Para Inspirar
Representando o pilar relações, Geyze e Abilio Diniz dividem um pouco de sua trajetória de amor, no último episódio do Podcast Plenae
26 de Julho de 2020
Leia a transcrição completa do episódio abaixo:
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Abilio Diniz: Eu sempre tive grandes metas na vida. Sempre busquei me superar. Sempre fui uma pessoa competitiva em busca de conhecer e desafiar meus próprios limites. Isso valia para o meu trabalho, para os meus esportes que praticava e para minha vida. Eu tinha sido casado e tive quatro filhos: Ana, João, Adriana e Pedro. Posso dizer que tinha uma boa relação familiar, meus filhos sempre foram muito, muito importantes para mim. Sempre dei valor para relações pessoais, sempre soube que elas eram importantes, mas hoje eu percebo que faltava alguma coisa.
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Introdução: Bem-vindo ao Podcast Plenae, um lugar onde você encontra histórias reais para refletir. Ouça e reconecte-se.
No episódio de hoje, a história do empresário Abilio Diniz e de sua mulher, Geyze, é um exemplo de como a vida pode dar uma guinada para quem se abre para viver um amor. Eles representam o pilar Relações. No final do relato você ouvirá reflexões do monge Satyanatha, nosso convidado especial dessa temporada, para ajudar você a se conectar com o seu momento presente.
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Abilio Diniz: Não é simples explicar o que faltava, porque sinto que a razão de ser dessa falta não estava nas outras pessoas, mas em mim mesmo. Depois da separação em meu casamento, passei 14 anos focado no crescimento do Grupo Pão de Açúcar e de outros projetos profissionais. Nesse período, além dos meus filhos, eu tinha uma namorada, amigos e parceiros de trabalho. Havia muitas pessoas à minha volta, mas na realidade, eu estava fechado para relações profundas. Eu sentia algum incômodo com isso, eu sentia uma grande solidão.
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Geyze Diniz: Eu me formei em Economia e fui trabalhar no Grupo Pão de Açúcar. Essa foi uma conquista importante para a minha carreira, não só porque eu entrei em uma empresa sólida com boas oportunidades, mas porque eu fui muito feliz lá.
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Eu gostava do trabalho, gostava das pessoas. Era um clima realmente positivo. Eu entrei na empresa como trainee do então superintendente do grupo, homem abaixo do Abilio Diniz na hierarquia. Eu já tinha visto o Abilio algumas vezes, mas a gente não se conhecia. O Pão de Açúcar era uma empresa que dava espaço pra criar, se desenvolver, construir. Eu me dediquei muito e cheguei ao cargo de Diretora de Planejamento Estratégico. Tenho muitas boas lembranças daquela época.
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Abilio Diniz: Eu tinha 63 anos de idade e, naquele momento, tinha certeza que já tinha vivido minhas experiências como marido e como pai. Nem pensava em me casar novamente, muito menos ter filhos. Nem sequer namorar sério, até que um dia eu vi a Geyze.
Geyze Diniz: Quando eu nasci, o Abilio já tinha 36 anos de idade, eram muitas as diferenças que nos separavam. Um dia, numa tarde no Grupo Pão de Açúcar, uma porta se abriu para nós, para mim e para o Abilio. E foi a porta de um elevador. Eu estava lá dentro, a porta abriu e o Abilio entrou. Eu não o conhecia pessoalmente, poucas vezes o tinha visto. Normalmente, as pessoas entram num elevador, e ficam de costas para quem está ao fundo. O Abilio ficou de frente pra mim, ele abriu um sorriso, e eu sorri de volta.
Abilio Diniz: Eu senti algo diferente quando vi a Geyze naquele elevador. Desde a primeira vez, senti uma grande necessidade de conhecê-la mais e me aproximar dela.
Geyze Diniz: Tivemos a sorte e a felicidade de nos encontrarmos. Num encontro de almas, como dizem alguns entendidos e eu acredito muito nisso. Antes da gente se envolver, começamos a conversar. Conversamos muito sobre todos os assuntos importantes pra nós. Essas conversas foram essenciais para construirmos uma base de companheirismo e de confiança, que temos até hoje. Quanto mais o conhecia, mais eu tinha a certeza de que aquela relação era diferente, que era algo pra valer e que um sentimento forte tomava conta de mim. Minha vida profissional continuava a mil e precisei fechar os ouvidos pra todos comentários maldosos que vinham naquele momento. Afinal, eu estava namorando o dono da empresa. O tempo foi passando, nossa relação foi ficando cada vez mais séria e estruturada, mas em algum momento, passei a sentir que pra equilibrar a minha vida e me sentir plena e feliz, era importante construir uma família, casar e ter filhos. E isso tinha que acontecer com o Abilio.
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Abilio Diniz: Nosso namoro ia bem, muito bem. Nossas intensas conversas eram uma fonte de força para nós dois. Com a Geyze, eu senti pela primeira vez que eu poderia me entregar para uma pessoa na minha vida. Era diferente de tudo que eu tinha vivido e experimentado. Estávamos felizes namorando, passando tempo juntos, tudo era muito natural, porém, eu ainda tinha certeza que não queria casar e não queria ter filhos. Não era nenhum ponto de discussão para mim, era uma decisão sólida da minha parte e um ponto grave em discordância. Então eu tive medo, pensar no fim de um relacionamento tão profundo era doloroso. Então, decidimos buscar ajuda.
Geyze Diniz: Eu sentia que estava aberta para enfrentar o que viesse pela frente em nome desse amor. Fomos a terapia de casais e depois da primeira sessão eu tinha certeza que aquilo não daria em nada. O Abilio e o terapeuta estavam se comunicando bem e eu não conseguia me fazer entender. O Abilio já tinha vivido muito, tinha muita experiência e eu não sabia como fazer enxergar o meu lado, o que eu estava sentindo. Parecia naquele momento que não haveria uma solução, e seria muito triste nos trancarmos de novo em nossos mundos particulares, cada um dentro de si, depois de tantas conquistas juntos.
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Abilio Diniz: Em uma das sessões de nossa terapia, algo diferente aconteceu. Eu estava ouvindo a Geyze explicando o que sentia, o que pretendia com a nossa relação, o casamento, os filhos. De repente percebi como eu poderia lutar contra os planos dela, se era ela que estava correta. Eu sempre corri muito atrás do que eu queria, mas a vida me deu a chance de não estar mais sozinho e eu precisava me equilibrar com os projetos de quem estava comigo. Afinal, agora esse projeto não era só dela ou meu, era nosso. Ela estava falando de nós, eu concordei em formarmos uma família sem saber exatamente o que essa vida me reservava aos 63 anos de idade. Me abri para confiar em nós, me abri para me reinventar.
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Geyze Diniz: Primeiro fomos morar juntos. Depois de quase três anos, Abilio em uma de nossas viagens a trabalho a Paris me pediu em casamento num de seus restaurantes favoritos. Estávamos só nós dois, e embora pareça uma atitude usual, este foi um dos momentos mais marcantes da minha vida, pois aquele pedido não significaria apenas uma celebração ou uma festa, mas um marco, uma mudança de fato, de tudo que viria pela frente. A partir daquele momento passaríamos a ser uma família.
Abilio Diniz: Foi em setembro de 2004, nós nos casamos em dezembro. Nosso casamento foi um momento de renovação para mim e foi a concretização de algo muito planejado e desejado por mim e pela Geyze. Subimos ao altar com a música "Como É Grande o Meu Amor Por Você" e ali confirmamos essas palavras. Estávamos vivendo de fato um grande amor. Achava que meu momento como marido e pai tinha acabado, mas não, estava começando um novo jeito, um jeito diferente, um jeito especial.
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Geyze Diniz: Nosso casamento sempre foi repleto de momentos muito bons, mas como qualquer relação, tivemos também fases desafiadoras.
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Uma das coisas que nos ajudou a superar as dificuldades foi a fé que temos em Deus e o quanto isso é forte pra nós. A nossa capacidade de conversar e o respeito que temos um pelo outro e por nossas opiniões também foram outros fatores determinantes. Desde o começo do nosso relacionamento, desde o início eu reforcei com o Abilio que na empresa ele era "o cara" e eu uma funcionária. Tudo certo com isso. Lá ele poderia ser 99% e eu 1%, mas em casa, na nossa vida pessoal, éramos um casal, 50, 50. Onde decidiríamos juntos o que fosse relativo a nós e assim foi, e é, até hoje. Isso nos permitiu separar as pessoas jurídicas das pessoas físicas e podermos viver nosso amor com todos os espaços para opiniões. Um fato muito marcante na nossa trajetória foi um episódio ligado a negociação do Grupo Pão de Açúcar com o Casino. Os últimos anos dessa negociação foram marcados por muita angústia e dúvidas e só saímos bem dela porque tínhamos bases fortes consolidadas na nossa vida pessoal, nos nossos valores, e volto a dizer, na fé que temos em Deus.
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Um dia durante esse período, lembro de olhar para o Abilio e dizer uma frase que é atribuída a Einstein a qual eu gosto muito: "Não adianta fazer a mesma coisa esperando resultados diferentes". Precisamos mudar o jeito que estamos fazendo. E foi por ele sempre levar em consideração as minhas opiniões que conseguimos mudar a rota e sair daquele círculo vicioso e concluirmos com sucesso aquela negociação.
Abilio Diniz: Ao longo da minha vida passei por situações estressantes e desgastantes. O que mais me marcou nestes momentos foi a solidão. Quando olho para trás lembro de contar azulejos enquanto nadava na piscina para tentar me distrair e chegar em casa e não ter ninguém com quem conversar. O que mais me assombrava eram os fantasmas da madrugada. Com insônia crônica, passava as noites acordado pensando nos piores cenários. A presença da Geyze na minha vida é marcante. Nesse momento crítico da minha vida profissional, já ao lado dela, a solidão foi substituída por longas conversas na praia de mãos dadas, troca de conselhos sempre apoiados na experiência de negócio dela e muito companheirismo.
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Geyze Diniz: Aprendizado constante é uma coisa que ao longo da nossa trajetória eu sempre admirei muito no Abilio, a vontade dele em ser um eterno aprendiz, como ele costuma dizer. Eu ainda trabalho, tenho projetos em progresso, conquistei muito do que queira profissionalmente e quero ir mais longe. Mas eu não esperava que teria uma vida tão feliz equilibrando tudo: maternidade, casamento, trabalho e projetos pessoais. E que seria assim que eu viveria a minha melhor vida. Quando eu olho para trás são 20 anos de relacionamento. Não teve nenhum momento que eu penso que não valeu a pena Nós crescemos muito juntos e ainda aprendemos todos os dias.
Abilio Diniz: As boas relações te trazem uma qualidade de vida maior e você tem que estar aberto. Hoje me relaciono melhor com meus filhos mais velhos, com toda minha família, com as pessoas que passam pela minha vida. Estar presente é estar comigo, é estar aberto para o outro, para conhecer os outros.
Geyze Diniz: Eu acho que a nossa história mostra que é possível. Apesar de todas as diferenças e dos objetivos pessoais, é possível se abrir para relações profundas. Estar aberto pra conhecer e respeitar o outro pode transformar nossas vidas. Transformou a minha e a do Abilio.
Abilio Diniz: Eu te amo.
Geyze Diniz: Eu te amo.
Abilio Diniz: Porque eu te conheço.
Geyze Diniz: Porque eu te conheço.
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Satyanatha: Chegamos ao fim da história da Geyze e do Abilio. A história deles é marcada por uma série de ousadias por parte dos dois. Ambos romperam os próprios padrões. Quando eles se encontraram, o Abilio talvez estivesse um pouco cansado da pessoa que ele era com aquela rotina e relacionamentos superficiais. E às vezes, quando a gente está pronto pra se transformar o outro vira um catalisador da nossa mudança. O Abilio foi abrindo a porta para a Geyze entrar na medida que ele conseguia, porque a coragem é algo gradual. Eles foram nessa dança até a sessão de terapia de casal quando o Abilio viu nela algo que ele também tem dentro de si, a garra e a convicção de perseguir os próprios sonhos. Num mundo em que os humores e a atração física oscilam tanto, a admiração é uma das qualidades que fortalecem o relacionamento duradouro. A gente não se transforma por qualquer um, é preciso amor e admiração para eu aceitar me transformar. Cada nova chance de amar é uma curva diferente de um espiral, não será uma repetição se a gente tiver abertura para amar e se transformar.
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Finalização: Nossas histórias não acabam por aqui. Acompanhe semanalmente novos episódios e confira nosso conteúdo em plenae.com e no perfil @portalplenae no Instagram.
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Para Inspirar
Ouça e leia o episódio da nona temporada do Podcast Plenae, conheça a história dos irmãos Filpi e como foi para sua família a transição de gênero de Miguel.
21 de Agosto de 2022
Leia a transcrição completa do episódio abaixo:
Miguel: Minha mãe me contou que, quando eu tinha 5 anos, eu falei pra ela: “Eu sou um garoto e eu gosto de menina”. Assim, na lata, com essas palavras. E ela respondeu: “Ah, é uma fase, vai passar.” Eu interpretei aquilo como uma rejeição. Várias situações desse tipo fizeram de mim uma pessoa muito revoltada. Eu nasci num corpo de mulher, mas sempre me encaixei melhor no mundo entendido como masculino. Aos 24 anos, eu decidi fazer a transição de gênero, e a minha vida mudou.
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Geyze Diniz: Miguel e Natália são gêmeos idênticos, pelo menos de acordo com a ciência, mas sempre se enxergaram completamente diferentes. Desde brigas na infância à estranhezas durante a adolescência, os gêmeos nunca se viram tão distantes e afastados por conta da maioria querer que eles fossem iguais. Mas a proximidade entre os dois só veio quando as diferenças começaram a ser reconhecidas. Miguel passou por uma transição de gênero e hoje é um homem trans que mostra que o respeito pode ser o maior elo de amor e união em qualquer relação. Conheça a história de mudanças, respeito e amor dos Irmãos Filpi.
Ouça no final do episódio as reflexões da Neurocientista Claudia Feitosa-Santana para te ajudar a se conectar com a história e com você mesmo. Eu sou Geyze Diniz e esse é o Podcast Plenae. Ouça e reconecte-se.
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Miguel: “Existe uma visão romantizada de que a relação entre gêmeos é a mais bonita que existe. As pessoas acham que, porque os irmãos nasceram juntos, eles vão se identificar muito e até sentir o que o outro sente. Comigo não foi bem assim. Eu não cresci sendo o melhor amigo da minha irmã, e nem ela a minha melhor amiga. Na verdade, eu tenho poucas memórias de uma boa convivência entre nós. Eu lembro mais das brigas.
Eu sempre me comparei muito com a Natália. A gente é muito parecido fisicamente e, pra mim, ela é uma referência do que tava certo. Desde pequena, ela seguia aquele modelo feminino estabelecido pela sociedade. Gostava de maquiagem, adorava arrumar o cabelo, fazia a unha. Já eu jogava bola e não gostava de roupa apertada. Eu detestava ter o cabelo comprido, mas não cortava, porque morria de medo da minha mãe ficar triste. Meus pais nunca me falaram nada, mas eu sentia que eles queriam que eu fosse um pouco mais parecido com a Natália. A presença da minha irmã era um constante lembrete de que tinha alguma coisa errada comigo, só que eu não sabia o que que era.
Natália: Eu tive uma infância tranquila, sem grandes preocupações comigo mesma. Mas o meu irmão, não. Desde pequenininho, ele era bravo, agressivo com todo mundo, principalmente comigo, seu saco de pancadas. Eu lembro que a gente tinha uns 10 anos e alguém chamou ele de “moleca”. Ele ficou transtornado de um jeito, que eu não entendi o tamanho da revolta.
O Miguel explodia por causa de coisas que eu considerava muito pequenas, tipo se arrumar para uma festa. Teve o casamento de um primo que ele fez um escândalo porque ele não queria colocar um vestido. Ele chorava e falava: “Eu não quero arrumar o cabelo, eu não quero pôr essa roupa”. Ele tava muito incomodado, mas não sabia se comunicar direito e não sabia comunicar o que tava sentindo. Depois de muita insistência nossa, ele finalmente se vestiu e a gente acabou indo pro casamento. Mas, dava pra ver que ele estava muito triste.
Em casa, o Miguel era naturalmente o centro das atenções, porque ele peitava os meus pais em relação a tudo. Questionava, literalmente, qualquer ordem. Hoje eu vejo com clareza que a minha mãe e meu pai sentiam que precisavam dar mais atenção pra ele. Mas, quando eu era menor, interpretava essa preocupação como preferência. Eu achava que o Miguel era o filho mais amado e eu acabava me sentia meio sozinha, sabe? Escanteada. Pra não criar mais problemas na família, eu engolia os sapos e obedecia tudo o que meus pais mandavam, mesmo sem concordar. Eu falava sim pra todo mundo, menos pra mim.
Miguel: Quando a gente tinha 16 anos, a Natália e eu fizemos intercâmbio pros Estados Unidos, cada um pra um lugar.
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Eu já tinha entendido que eu me sentia atraído por mulheres. Mas, mesmo assim, eu queria desesperadamente me encaixar na sociedade normativa. No Brasil, eu tentava esconder o óbvio e levava uma dupla vida. Na escola e na família, eu tentava disfarçar que gostava de meninos. Cheguei até a ter dois namoradinhos, por livre espontânea pressão social. Foi horrível, horrível. Era um sacrifício beijar na boca deles, era um sacrifício falar que eu tava namorando um cara.
Aí, quando eu cheguei na escola americana, eu ouvi dos amigos: “Mas por que você tá mentindo pra gente? Não tem problema nenhum você gostar de mulher”. Aquele acolhimento foi libertador. Eu me senti muito à vontade e decidi que eu não ia mais mentir. Ainda nos Estados Unidos, eu telefonei pra Natália e falei: “Ná, preciso te contar uma coisa. Eu sou lésbica”. Ela reagiu com naturalidade, porque na verdade ela já tinha percebido.
Assim que eu cheguei no Brasil, dei a notícia pro resto da família. O meu pai foi bem de boa, falou que pra ele o importante era eu ser feliz. Minha mãe começou a chorar e disse que tinha expectativas pra mim. Eu respondi: “Mãe, a sua expectativa é casamento? É filho? Eu também quero casar e ter filhos”. Até que ela aceitou rápido, assim. Em pouco tempo eu já tava apresentando a minha namorada pra família. Tirei um “pesaço” das costas.
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Eu passei no vestibular de engenharia, mudei de cidade, cortei o cabelo e aí comecei a comprar roupas na sessão masculina. Aí eu pensei: “Beleza, resolvi meu problema. Sou lésbica, e é isso”. Só que não foi o que aconteceu. Eu ainda não me sentia nada bem, continuava me sentindo deslocado. E eu odiava me olhar no espelho, odiava meu corpo, odiava não ter barba. Os seios, então, eu não suportava. Pra esconder, eu apertava tanto o top, que me machucava. Eu não gostava de entrar no banheiro feminino, e não gostava de ter voz fina. Bom, enfim, eu não era mulher.
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Lá pelos meus 22 anos, eu mergulhei numa depressão. Passei uns dois anos pra baixo, assim, sem ver graça em nada ao meu redor. Eu já tava conformado em levar uma vida inteira infeliz, até que um telefonema em 2019 mudou a minha vida. Uma amiga me convidou pra ir a um bar com mais gente, e aí entre elas um boy que eu não tinha ideia de quem era. Eu detestei saber que um cara ia junto. Eu tinha completo horror a homem, odiava, assim, gratuitamente. Acho que Freud explica, né? Hoje eu entendo que eu sentia inveja deles.
Eu não tinha vontade nenhuma de sair de casa, mas acabei indo ao bar. Quando eu cheguei no rolê, a minha amiga falou: “Oh, só pra você saber, tá, ele é um cara trans”. Nossa, a minha cabeça bugou na hora. Eu falei: “O quê??”. Eu botei esse cara na parede e disse: “Pode me explicar tudo!”. Depois que eu fui saber que era o Luca Scarpelli, ele era um dos poucos youtubers que produzia vídeos sobre o universo trans.
O Luca me falou sobre o trabalho, sobre a família, sobre os sentimentos dele. E eu me identificava com cada frase que ele falava. Ele parecia um clone meu que tava feliz e bem resolvido. Eu fiquei tão alucinado, que fui embora do bar e passei 3 dias trancado em casa, pesquisando sobre transição de gênero e chorando horrores. Eu sabia que isso existia, só que até então era uma coisa muito distante do meu universo, e eu não conhecia ninguém que tivesse feito. Bom, procurei ajuda psicológica e médica e, aos 24 anos, comecei o meu processo de transição.
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Natália: Eu fui a primeira pessoa da família pra quem o Miguel falou a novidade. Eu não fui pega de surpresa quando ele contou que era lésbica. Mas, a transição de gênero confesso que eu não tava esperando. Eu não sabia nada sobre desse assunto e talvez eu nunca vá entender completamente o que é. Mas eu sabia que não precisava entender, eu só precisava respeitar. Então, quando o Miguel me falou, eu respondi: “Olha Mi, eu não sei o que você tá falando, não tenho ideia, mas vambora. Se é o que vai te fazer feliz, pra mim é a única coisa que importa. Então, conta comigo pro que você precisar”. Pros meus pais o anúncio foi um choque…
Miguel: Quando uma pessoa faz uma transição de gênero, quem tá ao redor dela transiciona junto. Eu sabia que eu podia perder os meus pais pra sempre, que talvez eles não fossem aceitar a minha decisão. Só que eu tava tão feliz, eu tinha tanta certeza de que era a coisa certa, que nada, nenhum obstáculo ia me impedir de concretizar o meu plano. Eu passei 24 anos sendo triste e solitário. Não tinha sentido eu passar o resto da vida me sentindo miserável em função do que outras pessoas queriam pra mim.
A minha terapeuta resolveu chamar os meus pais e a minha irmã no consultório, pra uma sessão em família. A minha mãe só chorava, se lamentava que eu ia me mutilar. Quando a psicóloga perguntou o que o meu pai pensava sobre mim, ele respondeu que sentia decepção, que era um desperdício eu não poder engravidar. Ele disse que nunca me enxergaria como um filho. Foi difícil ouvir essas palavras, só que ao mesmo tempo eu pensava: “Meu pai e minha mãe nunca me aceitaram mesmo. Que se dane, eu vou em frente de qualquer jeito”.
Natália: Meus pais não disseram exatamente o que Miguel queria ouvir. A palavra “decepção” foi muito forte, mas eu interpretei que o que meu pai tava falando era como médico, um médico que tava preocupado acima de tudo com a saúde do filho. Ele tava inconformado que o meu irmão tomaria hormônio e acabaria com o corpo dele. Eu lembro que o meu pai falou: “Mas ele tem uma saúde perfeita e quer jogar fora por causa de um pensamento temporário, de uma preocupação estética?”. Então, eu acho que meu pai usou a palavra “decepção” nesse sentido, não que ele tava decepcionado com o Miguel enquanto pessoa.
Meu pai perguntava pro meu irmão: “Você não tá satisfeito em saber quem você é por dentro? Precisa mudar por fora também?”. Acho que o medo dos meus pais era que o Miguel se arrependesse e não pudesse mais voltar atrás da decisão. Mas, eles acabaram aceitando que o meu irmão já tinha idade suficiente pra tomar as suas próprias decisões.
Miguel: Depois dessa sessão, eu passei mais ou menos 1 ano falando bem pouco com os meus pais. Eles nunca me abandonaram, mas ficaram super tristes. A gente meio que entrou num acordo de que eu precisava de apoio, inclusive financeiro, e eles precisavam de um tempo pra processar o que tava acontecendo. Eu comecei a fazer terapia hormonal com testosterona e o meu corpo foi mudando. Depois de um ano, eu fiz a mastectomia para remover os seios. E foi aí que meus pais compreenderam que não se tratava de uma fase, mas sim um caminho sem volta.
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A minha mudança não foi só externa. Foi inclusive, principalmente, interna. Eu era muito arisco, eu tinha pavor de crítica, assim. Qualquer pessoa que tentasse estragar o pouco de felicidade que eu sentia, levava uma patada. Hoje é raro você me ver de cara fechada, de mau humor. Eu sou muito confortável na minha pele, e muito mais tranquilo, mais feliz, mais calmo. O relacionamento com a Natália melhorou muito. A gente descobriu, no caso, que a conversa é um método bem melhor de comunicação do que o grito e a porrada. Eu não conseguia ter uma boa relação com ela e com os meus pais, porque eu achava que parte da minha tristeza era o fato de que eles não acolhiam como eu era.
Coitados, pai e mãe não têm manual de instrução. E mudança de gênero não é exatamente uma coisa simples de se entender. Meus pais não tinham informação sobre esse assunto e só queriam me proteger.
Natália: Eu errei muitas vezes o pronome masculino depois que o Miguel fez a transição. Ele ficava bravo e achava que eu tava querendo boicotar o processo dele. Mas, na verdade, era só uma questão de hábito. Depois que ele deixou crescer a barba, sua voz engrossou e ele ganhou uma feição masculina, aí ficou fácil chamar ele de Miguel. Eu comecei a enxergar ele como um homem mesmo e hoje é impossível usar o pronome feminino. Agora só tenho que aguentar minhas amigas falando: “Ai, como o seu irmão é lindo! Ele ficou mais bonito como homem do que como mulher”.
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No segundo que o Miguel decidiu fazer a transição de gênero, eu, imediatamente, consegui ver que a impaciência, a intolerância e a agressividade dele ficaram pra trás. Eu também comecei a fazer terapia e aprendi a me posicionar, aprendi a parar de me anular só pra agradar os outros, inclusive o Miguel. A gente teve uns períodos afastados, com pouca conversa, mas hoje graças a Deus a nossa relação é bem melhor. No fim das contas, a gente sempre tá ajudando um ao outro.
Miguel: Quando a minha família começou a respeitar o pronome masculino, eu pensei: “Quer saber? Tá bom, não preciso de mais que isso.” Uma coisa é chamar pelo nome que eu escolhi, outra é de fato acreditar que eu sou um homem. Mas tudo bem, já tá ótimo que eles me respeitem.
Se tem duas pessoas no mundo que viraram militantes da transição de gênero foram os meus avós. Eu tenho certeza que o meu avô sente no fundo do coração dele que eu nasci homem e nunca fui mulher. Mesmo ele sendo de uma geração passada, eu sinto que ele não força nada a barra quando me chama de Miguel. A minha avó, então, ameaça bater em quem erra o pronome comigo. Eu tinha muito medo, muito medo de como eles iam reagir quando eu mudei de gênero. Mas eles aceitaram com mais facilidade do que todo mundo. No fim das contas, o acolhimento que mais me importa é o da minha família.
A mensagem que eu tenho pra passar, tanto pras pessoas cis quanto pras pessoas trans, é que a vida é uma só. Na hora da morte, o que vai importar de fato é o quanto você conseguiu ser feliz, o quanto conseguiu amar, o quanto se sentiu confortável na própria pele. Eu não vou falar que a transição de gênero é um processo fácil. Só que nada, nada, foi mais difícil pra mim do que passar 24 anos sendo quem eu não era, tentando interpretar o personagem que a sociedade esperava de mim. Pessoas bem resolvidas com elas mesmas são melhores pra sociedade. A gente propaga felicidade quando a gente é feliz.
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Claudia Feitosa-Santana: Os gêmeos idênticos Miguel e Natália compartilham conosco a transição de gênero dele e como as relações familiares transacionaram junto.
Como ele, quando descobrimos que o que parecia intransponível, além de insuportável, era apenas uma pedra no meio do caminho, precisamos de apoio para retirá-la, pois somos seres sociais e é extremamente importante vivermos juntos - em família, entre amigos e, inclusive, no meio da multidão. Por isso, pessoas podem ser sentidas como se fossem obstáculos. Mas podem também ser acolhimento. O que precisamos é ter a consciência da relacionalidade, o fato de que estamos inter-relacionados uns com os outros, logo: intersomos.
E, assim, no meio do caminho havia um outro... um outro que nos ama, um outro que você empatiza, um outro que eu respeito, e por aí vai. Pedras que se transformam em companhias, com as quais nos sentimos confortáveis em nossa própria pele.
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Geyze Diniz: Nossas histórias não acabam por aqui. Confira mais dos nossos conteúdos em plenae.com e em nosso perfil no Instagram @portalplenae.
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