A minha missão é alimentar a humanidade com humanidade. 

[trilha sonora]

Miguel Schlesinger: Existe um conto sobre uma pessoa que queria mudar o mundo. Ela tentou transformar o planeta, mas não conseguiu. Resolveu mudar o seu país, não deu. Depois quis mudar a sua cidade, o seu bairro, o seu quarteirão, a sua família, até que ela resolveu mudar a si própria. Isso ela conseguiu fazer. Ao se transformar, acabou mudando o seu quarteirão, a sua cidade, o seu país e o mundo. Qualquer grande mudança externa começa sempre por um pequeno passo dentro de um indivíduo. Quando David Hertz se aceitou como era, e reconheceu seus valores e habilidades, ele se sentiu mais livre e pode, a partir daí, ajudar muito mais gente. 

Não foi fácil. O David teve que enfrentar a própria família para conquistar o direito de ser quem é. Mas ele conseguiu. E o seu trabalho também é o de fazer com que as pessoas descubram seu potencial, se empoderem e sejam livres para realizar seus sonhos. Você quer mudar o mundo? Comece por você. 

[trilha sonora]

Geyze Diniz: Nossas histórias não acabam por aqui. Confira mais dos nossos conteúdos em plenae.com e em nosso perfil no Instagram @portalplenae.

[trilha sonora]

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Para Inspirar

Fernando Korkes em "Do outro lado da mesa"

Conheça a história de um médico que descobriu seu propósito depois de uma experiência familiar, na décima quarta temporada do Podcast Plenae.

19 de Novembro de 2023



Leia a transcrição completa do episódio abaixo:

[trilha sonora]
 

Fernando
Korkes:
Muitos médicos são treinados somente para avaliar o que é possível fazer pelo paciente e não o que faz sentido fazer. Isso ficou muito claro pra mim, quando a minha mãe foi diagnosticada com câncer. Eu sou urologista especializado em oncologia. Viver na pele o papel de filho de uma pessoa com câncer mudou a minha maneira de encarar o tratamento da doença.  

[trilha sonora]
 

Geyze
Diniz:
Fernando Korkes está acostumado a lidar com o câncer. É o dia a dia dele como oncologista. Mas, quando a sua mãe foi diagnosticada com um tipo raro de melanoma, ele se viu em outra posição. Em vez de médico, Fernando passou a ser acompanhante de paciente. Essa nova perspectiva impactou não só a vida dele, mas a de centenas de pessoas pelo Brasil através de sua atuação. Eu sou Geyze Diniz e esse é o Podcast Plenae. Ouça e reconecte-se.   

[trilha sonora]
 

Fernando
Korkes:
Eu vivi um dos piores dias da minha vida em 2016. Era um domingo ensolarado, que tinha tudo para ser, na verdade, um dia gostoso. Eu estava no clube com a minha esposa e com meus filhos, quando a minha mãe me mandou uma mensagem. 

O texto dizia mais ou menos assim: “Acho que meu exame deu alguma coisa esquisita. Queria que você desse uma olhada”. A minha mãe era bem direta ao ponto, uma pessoa mais de ações do que de palavras. Eu puxei isso dela. Junto com a mensagem, ela encaminhou o arquivo de um exame. 
 

Era uma biópsia do colo do útero, que vinha com o diagnóstico de melanoma, um tipo de câncer de pele agressivo. Na hora, eu pensei: “Tem alguma coisa errada aqui. Não, não é possível”. Porque eu sabia que existia melanoma e sabia que existia câncer de útero. Mas melanoma na mucosa da região genital é muito improvável. É mais comum ver um laudo errado do que um diagnóstico tão raro. 
 

[trilha sonora]
 

Quando eu cheguei em casa, entrei no site do laboratório e revirei todos os resultados da minha mãe. Tinha a imagem de uma colposcopia, um exame ginecológico, que realmente mostrava uma coisa estranha no local da biópsia. Aí a história passou a fazer sentido. O laudo apontava que tinha uma metástase em trânsito, ou seja, a doença já es
tava se espalhando pela região pélvica.
 

Na minha cabeça, começaram a vir números. Em oncologia, trabalhamos muito com estatísticas. É uma especialidade complexa e foi justamente isso que me encantou nessa área. O câncer não é uma doença só. Na verdade, são centenas de doenças
que levam o mesmo nome. E existem cada vez mais formas de tratamentos disponíveis.

Ninguém tem bola de cristal, mas os estudos mostram
pra gente qual é a chance de sucesso de cada tratamento pra cada tumor. Antes de propor uma estratégia terapêutica pro paciente, a gente olha pros números. A grande maioria dos tumores que eu trato, como próstata, bexiga e rim, são curáveis. O câncer de testículo, por exemplo, tem mais de 98% de chance de cura. Só que a situação da minha mãe era diferente. 
 

[trilha sonora]
 

Eu comecei a revirar a literatura médica sobre casos como o dela. É um diagnóstico tão raro, que não tem muitos estudos a respeito. Mas, quando eu fui cruzando os dados que eu encontrei, eu calculei que a chance de cura
dela era de menos de 4%.
 A minha mãe tinha 62 anos.

Era uma mulher independente e com muita energia, que adorava o trabalho dela. Sempre foi uma pessoa saudável. Nunca fumou. Praticou atividade física a vida toda. Muito antes de se falar em
quinoa e chia, isso já era uma realidade na minha casa. Como uma pessoa relativamente jovem e com esse histórico podia ter um diagnóstico tão violento?
 

[trilha sonora]
 

Perder a mãe é o curso natural da vida, mas ninguém nunca es
pronto pra isso. Eu não estava. Quando eu vi essa possibilidade no horizonte, caí direto no fundo do poço. Dizem que os fantasmas vêm à noite. Os meus me fizeram passar a madrugada em claro. Os pensamentos oscilavam entre o medo da perda e o medo do que a minha mãe teria que enfrentar. Eu imaginei todas as cenas do filme até o final. Na minha estimativa, a minha mãe teria uns 17 meses de vida pela frente. E foi cravado o tempo que ela viveu depois do diagnóstico. 
 

[trilha sonora]
 

No dia seguinte, eu liguei
pro laboratório onde ela fez o exame e confirmei o resultado com o patologista. Não tinha mais dúvida. A situação, realmente, era gravíssima. Aí, eu comecei uma epopeia pra encontrar o médico que cuidaria da minha mãe. Eu até contei. Em uma semana, nós passamos por 32 consultas, exames e biópsias, antes de decidir o melhor caminho a ser seguido. 
 

[trilha sonora]
 

Nessa fase, eu me vi do outro lado da mesa. Em vez de médico, eu era acompanhante de um
a paciente. E aí ficou nítido para mim que a medicina às vezes olha a doença e pensa em como tirá-la. Só que nem sempre essa abordagem é a melhor praquela pessoa. Um dos médicos com quem a gente se consultou, por exemplo, sugeriu uma cirurgia mutiladora. Mas, o fato é que aquela cirurgia não aumentaria a chance de cura e pioraria a qualidade de vida. Então qual era o sentido? 
 

Eu tive o privilégio de entender do assunto, de conhecer os melhores especialistas e de pesquisar tudo o que tinha de estudo
pra essa doença no mundo. A estratégia que o cirurgião propôs não fazia sentido nenhum. A cura dependia mais da resposta das células aos remédios do que de uma operação ultra agressiva. A gente escolheu uma abordagem menos radical.
 

[trilha sonora]
 

Durante esses 17 meses, a minha mãe quis fazer uma pausa no tratamento
pra viajar com a amiga pra Miami. Teve um baita furacão na Flórida e elas ficaram fugindo desse furacão de cidade em cidade. Foi uma aventura a viagem da vida delas. Eu cheguei a me questionar se ela não deveria fazendo quimioterapia em vez de passear. Mas entendi que esse raciocínio estava errado. A busca incessante por prolongar a vida não é, necessariamente, a decisão mais inteligente a se tomar. 
 

[trilha sonora]
 

O lado romântico do câncer é que tanto o paciente quanto as pessoas ao redor dele podem se preparar
pra finitude. Nesses 17 meses, eu me aproximei da minha mãe. Eu sou acelerado, faço um milhão de coisas ao mesmo tempo. É uma característica que eu puxei dela. Então, se você pega duas pessoas assim, a chance dos dois estarem sempre ocupados é de 100%. Quando eu me deparei com a finitude da minha mãe, eu encontrei tempo pra com ela. 
 

Nas sessões de quimioterapia, nós dois ficávamos sentados fazendo nada, o que era raro antes. Nesses espaços de silêncio, surgiram as palavras. Foi um período em que eu refleti muito sobre a vida, sobre as minhas escolhas. Eu escrevia o que sentia e mostrava
pra ela. Ela ficava orgulhosa. A minha mãe sempre foi uma pessoa que me estimulou demais. Se eu dissesse: “Eu quero aprender a falar francês”, no dia seguinte eu estava inscrito numa aula de francês. Com certeza, eu adquiri muitas habilidades porque ela me empurrou pra frente. Nessa época, eu tive oportunidade de falar: “Obrigado”.
 

[trilha sonora]
 

A minha mãe tentou tudo que a medicina podia oferecer. Ela fez cirurgia, quimio, rádio e imunoterapia, que era um tratamento novo na época. Quando ela es
tava bem debilitada, com novas metástases, a gente viajou para Israel, pra tentar um tratamento experimental extremamente duro, o TIL. Era a última cartada e ela não resistiu. Quando a minha mãe partiu, eu sofri, é lógico, mas me senti em paz. Eu já tinha vivido o luto no domingo em que ela me mandou o laudo do exame. Naquele dia, eu já sabia qual ia ser a parte mais assustadora do filme. Então, quando eu assisti o filme, o susto não foi tão grande.
 

[trilha sonora]
 

Um ano depois que a minha mãe se foi, eu recebi um convite
pra coordenar o Serviço de Urologia Oncológica da Faculdade de Medicina do ABC. Eu cuidaria dos tratamentos de câncer urológico dos hospitais públicos da região do ABC, na Grande São Paulo. Era um trabalho voluntário. Na primeira reunião, eu ouvi um dado alarmante: quase metade dos pacientes operados com câncer de bexiga ali não sobreviviam. 
 

Era uma projeção verossímil. Eu trabalhei em vários hospitais públicos e centros universitários. Conhecia bem essa realidade. A minha ideia
pra mudar esse cenário foi criar um ambulatório e pedir pros hospitais da região mandarem pra gente as pessoas que precisassem ser operadas. Era uma espécie de quartel-general do câncer de bexiga.

Os pacientes, em algumas situações, precisam coordenar quimio, radio, imunoterapia, cirurgia e mais um monte de exames e orientações. O câncer de bexiga, assim como o melanoma uterino que minha
mãe teve, é uma doença de tratamento extremamente complexo e que depende de uma grande coordenação do tratamento. 
 

O sistema público é complicado, então as pessoas com frequência se perdem no meio do caminho. A gente começou a organizar esse fluxo, é
 um conceito que hoje chamamos de navegação. Eu acompanhei a minha mãe nessa jornada e sei que ela é dolorosa. Mas, a trajetória fica um pouco menos sofrida se alguém te ensina pra onde ir. 
 

[trilha sonora]
 

A segunda medida foi mudar a forma de tratamento. O câncer de bexiga é uma doença que afeta, principalmente, idosos que fumaram a vida inteira. São velhinhos frágeis, que chegam com outras comorbidades. Muitas vezes, eles não resistem a uma cirurgia de grande porte. Uma abordagem radical não faz sentido nesses casos, assim como não fazia no caso da minha mãe.

Muitos pacientes que há cinco anos seriam operados da forma tradicional passaram a ser
operados de maneiras menos invasivas e os resultados foram muito melhores.
 Assim nasceu o embrião do Projeto CABEM Mais Vidas. No começo, eu era sozinho. Depois, vieram outros urologistas, veio uma oncologista. Aí chegou uma nutricionista, uma enfermeira, uma farmacêutica, uma psicóloga, fisioterapeuta.

Hoje, nós somos 12 profissionais de saúde, todos voluntários, a
lém de muitos estagiários. Nós já atendemos, diretamente, 230 pessoas. A gente conseguiu reduzir os índices de mortalidade em mais de nove vezes. As mortes caíram de quase 40% para menos de 3%. 
O CABEM Mais Vidas atravessou as fronteiras do ABC paulista. Os nossos dados saíram em revistas científicas e o modelo passou a ser replicado em hospitais públicos de Vitória, de Salvador, de Presidente Prudente.

Se a gente juntar os outros centros, a gente es
falando de mais ou menos mil pacientes impactados pelo projeto. 
Claro que ainda queremos melhorar muito mais. Queremos agora começar a atuar mais no diagnóstico precoce desta doença no SUS, aumentar de 45% para 75% o diagnóstico feito em fases iniciais.  

[trilha sonora]
 

Uma vez um amigo médico me perguntou: “Por que você aceita trabalhar em lugares assim? Se você ficar trabalhando de graça, nunca vão contratar ninguém”. Mas, 
pra mim, isso nunca foi uma questão. Felizmente, eu consigo pagar bem as minhas contas com o que eu recebo no meu consultório particular e consigo dedicar parte da minha agenda ao serviço público.

Eu não preciso usar todo o meu tempo livre
pra ganhar o máximo de dinheiro que eu posso. 
Fazer o bem, doar, sempre foram valores que a religião judaica me ensinou, chamamos isto de Tzedaka. Quando vivi a história da minha mãe, não conseguia entender o porquê aquilo estava acontecendo comigo.  

Mas, q
uando recebi o convite pra ir pro ABC, uma luz se acendeu e clareou para mim qual era o meu propósito. Pude unificar o que tenho de competências e conhecimentos, às minhas experiências pessoais e poder direcionar tudo isto pra ajudar o próximo e melhorar o sistema. Foi motivador pensar que existe um sentido maior no que eu estou fazendo aqui. 
 

[trilha sonora]
 

Geyze
Diniz:
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[trilha sonora]
 

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