Para Inspirar

Duda Schietti em “Tudo que acontece comigo é o melhor que poderia acontecer comigo”

Na quarta temporada do Podcast Plenae - Histórias para Refletir, conheça a jornada de autoestima e autoconhecimento de Duda Schietti

4 de Abril de 2021


Leia a transcrição completa do episódio abaixo:

[trilha sonora] Duda Schietti: Era a realização de um sonho. Eu tinha 23 anos e morava sozinha em Nova York, num apartamento delicioso a duas quadras do Central Park. Me mudei pros Estados Unidos pra passar um ano estudando na Parsons, a melhor escola de moda do país. A vida estava perfeita, até o meu destino mudar pra sempre seis meses depois que eu cheguei na cidade.  [trilha sonora] Geyze Diniz: Um AVC aos 23 anos de idade é um desses acontecimentos inexplicáveis da vida. Lidar com as sequelas da doença não é fácil para ninguém, menos ainda pra uma pessoa tão jovem. Neste episódio, a influenciadora Duda Schietti compartilha sua jornada para curar as feridas deixadas pelo acidente vascular cerebral em um processo de aprendizado contínuo, autoconhecimento e resiliência, sem deixar de ser feliz. Ouça no final do episódio as reflexões da especialista em desenvolvimento humano, Ana Raia, para te ajudar a se conectar com a história e com você mesmo. Eu sou Geyze Diniz e esse é o Podcast Plenae. Ouça e reconecte-se [trilha sonora] Numa sexta-feira como outra qualquer, acordei de manhã, fui ao banheiro e, na hora de escovar os dentes, eu comecei a babar. Olhei no espelho e prestei atenção no meu rosto. Senti uma fraqueza no lado direito, como se o músculo não tivesse força pra mexer a boca e piscar o olho.  Fiquei intrigada com aquela paralisia, mas confesso: não me preocupei tanto. Na época, há nove anos, eu não tinha conhecimento, nem maturidade pra entender a gravidade daquele sintoma. E eu me sentia bem, sem dor ou qualquer mal-estar. Então, vida que segue. Fui almoçar com uma amiga e senti uma leve dificuldade para comer.  Voltei pra casa e, conforme o dia foi passando, bateu uma falta de energia, indisposição e náusea. Como eu sou teimosa, no fim da tarde fui à academia do prédio. Tentei me exercitar, mas era im-pos-sí-vel. Naquela altura, o rosto já estava completamente paralisado. Liguei pra minha mãe, que mora em Londrina, no Paraná, e ela disse pra eu ir ao médico no dia seguinte. [trilha sonora] O médico achou que eu pudesse estar com Paralisia de Bell, uma fraqueza muscular causada por um vírus. Receitou um antiviral e me mandou voltar dali a uns dias. Só que no fim de semana eu piorei, a ponto de não conseguir andar. Depois, eu fui saber que eu tinha perdido a audição do lado direito, por isso eu estava sem equilíbrio.  Minha mãe chegou a Nova York dois dias depois. A essa altura, o pouco que eu conseguia comer, eu vomitava. Quando tentava andar, eu caía no chão. Eu não saía da cama. Voltei no mesmo médico e ele me mandou procurar um neurocirurgião. Senti que o buraco era mais embaixo.  [trilha sonora] Saímos perguntando pros conhecidos, e o amigo do amigo indicou um médico famoso. Eu e minha mãe estávamos muito nervosas na consulta. Por mais que a gente fale inglês fluentemente, não é a mesma coisa se comunicar em outra língua, ainda mais numa situação como aquela. Pra piorar, o médico não foi muito acolhedor. Uma ressonância apontou que eu tinha um cavernoma cerebral, uma má formação no vaso sanguíneo. Eu nasci com isso, mas até então eu não sabia. E provavelmente nunca saberia, se a lesão não tivesse estourado e sangrado, que foi o que aconteceu comigo, do nada. Em resumo, o que eu tive foi um AVC. [trilha sonora] A lesão estava localizada entre o tronco e a medula cerebral, um lugar delicado, de dificílimo acesso. O médico disse que, por causa da localização, não dava pra operar. Falou que o meu corpo ia absorver aquele cavernoma, que não tinha nada pra fazer e era pra eu voltar lá dali a 20, 30 dias.  Não tinha como eu aceitar aquele diagnóstico, eu estava muito debilitada. Minha mãe e eu saímos do consultório inconformadas. O meu pai é médico e concordou que a gente precisava escutar outras opiniões. Ele e minha mãe fizeram vários contatos e graças a Deus nós encontramos um neurocirurgião, especialista em cavernoma, em São Paulo. A gente mandou os meus exames e ele me mandou voltar imediatamente pro Brasil pra operar, porque eu poderia ter outro sangramento. [trilha sonora] Deixei tudo para trás, peguei um voo pra São Paulo e no mesmo dia fui ao consultório. O médico falou sobre a cirurgia e a primeira coisa que eu perguntei foi: “Tá, mas e o meu rosto? Vai voltar ao normal ou vai ficar paralisado pra sempre?” Tenho até vergonha de falar, mas a verdade é que eu não estava preocupada com a minha saúde, e sim com a minha aparência. Daí o neuro respondeu: “Isso eu não posso te garantir”. E continuou: “Você tem que agradecer a Deus que só o seu rosto tá paralisado. Conheci vários casos de pessoas que tiveram exatamente o que você teve e não mexem nada de um lado do corpo. E outras, que o cavernoma afetou a parte cognitiva. Então agradeça que você está andando, mexendo o seu braço e a sua mão, falando e pensando”. Foi um choque de realidade ouvir aquelas palavras. Um verdadeiro chacoalhão.  [trilha sonora] A cirurgia foi marcada para o dia 14 de março de 2013, um mês depois do primeiro sintoma. Na véspera da operação, um médico da equipe foi ao quarto do hospital conversar. Ele explicou que era uma cirurgia de alto risco e pediu pra contar comigo: “A gente precisa da sua calma, precisa que você esteja bem, porque isso faz muita diferença”. Só que até aquele momento, imagina, eu nunca tinha tido nenhum problema de saúde. No máximo uma gripe. Na madrugada, eu tive uma crise, não sei se de ansiedade ou pânico, mas eu me tremia toda. Passei a noite em claro, morrendo de medo. De manhã, antes de eu ir pro centro cirúrgico, minha mãe, meu pai, meus dois irmãos, minha cunhada e eu fizemos uma oração de mãos dadas, pedindo a Deus que conduzisse os médicos da melhor maneira possível. A operação durou 14 horas e deixou uma cicatriz enorme, numa linha reta que sobe da cervical até o topo da minha da cabeça. Acordei na UTI, com a minha mãe segurando a minha mão do meu lado esquerdo, dizendo que tinha ido tudo bem e chorando muito. Tive alta e me mudei pra casa dos meus pais, em Londrina. 2013 foi um ano de recuperação. Eu nem entendia direito o que estava acontecendo. Precisava da ajuda da minha mãe pra tomar banho, pra me trocar. Demorei dois meses pra conseguir estabilizar o equilíbrio e fazer uma caminhada sem apoio de alguém. Naquela época, eu também não tinha ferramentas internas pra lidar com a minha ansiedade, com toda a inquietação que eu estava sentindo. Qualquer dorzinha, podia ser na pontinha do dedo, eu já achava que podia ser o cavernoma de novo. Os quatro anos seguintes foram de infelicidade, angústia e tristeza. Uma fase bem dark em que eu não considero que vivi, mas sobrevivi. Eu sempre fui muito ligada à beleza. Trabalhava com moda, adorava me maquiar, me produzir, me vestir bem. A sequela estética, pra mim, doía como se alguém tivesse enfiado uma faca no peito e quebrado o meu coração em 1 milhão de pedaços. O rosto é o nosso cartão de visitas, a primeira coisa que o outro olha em você e você no outro. É por onde a gente se expressa e demonstra os nossos sentimentos. Eu tinha perdido 96% dos movimentos do lado direito do meu rosto. Ter um sorriso torto me matava por dentro. Eu evitava olhar no espelho, porque eu não gostava do que via. Não queria tirar foto... Logo eu, que sou leão com ascendente em leão. Sempre adorei fazer pose pra câmera e me exibir. Achava que nunca ia voltar a ser feliz. Não entendia porque aquilo estava acontecendo justo comigo, tão vaidosa. Diminuí o convívio social e só queria encontrar pessoas que já sabiam o que tinha acontecido, pra evitar olhares que me incomodassem.  [trilha sonora] Sair desse buraco existencial foi uma longa caminhada, que começou pela alimentação. [trilha sonora] Por causa do susto, eu queria cuidar melhor da minha saúde. Procurei uma nutricionista e passei a comer mais comida de verdade e menos alimentos industrializados e inflamatórios, tipo farinha branca e açúcar. Comecei a consumir produtos orgânicos e a dar importância pra procedência das carnes que eu ingeria. Só com essas mudanças, senti mais energia, meu humor melhorou e o meu sono também.  Eu sempre adorei compartilhar tudo que eu aprendo, e por isso fui dividindo as descobertas com os meus amigos no Instagram. As pessoas gostaram e foram interagindo comigo. Aquela troca me fez bem e me instigou a pesquisar mais sobre esse universo do bem-estar. Fiz um curso de health coach e entendi que eu não me alimento só de comida. Os pensamentos, as emoções, as pessoas ao meu redor, o ambiente e o sono também me nutrem. De maneira orgânica, entrei numa jornada de autoconhecimento, um assunto pelo qual eu não me interessava antes. Eu tinha e ainda tenho uma fé muito grande, mas nada além disso.  O meu estímulo pra fazer exercício também mudou. Antes da doença, eu praticava corrida e fazia musculação, mas confesso: só para ficar magra, não estava nem aí pros benefícios pra saúde. Até eu descobrir o yoga e o conceito de impermanência. A mesma postura que eu fiz ontem perfeitamente bem, pode ser que hoje eu não consiga nem começar, talvez porque a mente está mais agitada ou porque eu não tenha dormido tão bem. E tá tudo certo. O yoga me mostrou que cada dia é um dia. Nós mulheres somos cíclicas como a natureza e precisamos respeitar esse movimento. Com o yoga, veio a meditação, que me ensinou a não me identificar com os meus pensamentos, principalmente na época em que eles eram tóxicos: eu não me achava boa o suficiente e não conseguia mais enxergar beleza em mim.  O maior passo da minha jornada de descoberta de mim mesma eu dei em 2017, quando comecei a fazer terapia. Eu, que sou comunicativa, tinha me fechado numa conchinha. Andava de cabeça baixa e não fazia contato visual com ninguém. Eu tinha vergonha da minha doença e medo do julgamento alheio, até a psicóloga me provocar: “É melhor você começar a encarar essa realidade”. O pontapé inicial foi, literalmente, levantar a cabeça. A psicóloga me falou: “Olha pra cima, para de se esconder!”. A minha lição de casa era ficar de cabeça erguida na sala de espera e cumprimentar os outros, em vez de disfarçar olhando o celular, como eu sempre fazia. Esse pequeno gesto mudou a minha vida. A partir daí, aos poucos, eu fui saindo pro mundo. Comecei a andar de queixo erguido na rua e no shopping. Voltei a frequentar eventos sociais e a conversar com pessoas que eu não conhecia. Me preparei pra, se alguém perguntasse o que tinha acontecido com o meu rosto, contar sem medo de ser julgada. E descobri que, quando eu mostro a minha vulnerabilidade, as pessoas se conectam comigo, são empáticas e se interessam muito mais pela minha história do que pela sequela física.  [trilha sonora] Nessa jornada, compreendi que a gente fica tentando esconder as nossas feridas de nós mesmos. Eu conheço muitas mulheres que têm vergonha de si mesmas, não se olham peladas no espelho, porque não gostam do reflexo. Só que esse caminho não tem sentido. As nossas imperfeições fazem parte de quem nós somos. Me sinto muito honrada quando alguém me pede dicas de como melhorar a autoestima e se aceitar como é. Eu sinto empatia, porque eu sei o que a pessoa está passando.  Ainda tenho minhas questões com a ansiedade e a vaidade, mas sinto que estou caminhando pra minha melhor versão e estou mais inteira para ajudar quem enfrenta situações semelhantes. A minha missão é pegar tudo o que aconteceu comigo e mostrar como eu fui do ponto A pro B. De uma mulher excessivamente preocupada com a aparência e a opinião dos outros, para alguém com mais saúde física, mental e emocional.  [trilha sonora] Ser estilista deixou de fazer sentido pra mim e a minha busca por bem-estar virou uma carreira. Criei um podcast e uma conta de Instagram onde eu compartilho o que eu venho aprendendo ao longo desses 9 anos. Eu falo sobre desenvolvimento humano, espiritualidade, autoconhecimento, cura, saúde mental, nutrição e tudo que compõe o universo holístico. Voltei a morar sozinha, parei de me vitimizar e mentalizo todos os dias o mantra que me ajudou e ainda ajuda: “Tudo que acontece comigo é a melhor coisa que poderia ter acontecido comigo”.  [trilha sonora] Ana Raia: Duda é generosa ao dividir sua história. Com sinceridade, razão e emoção sem qualquer receio ela expõe suas antigas e atuais vulnerabilidades. Sua história deixa claro que a vida acontece sem aviso prévio e que a cada obstáculo que não estava no chamado script confirma sua impermanência. Nenhum de nós tem controle total da vida, mas todos podemos escolher como reagir aos acontecimentos que ela apresenta. Em um primeiro momento, Duda se recolheu e acolheu a dor que vivia dando espaço ao problema até que, em seu ritmo, decidiu mudar. O processo de mudança muitas vezes se inicia quando existe o abandono de nossas expectativas e aceitação da realidade. Se você não encara a realidade, não tem a chance de transformá-la em uma realidade melhor e foi assim com a Duda. Ao aceitar sua nova condição, ela começou a desapegar de antigos valores e mudou a forma como narrava a sua história para si mesma. Até que essa narrativa passou a transformar seu próprio mundo. Quando você muda sua narrativa, você muda a sua realidade. Ao ouvir o relato me lembrei de um trecho de uma poema que chama "A Casa de Hóspedes", que foi escrito pelo poeta persa do século 13, chamado Rumi. Esse trecho diz assim: "O ser humano é como uma casa de hóspedes. Toda manhã uma nova chegada. ​Uma alegria, uma tristeza, uma maldade. Uma percepção momentânea chega como visitante inesperado. Receba e acolha a todos, mesmo se forem uma multidão de tristezas, ​que varre violentamente a sua casa e a esvazia de toda a mobília. Mesmo assim, trate com honra cada convidado pois eles podem estar limpando você​ para a chegada de um novo deleite." E o mantra de Duda tem muito a ver com esse poema. A Duda diz: “Tudo que acontece comigo é a melhor coisa que poderia ter acontecido comigo”. E assim, ela reforça a ideia de que podemos abraçar todos os eventos de nossas vidas de coração aberto e assim viver de forma inteira com coragem, propósito e significado. [trilha sonora] Geyze Diniz: Nossas histórias não acabam por aqui. Confira mais dos nossos conteúdos em plenae.com e em nosso perfil no Instagram @portalplenae. [trilha sonora]

Compartilhar:


Para Inspirar

Fernanda Fabris em "As crianças não precisam ser salvas. Elas precisam ser amadas"

Na décima segunda temporada do Podcast Plenae, mergulhe na história emocionante de maternidade de Fernanda Fabris.

4 de Julho de 2023



Leia a transcrição completa do episódio abaixo:


[trilha sonora]

Fernanda Fabris: Eu acreditava que a criança tinha um papel ativo em fazer uma adoção dar certo. Se ela tivesse uma personalidade fácil, então rolava. Se ela fosse difícil, não rolava. Hoje, eu vejo que é o contrário. Quem tem que fazer dar certo é o pai e a mãe, não o filho. 

[trilha sonora]

Geyze Diniz: Fernanda e seu marido, Maurício, tentaram engravidar por 11 anos. Depois de muita frustração e expectativas, Fernanda retomou seu desejo antigo de adotar. Hoje, o casal tem 5 filhos. Conheça essa história de amor, persistência e destino da família Fabris. Eu sou Geyze Diniz e esse é o Podcast Plenae. Ouça e reconecte-se.

[trilha sonora]


Fernanda Fabris: A ideia da adoção nasceu no meu coração quando eu tinha 13 anos. A minha tia paterna levava crianças e adolescentes que moravam em abrigos pra passar as festas de fim de ano com a gente. Teve uma garota específica que me marcou muito. Eu não lembro o nome dela, mas a gente tinha mais ou menos a mesma idade. Eu me recordo que olhei pra ela e pensei: “Por que eu tenho uma família e ela não?” 

[trilha sonora]

Eu me casei cedo pros padrões atuais, aos 18 anos. Quando meu marido me pediu em casamento, eu perguntei se ele toparia adotar uma criança. Eu esperava uma resposta negativa, mas ele aceitou. Então, a gente combinou que primeiro eu ficaria grávida. Quando o nosso filho tivesse uns 12 anos, nós adotaríamos um adolescente ou pré-adolescente. Eu nunca tive vontade de adotar um bebê.

Antes de completar um ano de casada, eu já quis engravidar. Só que os anos foram passando… e nada. Pior do que lidar com a minha frustração, era aturar a expectativa dos outros. Muita gente perguntava: “Quando vem o filho? Cadê o bebê?”. E cada vez que alguém recomendava um médico novo, eu ia. A maior parte dos profissionais nem pedia um exame. O discurso era: “Você é jovem, vai conseguir ficar grávida”.

[trilha sonora]

Foram 11 anos sem usar nenhum método contraceptivo. Nesse período, eu tive três depressões. Eu estava quase entrando na quarta quando eu fiz um tratamento não-invasivo para estimular a ovulação. E aí o ginecologista me falou: “Olha, eu acho que você deveria fazer uma fertilização in vitro”. Ouvir essa frase foi uma libertação, porque tirou das minhas costas a obrigação de engravidar naturalmente. 

Só que eu não queria fazer a fertilização. Eu decidi passar por um período sem pensar em maternidade, para curar o meu estado emocional. Viver o luto por não poder gerar um bebê me permitiu entender o que eu queria da maternidade. Eu comecei a prestar atenção em mim e lembrei do meu desejo de adotar. Por que eu fiquei 11 anos tentando engravidar? Era pra satisfazer a minha vontade ou era a vontade do outro? E aí eu me abri de verdade pra adoção. 

[trilha sonora]

Um dia, eu estava no trabalho e joguei no Google: “documentos para adotar”. No topo da página, apareceu um site chamado “Adote um Boa Noite”, do Tribunal de Justiça de São Paulo. Tinha um monte de fotos de crianças. E eu fui vendo as imagens, até parar na penúltima delas. No mesmo instante, eu disse: “Meus filhos!”. Uma colega que estava do meu lado falou: “Você tá louca?” E eu respondi: “Não, vem ver meus filhos”. Tirei um 'print' da tela e mandei pro meu esposo. Ele ficou muito bravo. Quem quer adotar quatro crianças de uma vez? 

[trilha sonora]

Eu confesso que eu também achei loucura. Mas, os quatro não saíam da minha cabeça. Eu pus aquela foto de fundo de tela do meu celular e comecei a sonhar. Eu só sabia o nome e a idade deles: Flávio, de 11 anos, Flávia, de 9, Fabrício, de 6, e Artur, de 3 anos. Se eu ia numa loja, falava: “O Flávio vai ficar bonito com essa roupa; a Flávia vai ficar uma graça com essa”. O meu marido me podava: “Pode parar, não vem que não tem. Nós vamos adotar até duas crianças”. Eu fingi que aceitei a condição dele e a gente entrou no processo de habilitação. 

[trilha sonora]

Eu cacei na internet o telefone da Vara da Infância responsável pelos quatro e ficava ligando lá. O primeiro telefonema foi o mais engraçado. Alguém atendeu “alô” e eu disse na hora : “Alô, não separe os meus filhos, eu estou me habilitando”. A pessoa respondeu assim: “Que filhos?” É claro que a Vara não me deu moral. Me acharam maluca, porque eu liguei muitas vezes lá.

Durante o curso preparatório, uma mãe contou que adotou três meninas. Detalhe: sozinha e sendo que uma das crianças tinha uma necessidade específica. No final da palestra, um rapaz perguntou: “Como você faz para oferecer escola pra todas?” Aí ela, muito educada, disse: “As minhas filhas não estudam na melhor escola. Elas não têm iPhone. Elas não têm tênis do ano. Mas elas têm amor e têm um lar, é disso que uma criança precisa”.

Eu percebi que o meu marido se emocionou, mas fiquei quietinha. Quando a gente entrou no carro, ele olhou pra minha cara e falou: “Você é a mulher mais louca que eu já vi na minha vida, mas eu vou te apoiar”.

[trilha sonora]

Quatro meses depois que eu vi a foto das crianças na internet, a gente se conheceu pessoalmente. O encontro aconteceu num sábado. O Fabrício, o de 6 anos, me perguntou: “Você vai ser minha mãe?”. Eu respondi: “Eu acho que sim. Você quer?”. Ele falou: “Relaxa, você já é minha mãe, tá tudo bem”. Eu fiquei assustada, porque tinham me dito que primeiro eu seria chamada de “tia”.

A Flávia, de 9, repreendeu o irmão: “Não chama ela de mãe. Ela não é sua mãe”. O Flávio, de 11 anos, ficou o tempo todo muito tímido, nem interagiu direito. Ele tinha medo de ser rejeitado, ele achava que eu ia preferir os irmãos menores e mais fofinhos. Eu imaginava que iria amá-los imediatamente.

Mas, quando o sonho se tornou realidade, eu fiquei meio sem entender o que estava acontecendo. Por um lado, eu estava encantada. Achei lindo ser chamada de mãe. Por outro, me bateu um pouco de medo, uma dúvida de: “será que eu vou dar conta?”. 

[trilha sonora]

Na segunda-feira, a Vara da Infância me ligou às 10h da manhã, pra saber se a gente queria continuar a fase de aproximação. Eu, toda feliz, respondi: “Claro, eles são meus filhos, me chamaram de mãe”. A assistente social, que já tinha visto aquele filme, me alertou: “Vai com calma, não é bem assim”.

Naquele mesmo dia, o meu marido foi demitido. Nós perdemos 70% da nossa renda. Eu nunca tinha ficado sem convênio médico. E agora, ficaria sem convênio e com quatro crianças. A gente passou bastante perrengue, mas não cogitou desistir da adoção. 

[trilha sonora]


Seis semanas depois do nosso primeiro encontro, o juiz liberou a vinda das crianças pra casa. A lua de mel que a gente viveu na fase da aproximação acabou assim que eles deixaram o abrigo. No primeiro dia, a Flávia já colocou em cima da cama os ursos de pelúcia e uma Bíblia.

Ela olhou para mim e falou: “Isso daqui quem me deu foi minha mãe. Não mexa”. O Fabrício não dormiu e teve micro convulsões, por estresse. O Artur, o pequeninho, não deixava eu me aproximar dele. Na hora do banho, ele olhava para mim e falava: “Eu não ‘teio’ você”.

O único que nunca me rejeitou foi o Flávio. Ele já tinha aceitado que não ia voltar pra família de origem e queria ser adotado. Em três meses a gente já estava vinculado. Quando eu falo de vínculo, significa que eu já o via como meu filho, não imaginava mais a vida sem ele. Depois esse vínculo então foi fortalecido através de um relacionamento.

O segundo com quem eu me vinculei foi o Artur. Depois de quatro meses me rejeitando, eu falei: “Não tô nem aí. Vem aqui pro meu colo”. E eu venci pela insistência. Ele foi o primeiro a dizer que me amava. Só que com o Fabrício, o primeiro que me chamou de mãe, não me dava bem de jeito nenhum. A Flávia, então, passou um ano e meio pedindo pra voltar para o abrigo. Ela olhava para mim e falava: “Você não é minha mãe. Não adianta, você pode fazer o que for, eu nunca vou ser sua filha”.

Por mais que eu tentasse melhorar as coisas em casa, eu não conseguia. Virou um ambiente de guerra, porque eles se uniam contra mim. E pra piorar, a pandemia começou três meses depois que eles vieram morar com a gente. O Maurício, que tava começando a trabalhar, ficou totalmente sem renda de novo.

Eu não conseguia mais me dedicar aos estudos, porque as crianças consumiam 100% do meu tempo. 
Eu comecei a pedir ajuda. Quando eu procurava quem sabia um pouquinho sobre adoção, eu ouvia: “Tem que ter paciência, vai passar”. Mas, ninguém me explicava o que estava acontecendo. Por que tanta rejeição?

[trilha sonora]

Eu, como pesquisadora, ao invés de ficar só choramingando, resolvi estudar por conta própria. Primeiro, eu fiquei horas e horas lendo sobre desenvolvimento infantil. Aí eu entendi o que era esperado em cada idade. Então ok, isso ou aquilo não tinha a ver com a adoção, era da idade. Depois, eu fui buscar na literatura sobre crianças acolhidas. Eu descobri que elas não se amavam, que tinham baixa autoestima. E eu, curiosa, fui pesquisar porque isso acontecia.

Na neurologia, eu aprendi que a criança que sofreu acolhimento tem a região da amígdala cerebral mais estimulada. A amígdala é a estrutura ligada às emoções. Por outro lado, o córtex cerebral delas, que é o sistema que representa a razão, é menor. Toda vez que essas crianças se veem numa situação de perigo, elas reagem. E não adianta bater de frente. Não adianta gritar, que é justamente o que nós, pais, fazemos.

A ciência mostra que, quando a gente vai construindo o vínculo afetivo, a pessoa passa por um processo de neuroplasticidade. Ela começa a pensar e agir de forma consciente. Com a psicologia, eu entendi que a rejeição era um mecanismo de defesa inconsciente das crianças.

Elas pensam assim: “Se eu gostar dela e ela me levar de volta para o abrigo, eu vou sofrer. Então, eu rejeito ela, assim ela não gosta de mim, eu também não gosto dela e eu não sofro”. Quando eu comecei a aplicar esses conhecimentos dentro da minha casa, automaticamente o ambiente foi ficando mais leve. 

[trilha sonora]

Na terapia, eu entendi que o meu desconforto com o Fabrício dizia respeito a mim, não a ele. Ele chegou em casa muito carente. Queria estar no meu colo 24 horas. Só que eu não expresso tanto meu amor pelo toque. Eu demonstro o meu afeto por atos de serviço e tempo de qualidade. E aí o que ele fez? Ele se afastou de mim, porque entendeu como rejeição.

Eu, por outro lado, achava ele chato. Aí eu lembrei que eu fui uma criança carente. O choro dele lembrava o meu choro não acolhido. Depois que eu tive essa sacada, eu enxerguei o quão incrível ele era. Em um ano, a gente estava vinculado. 
A mais complicada foi a Flávia. Quando ela me via chorando, ela gargalhava.

Eu lembro que eu cheguei na psiquiatra e disse: “Minha filha é uma sociopata”. Eu falei desse jeito. Era uma fase em que eu estava dormindo com a porta trancada, por medo. E no processo terapêutico, eu compreendi que a gargalhada da Flávia não era sobre mim, mas sobre ela. Se ela não me ouvisse chorando, ela não sentia dor.

Faltavam dois dias pra sair a sentença de guarda e a gente ainda não estava vinculada. Pela última vez, ela pediu pra voltar pro abrigo. E eu respondi: “Eu sou a sua mãe, você querendo ou não. Então, se você não tá feliz aqui, o que eu recomendo é que você estude, tenha uma profissão e, quando você for maior de idade, tu toma o teu rumo”.

Três dias depois da sentença, ela me chamou de mãe. Eu me arrepiei e soube que a gente tinha se vinculado. 
Hoje, a Flávia é uma menina de um coração imenso, doce, minha melhor amiga. A gente se conhece só pelo olhar.

[trilha sonora]

Eu conversei com ela e a gente decidiu contar a nossa história no Instagram. A minha ideia era ajudar outras pessoas que tivessem passando pela mesma situação. Tem pais que desistem da adoção, quando a criança pede pra voltar pro abrigo. O perfil bombou. Em menos de 6 meses, a gente tinha 360 mil seguidores.

Eu comecei a divulgar instituições que acolhem crianças. Em troca, eu pedia pra ter contato com os abrigados. Foi numa dessas vivências que a gente conheceu a Naty. Ela tinha 16 anos e uma fala muito triste. A gente decidiu apadrinhá-la e ela começou a frequentar a nossa casa.

No início, ela fugia de mim. E eu pensava: “Caraca, eu só tô apadrinhando e vou ter que viver essa rejeição também? Que saco!” Mas, eu sou muito teimosa. Quando ela não vinha, eu aparecia no abrigo ou na escola. Fui conquistando a confiança dela e, não sei explicar, mas ela parecia parte da nossa família.

Um dia, o Maurício parou na minha frente e falou bem baixinho: “E se a gente adotasse a Naty?”. Todo mundo adorou a ideia, inclusive ela. Quando nós fomos buscá-la, eu falei: “Oi, filha”. Aí ela respondeu: “Oi, mãe”. Foi natural desse jeito.

[trilha sonora]

Nesse processo, eu aprendi que não adianta a gente querer mudar o mundo da criança rapidamente. O meu papel é ajudar os meus filhos a ressignificarem o que eles viveram e continuarem escrevendo a própria história. Eu compreendi a importância da família de origem.

A adoção, ela não vem com uma borracha mágica. A gente tem que ter muito respeito por essa família, para que os nossos filhos se aceitem e se livrem da culpa que eles carregam. Quando a gente respeita os pais biológicos, a gente ensina as crianças que elas têm que se respeitar, que elas são dignas de amor e de afeto.

Todos os dias, eu vejo famílias que entram no processo adotivo com a intenção de fazer uma caridade. O problema é que, com essa mentalidade, esses adultos vão esperar um senso de gratidão em troca. E a criança e o adolescente não tem nem maturidade cerebral para ser grato. É um erro pensar que as crianças precisam ser salvas. Elas só precisam ter pais e mães. Elas precisam de amor.

[trilha sonora]

Geyze Diniz: Nossas histórias não acabam por aqui. Confira mais dos nossos conteúdos em plenae.com e em nosso perfil no Instagram @portalplenae.

[trilha sonora]

Compartilhar:


Inscreva-se na nossa Newsletter!

Inscreva-se na nossa Newsletter!


Seu encontro marcado todo mês com muito bem-estar e qualidade de vida!

Grau Plenae

Para empresas
Utilizamos cookies com base em nossos interesses legítimos, para melhorar o desempenho do site, analisar como você interage com ele, personalizar o conteúdo que você recebe e medir a eficácia de nossos anúncios. Caso queira saber mais sobre os cookies que utilizamos, por favor acesse nossa Política de Privacidade.
Quero Saber Mais