Para Inspirar
Na décima primeira temporada do Podcast Plenae, ouça os caminhos de superação trilhados por Pedro Pimenta.
20 de Março de 2023
Leia a transcrição completa do episódio abaixo:
[trilha sonora] Pedro Pimenta: Quando eu acordei do coma, eu fui entendendo, mesmo dopado com um monte de remédios, que eu teria que ser amputado. Eu tinha sentimentos mistos sobre isso. Por um lado, eu queria que cortassem logo os meus braços e minhas pernas, pra eu poder ir pra casa. Mas, por outro, eu me agarrava a uma falsa esperança de que aquilo não fosse acontecer, sabe. [trilha sonora] Geyze Diniz: A mudança no corpo de Pedro Pimenta não só o fez sobreviver, mesmo com poucas chances, mas o fez ressignificar e colocar em perspectiva o que de fato é importante. Sua busca pela reabilitação e resgate da autoestima hoje é exemplo para muitas pessoas. Eu sou Geyze Diniz e esse é o Podcast Plenae. Ouça e reconecte-se.
[trilha sonora]
Eu não consegui me divertir naquela festa. Eu fui me deitar e acordei lá pelas 3 da madrugada, com dificuldade até pra me mexer. Logo eu chamei o Lucas. A namorada dele é médica e na época fazia residência em pediatria. Na hora que ela viu as pintinhas roxas nos meus braços e pernas, ela começou a gritar. Disse que a gente precisava ir correndo pro pronto-socorro. Os dois me colocaram no carro e me levaram pro hospital.
[trilha sonora]
Já estava amanhecendo no dia 12 de setembro, quando eu fui transferido de ambulância pra outro hospital, em São Paulo. A essa altura, o meu irmão mais velho, o Daniel, também apareceu. E eu lembro que os três ficaram ali chorando, desesperados. Eu, que já estava com uma confusão mental, não entendi o porquê de tanto desespero. A ambulância seguiu muito rápido, varando os sinais de trânsito e o pessoal estava lá conversando comigo, tentando me manter acordado, mas uma hora eu desmaiei.
Eu acordei em um lugar estranho, com meus braços e pernas enfaixados. Eu senti que eu estava amarrado na cama. Mas, na verdade, eu é que não tinha força para levantar o braço. E se eu tentava erguer um membro, vinha uma força gravitacional que parecia 10 vezes maior que a normal e me puxava pra baixo. Meu tio me explicou que já fazia uma semana que eu estava na UTI.
Eu tinha contraído uma meningite meningocócica muito grave. A meningite é uma doença causada por bactéria, vírus ou fungo. O meu caso, pela gravidade, foi bacteriana, transmitida de pessoa pra pessoa pelas vias aéreas. Eu vinha de um ritmo muito intenso de estudos pro vestibular e estava dormindo muito pouco. O meu sistema imunológico enfraqueceu e a bactéria se instalou. Quando eu entrei no pronto-socorro, eu estava num quadro de choque séptico já, ou seja, de infecção generalizada.
Só o fato de eu ter despertado do coma já foi considerado um milagre. A minha chance de sobrevivência ali era menor que 1%. Eu só fui ter noção da gravidade do meu quadro na minha primeira troca das bandagens dos braços e das pernas. Eu vi meu braço todo preto. Tinha uma parte com o osso já carcomido. E eu acho que ali as drogas que os médicos me davam também tinham o objetivo de me deixar meio zonzo. Eu não estava 100% consciente. E, sinceramente, eu acho que era melhor assim.
[trilha sonora]
Mais ou menos depois de um mês de internação, veio a notícia que eu tanto temia. Eu seria amputado nos dois braços e nas duas pernas. A véspera da operação foi muito esquisita, porque eu tive meio que me despedir da minha família. Eu tinha plena consciência de que a minha chance de sobrevivência ali não era muito alta. E a família toda aquele dia veio me visitar. Tios, primos, estava todo mundo rezando pelo sucesso da operação. Mas o clima era de velório.
[trilha sonora]
A cirurgia correu surpreendentemente bem. Mas o primeiro mês do pós-operatório foi o mais difícil.
[trilha sonora]
Teve as outras incontáveis cirurgias de enxerto, a depressão, o choque identitário de recuperar a consciência ali e perceber que o contorno do meu corpo tinha mudado. As minhas pernas amputadas acima dos joelhos. E os braços, acima dos cotovelos.
[trilha sonora]
A ficha ainda estava caindo, quando o meu irmão me contou que ia ter um show do AC/CD em São Paulo. Eu sou muito fã da banda e estava internado num hospital que, por coincidência, é vizinho ao estádio do Morumbi, local do show. Eu infernizei os médicos e eles me autorizaram a ir. Só que não tinha mais ingresso. Aí a minha família entrou em contato com a organização e implorou pra liberarem a nossa entrada. Deu tudo certo.
Eu entrei no estádio de ambulância e assisti ao show deitado numa maca. A família toda e toda uma equipe do hospital, que o médico fez questão de ter, foram juntos, incluindo até psicóloga. Naquelas duas horas, pela primeira vez em quase 3 meses, eu esqueci do meu problema. Pra muitos foi apenas um show de rock. Mas, pra mim foi o primeiro sinal de que ainda tinha muita vida a ser vivida pela frente.
Eu voltei pro hospital e ainda passei lá o Natal, ano novo e o meu aniversário de 19 anos. Foram cinco meses e meio até a alta. Quando eu finalmente voltei pra casa, o meu pensamento era: “Beleza, resolvi o maior problema que eu tinha, que era não morrer. Mas agora eu tenho um problema gigante pro resto da minha vida. Como é que eu vou viver assim?”. Como eu ia escovar os dentes sozinho? Me trocar? Comer? Fazer as atividades mais básicas do dia a dia. Durante o processo de reabilitação com próteses, eu procurei o máximo de informação possível. Porém o prognóstico dos médicos era de zero independência. Segundo eles, eu teria que usar cadeira de rodas e precisaria de cuidador em tempo integral. Pra sempre. Eu queria usar próteses pra caminhar pô, mas, sem as articulações - joelhos e cotovelos -, os médicos diziam que seria impossível. Segundo eles, se eu conseguisse dar alguns passos com próteses, já seria uma vitória. Então, a gente contratou um cuidador de segunda a sexta no horário comercial, que era o Silvio, e meus irmãos e meus pais se revezam no resto do tempo. Eu não tinha força nem pra me sentar sozinho. Colocaram uma campainha eletrônica ao lado da minha cama. E quando eu acordava, eu tocava essa campainha pro Silvio vir, me colocar de pé, me vestir e me botar numa cadeira. [trilha sonora] A perda de um membro é muito parecida com a perda de um ente querido. Aliás, os passos do luto são os mesmos nos dois casos. Tem a negação, barganha, raiva, depressão e só então a aceitação. Comigo foi igualzinho. No início, quando eu acordava de manhã, eu tinha aquele 1 segundo de paz, antes do mundo colapsar em cima de mim e eu voltar à realidade. Os fins de semana eram ainda mais difíceis. Os meus amigos iam muito lá em casa, mas eles também saíam pra balada, viajavam e chegavam contando aquelas histórias e eu ficava triste por não poder participar desses momentos. Eu alternava dias de bom humor com outros de: “poxa, quem que eu tô tentando enganar? Eu tô aqui tentando me manter feliz o máximo possível, mas a verdade é que eu tô parado e o resto do pessoal tá andando”.
[trilha sonora]
Eu procurei ocupar o tempo estudando produção de música eletrônica no computador. Eu sempre gostei de tocar instrumentos, e essa era uma maneira de continuar conectado à música. Eu estudava umas 8 horas por dia. Também peguei firme na fisioterapia e, três vezes por semana, eu ia pra clínica lá com o Silvio. Rapidinho, eu já conseguia me sentar sem precisar de ajuda. Foi uma baita vitória.
[trilha sonora]
A empresa do vídeo era a mesma do cara que tinha me entregado aquele cartão, o tal do Kevin. Lembra dele? E eu liguei umas três vezes pra ele. Nas duas primeiras, caiu na caixa postal direto. Na terceira, ele atendeu. E por uma dessas coincidências no universo, ele tinha acabado de pousar em Chicago. Nesse mesmo dia, uma sexta-feira, às 10 da noite, ele foi lá no apartamento onde eu estava hospedado. E ele veio e disse: “Na semana que vem, vai ter um campeonato de triathlon pra amputados em San Diego, lá na Califórnia. E esse menino do vídeo vai tá lá. Você pode ir e ver com os seus olhos. Eu tô te dando o caminho das pedras. Se você não for, a escolha é sua”.
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O meu irmão não queria ir. Ele tinha medo de eu alimentar falsas esperanças, talvez. Mas mesmo assim eu decidi ir a San Diego. E assim eu conheci o Cameron. Realmente… O cara fazia tudo que tava no vídeo! E com o incentivo dele eu consegui caminhar com as próteses, mesmo sentindo muita dor.
Eu mudei a data da passagem de volta pro Brasil e fui pra clínica de amputados onde o Cameron se reabilitou, em Oklahoma. Era aquela que o Kevin tinha comentado no congresso. Os caras têm um sistema bem radical, baseado em treinamento militar. Tanto é que eles chamavam de bootcamp. Quando a gente passa por uma amputação ou algo assim, é comum que vire o coitadinho da família. Mas lá em Oklahoma não tinha nada disso. Eles eram extremamente duros. Colocavam a gente para descer rampas mesmo sabendo que a gente ia cair. A ideia era aprender a levantar e continuar tentando.
O segredo da minha reabilitação foi o resgate da sensação de pertencimento, de saber que eu não estava sozinho. Até conhecer o Cameron, eu não conseguia caminhar mais do que 20 passos com as próteses. Mas alguma coisa destravou na minha cabeça e eu encontrei uma energia extra dentro de mim. O ser humano é um ser social, ele precisa pertencer a alguma coisa, a algum lugar. Em Oklahoma, eu conheci um monte de gente sem um, dois ou até três membros. Várias pessoas tinham perdido duas pernas, acima dos joelhos também. E eu via que elas estavam em pleno crescimento na vida: nos estudos, no trabalho, no relacionamento… Algumas até tendo filhos. E aí eu percebi: “Opa, peraí. Eu também posso”.
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Geyze Diniz: Nossas histórias não acabam por aqui. Confira mais dos nossos conteúdos em plenae.com e em nosso perfil no Instagram @portalplenae.
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Para Inspirar
O segundo episódio da décima quinta temporada do Podcast Plenae é do surfista Derek Rabelo, representando o pilar Corpo
7 de Abril de 2024
[trilha sonora]
Derek Rabelo: Quando eu contei pra minha mãe que eu queria aprender a surfar, ela falou: “Você tá de brincadeira, né?”. Mas eu insisti tanto, que ela topou me matricular numa escola de surfe. E mesmo na escola, no início, o pessoal ficou na dúvida se as aulas eram adequadas para mim ou não. Como que um cego poderia aprender a surfar?
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Geyze Diniz: Derek Rabelo nasceu sem enxergar. Mas a deficiência nunca foi um empecilho pra ele lutar pelos seus sonhos. Ele aprendeu a surfar aos 17 anos e se tornou um atleta profissional. Derek, que sofreu com a exclusão na escola encontrou o pertencimento no esporte. Eu sou Geyze Diniz e esse é o Podcast Plenae. Ouça e reconecte-se.
[trilha sonora]
Derek Rabelo: Eu recebi o nome Derek em homenagem ao surfista havaiano Derek Ho. O cara foi campeão mundial e é um ícone do esporte. O meu pai surfa e sonhava em ter um filho que pegasse onda também. Só que os planos dele se frustraram logo quando eu nasci. Nos meus primeiros dias de vida, o meu pai percebeu algo estranho nos meus olhos. As minhas pupilas tinham uma tonalidade azul, diferente do resto da família.
Eu fui levado a alguns médicos e diagnosticado com glaucoma congênito. É uma doença que, sem um motivo específico, causa uma pressão ocular muito grande. No meu caso, eu não enxergo absolutamente nada. Toda a minha família, inclusive os meus filhos, têm a visão perfeita. Eu acredito que Deus queria que eu nascesse assim.
[trilha sonora]
Os meus pais foram pegos de surpresa. Nenhum ultrassom na gravidez mostrou que eu tinha um problema. Quando eles receberam a notícia que eu era cego, ficaram desesperados. Quem cuidaria do meu futuro? Quem cuidaria de mim quando eles não tivessem mais aqui?
Eles decidiram fazer de tudo pra que eu pudesse enxergar. No meu primeiro ano de vida, eu passei por três cirurgias no melhor hospital de olhos do Brasil. Cada uma era um sofrimento imensurável para os meus pais, porque eles viam a minha dor e, ao mesmo tempo, sentiam esperança. Mas nenhuma operação curou a minha cegueira.
Crescer sem enxergar exigiu de mim e da minha família um processo de adaptação. A minha mãe tinha muito medo que eu me machucasse. Eu era uma criança hiperativa e queria fazer tudo que não era recomendável para mim, tipo subir em árvore e andar de bicicleta.
A minha mãe, coitada, vivia correndo atrás de mim para tentar evitar acidentes. Já o meu pai encorajava o meu lado aventureiro. Ele me levava pra nadar e para andar de moto. No sítio da minha avó, a gente descia o rio flutuando em boia de câmara de ar de caminhão.
Mas as minhas atividades favoritas eram na praia. O meu amor pelo mar surgiu desde muito pequeno. Eu nasci e cresci em Guarapari, uma cidade no litoral do Espírito Santo. Eu tenho até hoje uma prancha de bodyboard que eu ganhei de presente quando eu tinha 2 anos. O meu pai me puxava pelo leash na água e eu lembro quanto eu ficava feliz quando as ondas batiam em mim. Apesar das minhas dificuldades, eu tive uma infância muito boa, cercada de amor pelos meus pais, família e amigos. Os problemas começaram quando chegou a hora de ser alfabetizado.
[trilha sonora]
Os meus pais fizeram questão que eu frequentasse uma escola comum, e não uma instituição adaptada para deficientes visuais. Só que três colégios recusaram a minha matrícula. Diziam que não estavam preparados para receber um aluno cego. Quando finalmente um colégio me aceitou, eu fui rejeitado por muitos alunos. Eles não queriam que eu participasse das atividades em grupo ou que eu jogasse bola com a turma, por exemplo.
Além de sofrer muito bullying, tinha uma falta de inclusão e acessibilidade gigantesca. Por volta dos 10, 11 anos, eu comecei a usar uma bengala para me locomover. Eu tinha vergonha, porque o pessoal da escola tirava sarro. Os meus livros em braile chegavam três meses depois que as aulas tinham começado. Isso obviamente atrapalhava o meu aprendizado.
Pra piorar, a maioria dos professores não facilitavam a minha vida. Eu lembro que um dia, na aula de inglês, em que eu perguntei como se escrevia “brother”. Todo mundo riu de mim e a professora nem ligou. Hoje, eu olho para trás e não tenho raiva de ninguém, mas também não tenho saudades.
[trilha sonora]
Mesmo com os perrengues, eu sou muito grato aos meus pais por eu ter frequentado uma escola comum. Os desafios contribuíram para minha jornada. Se eu tivesse estudado num colégio pra deficientes, eu acho que eu teria ficado preso nesse mundo. Os meus pais sempre quiseram que eu me adaptasse a qualquer circunstância. Talvez por isso eu nunca tenha tido pensamentos do tipo: “Caramba, eu sou um cego fracassado? O que eu vou fazer da minha vida?”. Mas o meu grande ponto de virada foi o surfe.
[trilha sonora]
Algo dentro de mim me conecta com o oceano e com as ondas. Talvez isso venha da paixão do meu pai pelo esporte. Talvez venha do meu nome. Talvez venha do fato de que eu nasci na praia. Eu não sei, mas é uma coisa que tá no meu sangue.
[trilha sonora]
Na adolescência, eu comecei a sentir muita vontade de aprender a surfar. Só que ninguém queria me ensinar. Aí, um conhecido que tinha uma escola de surfe me falou assim: “Eu vou receber umas pranchas adaptadas. São importadas. Quando elas chegarem, eu te ensino”. Eu me enchi de esperança. Passou um ano, mas essa prancha adaptada não chegava. Passaram dois anos e nada...
Até que eu ganhei uma prancha de presente de um amigo. Uma prancha normal mesmo. Eu pedi pro meu pai pra ir comigo pra praia, mas ele não podia, porque estava ocupado com o trabalho. Então, eu disse que ia sozinho mesmo. Ele me aconselhou a não fazer isso. Ele falou que a maré estava seca, que eu poderia me machucar e ainda quebrar a prancha. Como eu sou teimoso, fui sem ele. Dito e feito.
[trilha sonora]
Na primeira onda que eu tentei pegar, eu caí e a prancha se partiu em dois pedaços. Graças a Deus, eu não me machuquei, mas fiquei arrasado. O meu pai me deu uma bronca, mas ele viu como eu fiquei frustrado. Um tempo se passou e, quando eu tinha 17 anos, o meu pai me levou para surfar. Era um fim de tarde e o meu pai falou: “O mar tá perfeito pra você aprender”.
Ele pegou a prancha dele e, ainda na areia, me passou algumas instruções de como ficar em pé. Depois, a gente caiu na água e ele tentou me colocar em algumas ondas. O meu pai esperava que eu ficasse de pé logo no primeiro dia, como ele fez quando ele tinha 14 anos. Mas eu não consegui. Ainda assim, eu amei a experiência e fiquei com vontade de repetir.
[trilha sonora]
Eu tentei outras vezes. Com meu pai, com meu tio, com amigos. Em nenhuma delas eu consegui realmente aprender. Até que eu decidi me matricular numa escola de surfe. A galera me recebeu super bem. Foi um processo de adaptação pra todo mundo. Pra mim, lógico, porque eu nunca vi alguém pegando uma onda.
Mas pra eles também, porque eles nunca tinham ensinado uma pessoa que não enxergava. O meu processo de aprendizado foi mais demorado do que o dos outros alunos. O meu professor, o Fabio Castor Maru, era um cara extremamente paciente. No começo, ele me levava pra água quando o mar não estava tão grande.
Eu aprendi a surfar usando toda a minha sensibilidade da audição e do tato. Eu escuto os sons do mar, o barulho do vento e o movimento da água pra saber quando a onda está se aproximando. Foi assim também que eu comecei a aprender a hora certa de remar e aprender o movimento certo de ficar em pé na prancha.
Eu encosto a mão na parede da onda, pra entender como ela vai quebrar. Na hora, é tudo extremamente rápido, questão de fração de segundos. Com o tempo, eu fui pegando prática e esse processo ficou mais automático. Conforme eu fui melhorando, eu saí da minha zona de conforto e passei a explorar praias diferentes.
[trilha sonora]
Um ano e meio depois de começar as aulas, eu estava surfando bem melhor. Foi nessa época que surgiu o sonho do Havaí. Um grande amigo meu, o Magno Passos, todo ano ia pra lá pra competir de bodyboard. Ele me contava as histórias de uma praia em especial. Pipeline é uma onda tubular, que quebra pra esquerda e atrai surfistas de todo mundo. Só que essa onda fica em cima de uma bancada de pedras afiadíssimas. Muitas pessoas já morreram ou ficaram com sequelas graves de cair ali.
Ninguém acreditava que eu iria conseguir surfar em Pipeline, nem eu mesmo. Mas o Magno acreditava e eu decidi ir pro Havaí com ele. Eu fiz uma vaquinha e tive ajuda dos meus pais, da minha família e de alguns amigos. Vendi uns cacarecos, algumas pranchas e juntei dinheiro suficiente pra minha primeira viagem de avião.
[trilha sonora]
Um pouquinho antes da gente embarcar, um surfista profissional da minha cidade falou para todo mundo que era uma loucura. Dizia que eu iria me matar, e que eu estava sendo egoísta. Mas isso não tirou o meu foco e eu fui assim mesmo.
[trilha sonora]
Quando a gente chegou no Havaí, eu senti que tinha algo especial naquele lugar. Ainda que eu não pudesse enxergar a paisagem, ali era o meu mundo dos sonhos. A primeira vez que eu fui à praia, eu caminhava lentamente, pra sentir a areia em volta dos meus pés, sentir a brisa do oceano, sentir o ar salgado soprando o meu rosto. Eu tocava as plantas, as flores, a água e criei na minha mente uma imagem paradisíaca do Havaí.
Mas o surfe em si, no início, não foi o que eu imaginava. Eu pensava que a gente iria chegar em Pipeline e já surfar de cara. Só que não. Tinha centenas de pessoas disputando um espaço minúsculo. Pelas vozes que eu escutava, dava para dizer que o mar estava apinhado de gente. Eu não consegui surfar nenhuma onda decente. O Magno tentava me tranquilizar, dizendo que o Havaí é assim mesmo.
Foram vários dias de frustração. Teve um que eu estava na água, em cima da prancha, e pensei: “Isso não é pra mim. Como eu vou pegar uma onda? Tá lotado de surfistas locais e profissionais. Eu sou só um surfista cego”. Quando a gente voltou pra areia, eu contei pro Magno como eu estava decepcionado. Ele me disse: “Derek, Deus trouxe a gente até aqui. Vamos orar e ele vai abrir as portas”.
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Nós fomos a uma igreja e conhecemos pessoas que eram amigas de grandes surfistas locais. O Eddie Rothman e o filho dele, Makua Rothman, são super respeitados e realmente mandam na ilha. Eles me convidaram para ir na casa deles e o Makua me deu uma prancha de presente. Me receberam como parte da família e, no outro dia, literalmente fecharam a praia de Pipeline para mim.
O Makua entrou comigo na água e disse pra todo mundo: “Estamos aqui com um surfista cego do Brasil. Ele vai surfar quantas ondas ele quiser. Por favor, não entrem nas ondas dele, nem atrás e nem na frente”. Todo mundo respeitou. Parece um conto de fadas, mas foi desse jeito. Eu fiquei horas ali pegando onda. Foi um dos dias mais lindos da minha vida. A família Rothman mora no meu coração. Toda vez que eu vou pro Havaí, eu sou super bem recebido e acolhido por eles. Eu, que tive uma experiência escolar de muita exclusão, me senti super incluído. O meu sentimento era e ainda é de gratidão.
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A partir dali, a minha vida mudou. Um vídeo meu surfando em Pipeline viralizou. Em algumas horas, atingiu meio milhão de visualizações. Saiu matéria sobre mim no maior jornal do Havaí. Dezenas de revistas me procuraram pedindo entrevistas. Quando eu voltei pro Brasil, participei do Caldeirão do Huck. Comecei a receber patrocínios e a viajar o mundo vivendo esse sonho.
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Até agora, eu visitei 25 países. Um dos meus favoritos é Portugal. Eu já surfei algumas vezes em Nazaré, um lugar conhecido pelas ondas gigantes. Isso porque, depois de Pipeline, eu aprendi a pegar ondas cada vez maiores. O meu mentor nesse processo foi o surfista e grande amigo meu, Carlos Burle.
O cara teve toda paciência do mundo pra me ensinar. A maioria das pessoas achavam que seria impossível um cego pegar uma onda grande. Quem duvidou é que não me conhece o suficiente. O fato de eu ser cego nunca me impediu de lutar pelo que eu quero. Eu já surfei uns paredões de 12, 13 metros de altura.
Outro país especial pra mim é a Austrália. Foi lá que eu conheci a minha esposa, a Madê. A gente se trombou, literalmente, logo após uma palestra que eu fiz. Ela estava passando, pisou no meu pé sem querer e pediu desculpa. No dia seguinte, ela participou de outro evento que eu fiz. A gente conversou e eu comecei a me interessar por ela. Depois de um ano, a gente estava casado. Em 2019, nasceu nosso primeiro filho, Elias Derek. Em 2022, chegou nossa princesinha, Hanna Lia.
As crianças já entendem que eu não enxergo. Às vezes, eu estou andando em casa, e sem querer esbarro na minha filha. Ela chora e eu explico que não foi de propósito. Pro Elias, eu contei sobre a minha deficiência de uma maneira lúdica. Eu disse que o meu olho tá quebrado, que não funciona. Às vezes ele falava: “Mamãe, a gente tem que ir numa loja comprar um olho novo pro papai”.
Eu que levo eles pra escola, a pé. O meu cão-guia, a Serena, vai do lado, me guiando. A Serena está comigo há seis anos. Eu sempre fui muito independente com minha bengala, mas a Serena me deu ainda mais independência. Ela me guia em avião, trem, qualquer meio de transporte. A Serena não é um pet. Teoricamente, ela é um cão de serviço. Mas pra mim, ela é como se ela fosse a minha filha. Eu cuido dela como cuido das minhas crianças.
Toda a minha vida, hoje, tá ligada ao surfe. Eu nem estaria aqui contando a minha história se eu não tivesse começado a surfar. O esporte me deu a oportunidade de, em primeiro lugar, ter saúde. Me deu oportunidade de viajar, trabalhar, conhecer pessoas e fazer grandes amizades ao redor do mundo. Me deu a oportunidade de me desafiar, de evoluir como ser humano e de constituir uma família. O surfe me trouxe, acima de tudo, a inclusão.
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