Para Inspirar

José Papa Neto em "As linhas de chegada da vida"

É possível aprender mesmo com as adversidades? Para o publicitário José Papa Neto, sim. Confira seu episódio no Podcast Plenae

27 de Setembro de 2020


Leia a transcrição completa do episódio abaixo:

[trilha sonora]


José Papa Neto: Eu sempre fui uma pessoa muito espiritualizada e eu não estou falando de religião, eu falo de intuição, de uma conexão que eu sinto com algo maior, com o universo mesmo, algo que me faz entender que sempre existem lados muito positivos em tudo. Isso não quer dizer que eu não tenha pensamentos difíceis, preocupações, negatividade - todo mundo carrega esse tipo de sentimento dentro de si e eles interferem mesmo diretamente na vida que temos. Mas sinto que os momentos difíceis, eles guardam também descobertas muito positivas. Eu digo isso porque tive dois grandes eventos que transformaram a minha vida e acho que, de certa maneira, tudo neles é conectado. E longe de tudo isso ser ruim. [trilha sonora] Geyze Diniz: Quando ouvi o Zizo contando sua história pela primeira vez, fiquei impressionada com sua capacidade de resiliência e na importância que a determinação pode ter no processo de recuperação de uma pessoa. E pensei que essa história poderia influenciar e dar força para muita gente. No final do episódio, você ouvirá reflexões do doutor Victor Stirnimann para te ajudar a se conectar com a história e com você mesmo. Eu sou Geyze Diniz e esse é o Podcast Plenae. Aproveite este momento, ouça e reconecte-se. [trilha sonora] José Papa Neto: Na minha família, existia uma tradição das gerações seguintes carregarem um legado que havia sido construído por meu avô. A nossa história é aquela clássica, do imigrante que começou do zero, construiu uma história linda. Eu era criança e já observava de longe muitos dos problemas que se amontoavam, e quando estava começando a minha vida adulta, a situação chegou realmente ao ápice. Eu tinha 23 anos e era o final dos anos 90 quando o grupo do meu avô quebrou, era um banco e outros negócios que foram liquidados faliram. Nós éramos muito unidos até então e, quando isso aconteceu, passamos por uma desagregação absoluta, de amor, de carinho, de respeito e também patrimonial. Ninguém estava preparado pra passar por esse processo. [trilha sonora] Embora eu não trabalhasse lá, eu sempre tive essa expectativa e tinha projetado minha vida toda nisso. [trilha sonora] A essa altura, eu já tinha construído um personagem, né. A gente acaba cultivando muitas dessas características que a gente vive desde criança. Mas, a partir daí, eu precisei me rever profundamente, tanto do ponto de vista do que eu queria ser, como do ponto de vista do que eu queria fazer. E no momento em que tive que correr atrás de tudo mesmo para sobreviver, eu percebi a amplitude que essa vivência dá e eu me tornei muito mais consciente do que é uma vida real: ralar, suar, trabalhar, queimar o chão. E aí veio o entendimento que eu só consegui me reinventar dada a circunstância do meu privilégio. Isso nunca mais sairia da minha cabeça. [trilha sonora] Enquanto eu construía este caminho próprio a partir do meu trabalho, sem o compromisso de assumir o negócio da família, eu entendi pela primeira vez o meu desejo de encontrar um caminho com mais significado do que ser apenas bem-sucedido, algo que tivesse impacto mesmo no mundo. Essa seria minha busca a partir dali. E esta também é a passagem da minha trajetória em que começo a entender que o pior momento, ele pode, realmente, muitas vezes, aflorar o melhor que tem em você. Eu só não imaginava como essa forma otimista seria ainda mais importante adiante, quando eu enfrentei de verdade os dias realmente mais difíceis da minha vida.  [trilha sonora] Há dois anos, eu estava numa fase em que tinha decidido encontrar esse propósito de que acabei de falar, imediatamente após deixar o posto de CEO do Festival de Cannes, de publicidade, de onde eu saí muito cansado e estressado. Era o fim de um trabalho pesado de reposicionar uma marca global nos anos que até então foram os mais difíceis que eles tinham enfrentado. Conseguimos, mas foi muito intenso e eu saí com uma sensação de injustiça enorme e de que era hora de descomprimir mesmo um pouco e focar a energia em encontrar um novo rumo. E com tudo isso em mente e de férias aqui no Brasil, fui jantar com um amigo, com quem eu queria conversar sobre essa vontade de encontrar um trabalho que realmente fizesse sentido. Eu já estava fora há cinco anos e eu falei que, no dia que voltasse para o Brasil, eu queria me empenhar em algo que traduzisse a minha essência em projetos de valor, que impactassem realmente o país e que fizessem a diferença. Eu voltei pra casa caminhando e eu estava com a cabeça cheia de ideias, fervilhando da conversa que acabava de ter.  [trilha sonora] Durante a madrugada, eu levantei não me sentindo bem, eu estava muito enjoado e com muita dor de cabeça e, quando cheguei na sala, eu desmaiei. E eu não lembro desse momento, são relatos dos meus filhos até que contam, porque quando eu caí, eu bati a cabeça muito forte e, ainda que eu não tivesse nenhum sinal exterior, por dentro, eu havia fraturado meu crânio de ponta a ponta. [trilha sonora] Sinto que tudo é conectado e não consigo olhar para trás, para o momento deste acidente, e não pensar que ele tem relação também com tudo que eu trazia comigo. Por isso eu falo acidente, mas eu acho que não foi. Na verdade, foi uma sucessão de tudo o que poderia dar errado e naquele momento deu. [trilha sonora] No momento em que acordei do desmaio, sem lembrar de ter ficado desacordado, eu tive um período rápido de lucidez, mas eu resolvi ir dormir de novo. Mas eu não consegui, porque estava com uma dor de cabeça lancinante, um tipo de dor chamada de "suicide headache". É um negócio indescritível. Eu comecei a vomitar muito e, quando voltei a mim de verdade, eu já estava no hospital e estava todo mundo lá. [trilha sonora] Os médicos, eles imediatamente, fizeram todos os exames, uma ressonância e uma tomografia, e fui direto para uma mesa de operação para fazer uma craniotomia. Eles abrem a cabeça, tiram um pedaço importante do crânio para drenar, depois, reconstroem e então, drenam o hematoma e a hemorragia, como se fosse um AVC. É uma das cirurgias cranianas mais emergenciais e perigosas, mas eu acordei bem. Eu estava no hospital, estava na UTI, mas me sentindo bem. A dor de cabeça, ela tinha cessado e eu estava com um senso de renovação de espírito, leve, entendendo que eu tinha que viver o presente.  [trilha sonora] Eu fiquei um mês me recuperando em São Paulo, eu morava em Londres na época, com a minha ex-mulher e meus três filhos. Depois desses 30 dias, os médicos liberaram a gente a voltar para a Inglaterra. Tudo certo, até que, no segundo dia lá, eu comecei a sentir de novo muita dor. [trilha sonora] Com aquela mesma intensidade de quando eu bati a cabeça.  [trilha sonora]

Eu senti um desespero mesmo, porque eu não tinha o meu médico, não sabia pra onde ir, se podia ser alguma coisa ligada ao procedimento pelo qual eu tinha passado. E aí eu comecei uma corrida por uma indicação. Falo com um médico, com outro, até conseguir uma consulta. Quando finalmente eu fui consultado, o médico me encaminhou para uma tomografia. Eu voltei do exame e já estava com uma neurocirurgiã ao lado do neurologista. E ela olhou para mim e ela falou: "Você tem que operar agora, é um negócio seríssimo, é uma infecção chamada Osteomielite". [trilha sonora] A médica me explicou que o pedaço do crânio que eles tinham tirado para drenar os hematomas havia infeccionado e por isso eu tinha que abrir a cabeça de novo imediatamente. Eles me pediram pra assinar um termo de responsabilidade, porque havia risco de morte. Assinei e lá fui eu outra vez.

Outra craniotomia, retiram de novo um pedaço importante do meu crânio, mas agora o pedaço foi jogado fora, descartaram toda a parte que estava comprometida pela bactéria. Agora eu precisava encarar por um tempo a vida sem esse pedaço importante da minha cabeça e do meu crânio. Passei uma semana na UTI me recuperando e, quando voltei para o quarto, logo na primeira noite veio de novo aquela dor de cabeça intensa. A médica voltou no dia seguinte, consternada, com um olhar super pesado, e falou: "Olha, a gente vai ter que operar de novo". Eu tive um problema ainda mais grave dessa vez, chamado empiema subdural, que é o acúmulo de pus entre o tecido que cobre o cérebro e o crânio. Essa infecção evolui super rápido e a única forma de drenar é abrindo. Crânio aberto outra vez, outro período na UTI, vivendo um dia por vez, consciente da ideia da morte, porque a infecção não cedia. 

Duas semanas depois da terceira operação, a dor continuava muito forte e a médica falou de novo, em tom grave, que lamentava, e que ela tentaria um último antibiótico, dessa vez muito mais potente, mas que ela tinha receio do impacto no meu organismo, mas seria a última tentativa. Porque se não fizesse efeito, ela teria que operar outra vez.  [trilha sonora] No dia seguinte, a infecção, ela baixou um pouco, e é incrível, a esperança, ela voltou e dia após dia eu fui melhorando. E nesse processo de cura, veio com tudo na minha mente essa jornada que eu estava buscando, de uma conexão profunda com o que eu quero fazer. Eu comecei a me energizar e a me sentir muito otimista outra vez. Eu senti o tempo todo que eu precisava conectar minha mente ao meu coração, fazer meu corpo reagir a tudo que estava vivendo. 

[trilha sonora] E como eu amo narrativas, eu crio esse storytelling, fiz o que sempre faço: eu projeto meus sonhos e realmente vou atrás. Então, lá mesmo no hospital, eu me inscrevi na maratona de Chicago, que seria realizada dentro de um ano. Era um plano e tanto na condição que eu estava. Porque dessa vez, realmente, eu senti a morte bem perto, parecia muito assustador, mas me deu muita serenidade, muita paz. Essa parte é incrível, eu não estava desesperado. Eu estava com tanta dor que eu penso que eu estava mais preocupado em me livrar dela do que com os riscos do que estava enfrentando. Acho que são nesses momentos extremos que a gente reconhece o que nos faz humanos: a nossa essência. E neste momento chave da vida, que eu vi que eu estava sereno. Isso me permitiu construir e reconstruir esse meu plano de vida, pessoal e profissional. Na cama do hospital, me vendo cruzar a linha de chegada da maratona de Chicago, isso foi um combustível enorme assim. Foi assim que eu comecei a me planejar.  [trilha sonora] Depois de 50 e poucos dias internado, eu tive alta, eu passei mais um mês em casa me recuperando, até que no fim de novembro de 2018 eu comecei a colocar os treinos que eu tinha montado durante a recuperação em prática. Eu fazia esse movimento de uma maneira totalmente intuitiva, porque eu realmente acreditava na minha recuperação. E esse projeto, ele me dava uma energia maior, eu sentia uma conexão entre mente e corpo que é super poderosa. De novo, o pior momento, ele mostrou pra mim que ele faz aflorar o melhor que a gente tem. [trilha sonora] Depois de três cirurgias de alto risco, eu voltei para uma rotina mais normal de vida, avançando mesmo na direção do que eu busco. A consciência da morte é uma energia enorme e a minha experiência fez eu me sentir muito mais conectado e autêntico com os meus sentimentos, com a condição humana. Não tinha mais como olhar pra minha mente sem a conexão com o meu coração. Em outubro de 2019, um ano depois da terceira cirurgia, eu realmente corri a maratona de Chicago, como eu tinha planejado. E pouco antes, em março, eu tinha dado um passo importante na direção do propósito profissional que eu buscava. Além de me inscrever na corrida, no hospital também tinha me inscrito na Singularity University. Foi lá, que eu fui apresentado ao francês Olivier Laouchez, meu sócio na Trace Brasil, um projeto que nunca imaginei que iria liderar: uma plataforma de mídia, educação e empoderamento de origem afro e voltada principalmente à população negra. E assim, começou a ganhar forma a busca que tomava meus pensamentos no momento em que eu sofri o acidente. E quem podia imaginar que essa intuição anteciparia o maior movimento de conscientização racial no mundo.  [trilha sonora] Por ter perdido um pedaço do meu crânio, eu pude, por um bom tempo, sentir o meu cérebro pulsando com os meus dedos. Isso podia ter sido um momento de tristeza, frustração, até lembrando que eu vi a morte de perto, mas a essa altura eu brincava com os meus filhos colocando um sabonete, nesse buraco enorme na minha cabeça. Eu trago comigo o entendimento de como são conectados o meu coração e a minha mente e de como essa pulsação conjunta de ambos é capaz de dizer quem sou, a pessoa e o profissional que eu venho construindo. Eu acho que toda essa corrida pela vida – um tempo de alerta, de construção e de muita resiliência – tinha ainda essa última linha de chegada: faltava a quarta cirurgia, eu fiz essa no último dia 3 de fevereiro desse ano (2020). O objetivo agora foi colocar uma prótese craniana e fechar esse buraco deixado pelo pedaço de crânio que eu perdi com a infecção. A minha cabeça, ela tá de novo fechada, mas a minha mente nunca teve tão aberta.  [trilha sonora] Victor Stirnimann: Ao contrário das aparências, a vida não é aquilo que acontece, mas o que você faz com aquilo que acontece. É assim que se escreve uma boa história, daquelas que tem muito a nos ensinar. Desde sempre, nossos heróis foram aqueles que serviram de exemplo, mostrando como nossos limites são apenas as certezas que trazemos na cabeça. Por isso o destino às vezes, nos tira tudo, ou quase tudo, para que com o resto se percam também as certezas e com elas, quem sabe, o que nos impede de encontrar uma consciência maior ou um caminho melhor. Na verdade, toda crise é um convite e um aviso: é preciso mudar. Mas mudar de que jeito, se não estamos prontos, não sabemos como e nem onde vamos parar? É neste momento que descobrimos que tudo isso é um presente, perder o chão, quebrar mesmo a cabeça, abandonar a velha identidade e seguir abraçando o que é novo e arriscado e nos deixa eternas crianças. Quando você era criança, inventava suas próprias respostas, mas quando você muda, precisa voltar a inventar as metas, as histórias, você. O Zizo, que é assim que os amigos chamam José - e ele é meu amigo - é um grande inventor, mas fui testemunha de tudo que ele conta e de como é mágico sentir um coração e uma cabeça criando juntos.  [trilha sonora] Geyze Diniz: As nossas histórias não acabam por aqui. Acompanhe semanalmente nossos episódios e confira nossos conteúdos em plenae.com e no perfil @portalplenae no Instagram.  [trilha sonora]

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Para Inspirar

Adriana Barbosa em “Quem me vê não enxerga as mulheres que vieram antes de mim”

Ouça e leia o episódio da nona temporada do Podcast Plenae, conheça a história da empreendedora Adriana Barbosa, que em busca da sua própria identidade, ajudou milhares de outras pessoas.

11 de Setembro de 2022



Leia a transcrição completa do episódio abaixo:


Adriana Barbosa: Eu sinto que a minha família evitava falar sobre a questão racial, porque esse assunto de alguma forma trazia um certo sofrimento e até dor. Isso é compreensível paras três gerações de mulheres ao meu redor: minha bisavó, minha avó e minha mãe. Há 30, 40 anos atrás, as referências positivas de ser negro quase não existiam. Apesar de não ser fácil, hoje eu percebo que uma forma de lidar com esses preconceitos é falar sobre eles desde cedo.


[trilha sonora]


Geyze Diniz: Com apenas 22 anos ela criou uma feira para reunir empreendedores negros num dos bairros mais ricos e maioritariamente branco de São Paulo. Naquele momento ela  nem imaginava que tal mobilização iniciaria o maior evento de cultura negra na América Latina, a Feira Preta. Adriana Barbosa é uma empreendedora, sonhadora e acima de tudo fazedora. Reconhecida mundialmente por seu trabalho e impacto na sociedade, a menina de Barretos mostra para nós e para o mundo como podemos ser ferramenta de mudança no contexto que estamos inseridos mesmo com tantas adversidades. Conheça a história de força, inteligência, perseverança de Adriana Barbosa. 

Ouça no final do episódio as reflexões da Neurocientista Claudia Feitosa-Santana para te ajudar a se conectar com a história e com você mesmo. Eu sou Geyze Diniz e esse é  o podcast Plenae. Ouça e reconecte-se 

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Adriana Barbosa: Eu cresci em uma família de matriarcado. Fui educada por bisavó, por avó, por mãe e eu sou a quarta geração, minha filha é a quinta geração. Pensa em uma família só de mulheres. A Regina, minha mãe, me teve muito cedo, aos 20 anos de idade. Meu pai nem chegou a me registrar no cartório, mas as lembranças que eu tenho dele nos meus primeiros anos de vida são esporádicas, mas com memórias bastante afetivas. Um presente de aniversário, algumas visitas, nada muito contínuo. Na verdade, quem ia me buscar na escola ou participar das reuniões era minha mãe ou até minha avó, a dona Naidê. 


A minha avó nasceu em Barretos, no interior de São Paulo, se mudou pra capital junto com a minha bisa, a dona Maria Luiza, em busca de uma vida melhor. As duas foram morar num cortiço no bairro da Bela Vista, a região conhecida por Saracura. Para pagar as contas, elas trabalhavam como empregadas domésticas, uma profissão que até hoje é muito comum entre as mulheres negras. A liberdade é muito recente para a população preta. Minha tataravó, dona Teodora, essa pegou o tempo da escravidão na cidade de Barretos. 


[trilha sonora]


Para vocês terem uma ideia, a minha mãe chegou a morar com a minha avó na casa dos seus patrões até que uma das minhas tias sugeriu levar a minha mãe para morar com elas e ter uma vida melhor. Esse ciclo de distanciamento não era uma novidade na minha família. A mesma dinâmica aconteceu com a minha avó, com a minha mãe, com meu irmão Douglas, comigo. Só o meu irmão Rafael, o caçula, que conviveu mais tempo com a minha mãe. 


[trilha sonora]


Com o apoio dos patrões, o Junior e a Elisa, que também se tornaram meus padrinhos, minha avó comprou uma casa no bairro da Saúde, na zona sul de São Paulo. Fomos todos morar com ela: minha bisavó, minha mãe, e eu e meus irmãos. Depois, nos mudamos pra um sobrado bonito, com três quartos, na Praça da Árvore, um bairro bem classe média. Era uma casa confortável, mas bastante simples, em comparação com as outras que cercavam a gente. 


Minha bisavó ficava em casa, era responsável por todos nós. Mas como ela era bem idosa, eu que levava os meus irmãos pra escola e ajudava eles na lição. Enquanto eu equilibrava esses pratinhos, tinha que lidar com todo o fato de ser uma criança negra crescendo em um bairro onde a maioria era branca. 


Apesar de não ser um bairro periférico, eu me sentia à margem o tempo todo. Na minha classe, mesmo sendo uma escola pública, só tinha mais um negro. Quando o assunto era namoro, era como se eu só pudesse ser aceita por ele. Eu nunca era escolhida, por exemplo, para dançar. Sabe aquelas festinhas, aqueles bailinhos? Pois bem, tava eu lá com a vassoura. Não me lembro de ter recebido um correio elegante na festa, a não ser os trotes das minhas amigas. 


Enquanto isso, nas horas em que a grana apertava em casa, a minha bisavó via o que tinha na despensa e se virava. Se fosse farinha, fubá, ovo e óleo, fazia um bolo pra vender. Se tivesse frango, preparava coxinha. A sala e a garagem viraram um pequeno restaurante durante um período. Minha bisavó era semianalfabeta, mas tinha muito tino comercial. Eu herdei dela a veia empreendedora.


[trilha sonora]


Minha família, tanto materna quanto paterna, nunca foi militante. A gente não falava de racismo ou coisa do tipo. Eu não vim de um ambiente com letramento racial. O foco era sobreviver da melhor forma possível. Foi na escola que eu me descobri preta, quando os colegas de classe se referiam a mim como “aquela garota negra”. Sim, eu me descobri negra pelo apontamento do outro.


A minha timidez crônica e a minha sensação de pertencimento não me fizeram recuar quando chegou a minha vez de enfrentar o mundo. O meu lema sempre foi: “Tá com medo? Vai com medo mesmo”. Trabalhar era um movimento natural pra mim. Eu não lembro de nenhum momento sequer em que as mulheres ao meu redor não trabalhassem. Eu usei a capacidade intelectual que as minhas antepassadas haviam transmitido a mim como uma herança: a habilidade de transformar escassez em abundância.


[trilha sonora]


Eu comecei a trabalhar aos 15 anos, em uma fabriqueta de fundo de quintal que fazia biscuit, pintando peças de artesanato. Também fui vendedora de roupa e lingerie, até conseguir um emprego na Rádio Gazeta. Naquela época, nos anos 90, as emissoras incentivavam seus ouvintes a irem até um lugar específico pra ganhar um adesivo. Eu era a aquela pessoa que colava o adesivo no carro. E o locutor sempre dizia ao vivo: “Passa lá que a Crioulinda tá adesivando os carros”.


No começo, confesso, isso me incomodava a forma como ele me chamava, mas depois eu entendi a origem dessa expressão e passei a não esquentar mais a cabeça. Eu sei que o tom pode parecer um pouco estranho, mas eu escolhi não discutir. Até porque eu já sabia que a resposta seria algo como: “mas eu estou te elogiando, afinal tu é uma crioula linda”.


[trilha sonora]


O melhor desse período foi conhecer outras meninas negras que trabalhavam na emissora, eram meninas pretas como eu, como a Zeila e a Bombom. Na passagem da adolescência pra vida adulta, elas e outras amigas foram essenciais pra mim. Afinal, eram mulheres impulsionando outras mulheres.


Esse também foi o período em que eu comecei a curtir as baladas blacks. Eu me tornei frequentadora dos bailes de casas como Blen Blen, Mood, Balafon, Sambarylove, Clube da Cidade, Radial. A cultura foi a porta de entrada para que eu compreendesse melhor o que significava ser uma mulher preta. E, como acontece com muitos de nós no Brasil, as minhas referências norte-americanas eram fortes. Eu conheci a história dos Panteras Negras, a vida do Malcom X e os filmes críticos do cineasta Spike Lee. 


Comecei a frequentar reuniões do movimento negro organizado. No começo, eu fui até radical. Eu só falava e pensava na cultura preta.. Virou uma espécie de obsessão, mas precisava ser assim. Era o tempo do videocassete e tinha uma locadora bem na frente da minha casa. Quando a minha avó me via chegando, dizia: “Lá vem a Adriana de novo com esses filmes de preto”.


[trilha sonora]


A música era outra aliada. Eu ouvia muito rap, R&B, soul music. Escutar Run-DMC, Wu-Tang Clan e Public Enemy fazia com que eu me sentisse parte de algo maior. Todo esse contexto me ajudou a entender a luta pelos direitos civis da população negra nos Estados Unidos. Me deu também pistas de como tudo isso se reproduzia aqui.


Foi nessa época que eu me aproximei do meu pai. Ele e toda a minha família paterna é de sambistas. Meu pai é um dos fundadores do Grupo Mé Menor, e ele ajudou a construir a comunidade do Samba da Laje, uma das mais tradicionais do samba paulista. A reaproximação com o meu pai marcou também a minha aproximação com a cultura afro-brasileira.


[trilhas sonora]


O meu desejo de enfrentar limites me levou a pedir demissão da Gazeta. Eu acabei indo trabalhar na gravadora Trama, como parte da equipe do Tadeu Negreiros, um dos poucos negros que ocupava um cargo de liderança numa grande gravadora. Eu fiquei perto de artistas que eu amava, como Cláudio Zoli, Leci Brandão, Jairzinho, Wilson Simoninha e a Luciana Mello. Aquilo pra mim não era um trabalho, era a realização de um sonho, que ajudava a fortalecer a minha própria autoestima. Só que, depois de dois anos, eu fui demitida, e fiquei sem o meu sonho.


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No primeiro mês em casa, eu entrei em depressão. Foram aquelas minhas amigas que me ajudaram a lidar com aquele sentimento de frustração, decepção e autopiedade. Depois de sair do banzo, o meu primeiro passo foi separar roupas bacanas pra tentar vender nas ruas e feiras da cidade. Esse era o meu método de “sevirologia”, a arte de saber se virar. 


[trilha sonora]


Minha parceira de sevirologia era a Deise Moyses, que vendia pastel na feira. Dessa experiência eu comecei a idealizar a Feira Preta, um evento pra valorizar produtos e serviços de empreendedores negros. 


A primeira edição da Feira Preta aconteceu em 2002. Eu tinha só 22 anos. A Deise e eu escolhemos a Praça Benedito Calixto, em Pinheiros, por ser um lugar aberto, bonito e acessível. Já tinha ali uma cena de feiras e mercados alternativos. Além disso, muitos jovens negros frequentavam o bairro pra ouvir música. Tinha também os negros da cadeia de produção das baladas, como DJs, hostesses, gente que trabalhava em bilheteria, chapelaria, técnico de som e de luz.


No dia da feira, eu pendurei faixas nas ruas pra sinalizar o local, ajudei a montar as barracas e varri o chão. Junto comigo estavam minha avó, meu avô, minha mãe, meus irmãos. Eu tinha medo que ninguém aparecesse e fiquei plantada em pé, na esquina da rua Teodoro Sampaio, olhando em direção à saída do metrô Clínicas. Até que eu comecei a ver mulheres, homens e crianças com tranças, black power e cabelos alisados. Gente com pele mais clara, gente com pele mais retinta, eita que era gente de tudo quanto era jeito. Sete mil pessoas parecidas comigo lotaram a praça, numa das regiões mais ricas e brancas de São Paulo. Foi ali que o sonho começou a se tornar realidade.


[trilha sonora]


A Feira Preta passou a ser realizada anualmente. Mesmo com muitos percalços, ela se transformou no maior evento de cultura e empreendedorismo negro da América Latina. Tem de tudo um pouco, de venda de roupas, acessórios, artesanatos, música, bate-papo, palestra, brinquedoteca, espaço saúde e bem-estar, eita que é muita coisa. A Feira Preta deixou de ser um evento de um único dia pra se transformar num festival com uma programação extensa, com atividades que ocorrem até fora da cidade de São Paulo.


[trilha sonora]


Hoje vivo de propósito, pode até soar estranho isso que eu to falando, mas é no sentido de trabalhar com aquilo que eu acredito e ser remunerada pra isso. A maioria das pessoas no Brasil não tem essa oportunidade. O meu propósito hoje é trazer equidade e processos mais equânimes pra população negra no Brasil. Nos últimos 30 anos, a gente avançou, mas ainda tem muito pra avançar. À medida que a população negra ascende, mais o racismo aparece. Com tudo que eu já fiz, se eu tivesse condições mais favoráveis, eu hoje seria rica. Mas eu sou uma mulher negra, e mulher negra no Brasil tá na base da pirâmide social e econômica. As mulheres negras são as que mais estudam, as que mais estão dentro do mercado de trabalho informal, as que mais empreendem, mas ainda estão na base da pirâmide. Por que? Eu sempre me faço essa pergunta. Por que? Por que ainda tem tanta diferença, se nós contribuímos tanto para o desenvolvimento desse país? 


Em 2021, a Feira Preta chegou na sua 19ª edição. A menina que eu fui não vislumbrava ser a mulher à frente de um empreendimento social que já recebeu mais de 200 mil pessoas. Mas ela é. O impacto da Feira é muito maior do que o esperado por mim e pela minha parceira em 2002. E aí é que está: tem coisas que simplesmente precisam existir. Eu me vejo como uma interlocutora, uma fazedora, alguém que, com o tempo, a coragem e muitos tombos, topou desbravar um campo frutífero ao lado de outras pessoas. 


Quem me vê hoje não enxerga todas as mulheres que vieram antes de mim e sustentaram a minha caminhada até aqui. Eu chamava a minha avó de sócia, porque a aposentadoria dela foi a grande financiadora da Feira Preta no início. A minha vó me ajudava até pagar a passagem de ônibus. A minha mãe, eita, que essa pagou muita coisa também. A forma como tomo decisões, como insisto naquilo em que acredito, como crio, ou até como busco soluções e até mesmo a minha mania de ser forte o tempo todo… Tudo isso é herança. E, por acreditar nesse legado, tenho trabalhado para transformar a sobrevivência negra em uma vida cada vez mais livre e realizada. Chega de sobreviver e lutar. Eu quero mesmo é ser feliz!


[trilha sonora]


Claudia Feitosa-Santana: Adriana Barbosa é um modelo para além do contexto negro e feminino. Uma inspiração pra todos nós. Ela continua uma história que provavelmente começou muito antes de sua tataravó escravizada. Sua herança é a habilidade de transformar escassez em abundância. Como ela também podemos impactar nosso contexto. Já que somos uma criatura criada por nós mesmos. O contexto é fundamental nessa construção. Você participa ou já pensou em participar ajudando a transformar o preconceito em pertencimento? A sobrevivência em liberdade? E assim por diante? Nós nos fortalecemos em grupos mais diversos, pois somos muito mais inteligentes no coletivo. E assim podemos melhorar nossa cultura, a cola que nos conecta uns aos outros, portanto esculpindo a nossa humanidade


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Geyze Diniz: Nossas histórias não acabam por aqui. Confira mais dos nossos conteúdos em plenae.com e em nosso perfil no Instagram @portalplenae.


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