Para Inspirar

Rafael Mantesso em “O meu melhor amigo é o meu cachorro”

Na quarta temporada do Podcast Plenae - Histórias para Refletir, conheça a relação intensa de Rafael Mantesso e seu cachorro, Jimmy

28 de Março de 2021


Leia a transcrição completa do episódio abaixo:

[trilha sonora]

Rafael Mantesso: A vida toda eu me forcei a fingir um personagem que consegue socializar. Eu tenho muita dificuldade de ler os sentimentos das pessoas, de identificar as emoções. Relacionamento é um desafio imenso pra mim. Mas, com o Jimmy, eu não tenho esse problema. Eu sei o que ele tá sentindo o tempo inteiro. Eu tenho por ele talvez um amor muito parecido ao de uma mãe por um filho. Mas o Jimmy não é meu filho, ele é meu cachorro. 

[trilha sonora]

Geyze Diniz: O ser humano vive para se relacionar e isso traz vínculos, pertencimento,  personalidade. Mas é engano nosso achar que essas relações para serem relevantes precisam ser estabelecidas somente entre pessoas. Hoje, trazemos o lindo relato de uma relação forte, inspiradora e cheia de afeto entre uma pessoa e seu cachorro. Vamos ouvir a história do Rafael Mantesso contando como sua relação com o Jimmy, um bull terrier de 11 anos, faz dele mais do que um simples pet, e sim, seu melhor amigo, fonte de inspiração, afeto e muito amor. Ouça no final do episódio as reflexões da especialista em desenvolvimento humano, Ana Raia, para te ajudar a se conectar com a história e com você mesmo. Eu sou Geyze Diniz e esse é o Podcast Plenae. Ouça e reconecte-se.

[trilha sonora]

Rafael Mantesso: Quando eu me casei, minha ex-mulher e eu quisemos um cachorro. Eu pesquisei muito antes de escolher a raça. Se você jogar no Google: “Quero comprar um cachorro feliz pra minha família”, o primeiro resultado que aparece é o golden retriever. Não tem como não gostar de um golden. Ele é maravilhoso, sem defeitos, a versão canina de uma loira correndo na praia de SOS Malibu. Mas eu prefiro bichos meio desajustados, esquisitos. Não é à toa. Vários estudos psicológicos relacionam donos e seus animais, inclusive na aparência. E eu sou um cara fora dos padrões considerados normais.

A minha pesquisa não deixou dúvida. O meu cachorro seria um bull terrier, uma mistura de buldogue com terrier inglês. Essa raça tem características que eu amo. Tem pelo curto, que é mais prático de cuidar e combina com o clima do Brasil. Late pouco, fundamental pra mim, que sou sensível a barulho. São teimosos, insistentes e obsessivos, um comportamento bem parecido com o meu. 

Os bull terriers foram geneticamente criados pra brigar com bois. Eles são muito resistentes e brutos, mas nem um pouco bravos. Na verdade, eles não economizam na demonstração de afeto. Eles têm uma característica de ficar girando e pulando ao redor do próprio rabo, tipo um touro de rodeio. É maravilhoso. São extremamente leais e cúmplices. Como todo cachorro, amam mais o dono do que a eles próprios.  [trilha sonora]

A gente achou uma criadora responsável, que não faz cruzamentos consanguíneos, e escolheu um filhote macho. Eu queria colocar um nome bem estereotipado pra combinar com a fama injusta de agressivo que ele tem. Pensei em Kadafi, Shark, Killer, Massaranduba. A minha ex-mulher discordou. Ela achava que o nome tinha que ser o oposto da imagem que transmitia. Ela era estilista e adorava a marca de sapatos Jimmy Choo. Assim ele virou o Jimmy Choo.

[trilha sonora]

Durante 5 anos, o Jimmy foi o cachorro da casa. 

[trilha sonora]

Ele não era meu, era do casal. A minha ex passeava com ele de manhã e eu à noite. Ela era mais ligada aos bens materiais, por isso ela não deixava ele subir no sofá, nem na cama. Ele tinha que ficar lá na varanda. A minha relação com ele começou a se estreitar quando o meu casamento acabou, depois de 12 anos de relacionamento. Comprei a parte da minha ex do apartamento e, na partilha, escolhi ficar com os quadros. São obras sem valor comercial, mas de muito valor emocional. Meu pai pinta e me deu uma réplica maravilhosa da Guernica, do Picasso. É um quadro de 4 metros, incrível. Nessa de escolher telas, ela ficou com os móveis. Quando fez a mudança, só sobrou pra mim no apartamento uma geladeira, uma poltrona... e o Jimmy. [trilha sonora]

Eu gosto quando eu entro num imóvel que acabei de alugar ou comprar. Dá uma sensação de começar algo do zero. Mas, no divórcio, não foi isso que eu senti. Eu tinha um apartamento cheio, que de repente ficou vazio. Era um imóvel de quatro quartos, 90 metros quadrados. A sala fazia eco. Para diminuir esse incômodo, eu ia ao supermercado, pegava caixas de papelão e espalhava pela sala. 

Na mesma época, eu fiquei desempregado. Então, eu tinha bastante tempo livre e um cachorro cheio de energia, querendo atenção o tempo inteiro. Eu duvido que alguém tenha passado tanto tempo na vida brincando com um cachorro, sem mais nada pra fazer, sem mais nada pra olhar. [trilha sonora] Naquele apartamento vazio, a minha sensação é que eu tinha voltado pro meu quarto na casa dos meus pais, lá em Carangola, no interior de Minas Gerais. O quarto era um refúgio, um lugar onde eu não me sentia julgado, onde eu podia ser eu mesmo. Eu desenhava nas paredes pra extravasar meus sentimentos, porque o desenho sempre foi a minha melhor forma de expressão. Senti vontade de resgatar esse hobby pra ocupar o vazio que eu sentia por dentro e via por fora.  E o que que eu ia desenhar? O meu único objeto de atenção naquele momento, o Jimmy. Eu acho que ele é o cachorro mais lindo do universo. Ele é branco, com umas orelhas marrons e a ponta do focinho com um formato de coração preto. Ele tem olhos pequenos e pretos, focinho comprido e um olhar delicado. Tem formas extremamente minimalistas, sem nenhuma quina, sem nenhuma curva. Ele parece que foi desenhado pela Apple.  [trilha sonora] Comprei carvão pra rabiscar as paredes e caneta de quadro branco pra pintar o chão, porque era fácil de apagar. Decidi criar cenários e fotografar o Jimmy dentro deles, com o meu celular. Eu passava a manhã inteira desenhando, pra ter a imagem pronta na melhor luz do dia, que eram umas 4 ou 5 da tarde. Eu desenhava, por exemplo, a cena da Dama e o Vagabundo comendo espaguete. O Jimmy, claro, fazia o papel do Vagabundo. Desenhava uma bicicleta e fotografava o Jimmy numa posição em que parecia pedalar.  A primeira foto que eu postei no Instagram foi do Jimmy posicionado atrás de uma caixa de papelão da altura dele. No papelão, eu desenhei as costelinhas dele e o coração vermelho no meio, como se ele tivesse passando por um raio-x. A imagem que viralizou foi a dele cantando. Na verdade, quando eu fiz essa foto, ele tava deitado de lado, meio que dormindo, abriu a boca pra bocejar e eu fiz o clique. Desenhei um microfone e postei. Fui dormir com 10 mil seguidores e acordei com 60 mil, e uns 16 mil e-mails na minha caixa de entrada.  O post rodou o mundo inteiro e mudou a minha vida. O hobby passou a ser um trabalho e uma fonte de renda. A CEO da Jimmy Choo me convidou pra assinar uma coleção de acessórios com a imagem do Jimmy. Foi a primeira vez que uma marca de grife fez uma coleção com um cachorro estampado. Publiquei um livro, fiz uma coleção pro cachorro da Donatella Versace, uma linha de pets pra Monclair. Fiquei amigo do Marc Jacobs, que também tem um bull terrier, e até ganhei um green card, como artista. Sem o Jimmy, nada disso teria acontecido.  [trilha sonora] Quando o Jimmy já estava estourando na internet, uma neuropsicóloga da Nova Zelândia entrou em contato comigo pedindo permissão pra usar as imagens num trabalho com autistas.  [trilha sonora] Ela fez um teste que confirmou o que eu já tinha descoberto sozinho: eu tenho Síndrome de Asperger, um estado do espectro autista. No passado, eu achava que todo autista era igual ao personagem do Dustin Hoffman no filme Rain Man. Alguém extremamente limitado, com dificuldade de fala. E não é assim, existem vários estados do espectro. No meu caso, por exemplo, eu tenho bastante problema para interpretar linguagens não verbais, eu tenho dificuldade de me relacionar com pessoas, tenho intolerância ao barulho, hiperfoco e um apego muito grande à rotina. No teste, eu descobri também que eu tenho transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, o famoso TDAH. O diagnóstico encaixou um monte de peça na minha vida. Eu tenho motivos neurológicos pra ser do jeito que eu sou. Não é esquisitice, não é chatice, não é frescura, como um monte de gente costuma julgar.  [trilha sonora] Autistas têm uma proximidade muito grande com animais. É estatístico. Mais ainda não existem estudos que expliquem o porquê disso. No meu caso, um dos motivos é o hiperfoco. Eu sou obcecado pelo Jimmy. Outro motivo é que eu tenho mais facilidade de me relacionar com os cachorros do que com os humanos. Eu entendo os sentimentos do Jimmy, e ele os meus. Quando eu tô triste, ele quer ficar sentado em cima de mim. Imagina um cachorro de 30 quilos no seu colo? É assim. Ele sabe que a presença física dele me acalma. Pra mim, ele funciona como um carregador de bateria. Ele faz a minha bateria ficar mais verde. [trilha sonora] O Jimmy não guarda mágoas. Se eu brigo com ele agora, daqui 5 minutos ele vem abanando o rabo e eu já perdoo ele na hora. Nós respeitamos o espaço um do outro. Quando ele quer ficar sozinho, eu não chamo ele. Pra mim as relações devem ser diretas e objetivas, mas os seres humanos, eles não são assim. As pessoas dissimulam, dizem uma coisa querendo dizer outra, dão indireta. As pessoas mentem. São linguagens que eu não consigo decifrar. Com cachorro, não tem esse jogo. É óbvio que eu adoro conversas longas e profundas com amigos e namoradas e isso o Jimmy nunca vai me dar. Mas, a minha necessidade de afeto ele supre completamente.  Parece que toda vez que eu chego em casa sou um beatle entrando num show. O Jimmy fez uma cirurgia na perna e tem dificuldade pra andar. Mas mesmo assim, ele não segura a explosão de felicidade. Ele vem derrubando tudo, me dando cabeçada. E o que ele expressa é exatamente o que eu sinto quando eu vejo ele. A troca é intensa dos dois lados.  [trilha sonora] Os bull terriers são muito mal compreendidos. Me incomodava demais as pessoas terem medo do Jimmy na rua. Descer com ele num elevador e ninguém entrar. Ele nunca nem sequer esboçou um latido ou um rosnado pra alguém, tanto é que é uma raça super indicada pra família com filhos. Criança enfia o dedo no olho do bicho, puxa o rabo, morde a orelha, sobe em cima... Os bull terriers adoram esse tipo de brincadeira.
Uma das bandeiras do meu trabalho é mudar a visão negativa que as pessoas têm da raça. Graças ao alcance global que o Jimmy ganhou, a gente conseguiu evitar que a raça fosse banida na Dinamarca e hoje as pessoas atravessam a rua para fazer carinho nele.

Eu uso a minha audiência pra conscientizar as pessoas de algo que elas não sabem. Meu trabalho não é mais sobre mim, é sobre os bull terriers e o autismo. Os autistas têm estatisticamente seis vezes mais chance de se matar na vida adulta do que uma pessoa neurotípica. Na adolescência, o risco é 13 vezes maior. Eu calculo que já ajudei umas 150 pessoas a receberem diagnóstico tardio de Asperger, só por falar de vez em quando sobre a minha condição. Elas nunca tinham ouvido falar da síndrome. Pesquisaram sobre o assunto, foram atrás de psiquiatras e psicólogos e a vida delas começaram a fazer sentido. [trilha sonora]  Em algum momento da vida, eu acho que todo mundo se pergunta: o que que eu tô fazendo aqui? De onde eu vim? Pra onde eu vou? Eu tenho esses devaneios. Antes do Jimmy, eu não sabia com o que eu queria trabalhar, não sabia se eu era bom em alguma coisa. Ele me trouxe muitas respostas. Se eu passar o resto dos meus dias mostrando pro mundo o tanto que ele me deu de amor, eu não vou conseguir retribuir o que eu já recebi dele. Sem o Jimmy, eu não teria parado pra pensar 1 minuto nos outros, eu estaria focado só pensando nos meus problemas. Ele é mais do que meu cachorro. Ele é meu escudo, ele é uma inspiração, ele é meu alter ego, ele é meu meio de expressão. Sem o Jimmy, eu nunca teria tido coragem de dar opinião e falar sobre mim, porque eu detesto holofote. Mas de alguma maneira ele me blinda, porque ele é a estrela do show. O Jimmy faz a minha vida valer a pena.  [trilha sonora]
Ana Raia: 
Muitas vezes, a vida traz obstáculos enormes, tira nossos pilares afetivos e materiais, nos deixa sem chão. São momentos de ruptura em que a vida nos tira algo, mas também cria espaço para o novo. Nos convida para novas possibilidades e novas experiências. Grandes rupturas são terríveis e benéficas, na mesma proporção. E quem escolhe aceitar a ruptura ao invés de resistir, costuma construir e viver bonitas narrativas de travessia. Sempre escutei, e acho que você também, que o amor cura e transforma, que o amor move montanhas, desperta coragem e alegra o coração.

É fato que quando o amor entra em nossas vidas ele traz movimento, consciência, afeto e propósito. Desperta em nós a vontade de sermos melhores, de fazer melhor. Ele expande a nossa vida. E Rafael exemplifica bem esse cenário que tem um tanto de amor e outro tanto de ruptura. Sem muita clareza do que fazia, apenas entregue ao flow da vida.

Depois de um clique, um desenho e uma postagem, ele viu e fez sua vida mudar. Nessa travessia ele se conheceu, encontrou significado em sua vida e transformou seu trabalho em causas. O amor e as rupturas, aparentemente tão antagônicas, podem ser as pontes para bonitas travessias. Só precisamos estar abertos para receber as rupturas e os amores em suas mais diversas formas.
[trilha sonora] Geyze Diniz: Nossas histórias não acabam por aqui. Confira mais dos nossos conteúdos em plenae.com e em nosso perfil no Instagram @portalplenae. [trilha sonora]

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Para Inspirar

Flores para os Refugiados em “A beira da praia pode ser um lugar seguro”

Na quarta temporada do Podcast Plenae - Histórias para Refletir, conheça o trabalho inspirador de Gabi e Kety, em Flores para os Refugiados

25 de Abril de 2021


Leia a transcrição completa do episódio abaixo: 

[trilha sonora]

Gabriela Shapazian: Ninguém escolhe ser refugiado. São pessoas como eu, como você, com a diferença que sofreram um trauma que a gente nem consegue imaginar o tamanho. Eles perderam tudo: os bens, a dignidade, muitas vezes a família. Eles saem de casa e vão pra outro lugar desconhecido recomeçar a vida do zero. E ainda são mal recebidos quando chegam. Um homem do Iêmen me disse que era a primeira pessoa que olhava ele no olho, sem ar de superioridade. Eu trato os refugiados de igual pra igual, porque é assim que eu gostaria de ser tratada se tivesse no lugar deles. Quem disse que um dia eu não posso ser uma refugiada também? Eu não sei o que vai acontecer com o mundo daqui a 10, 30, 50 anos. Se eu tiver que entrar num bote de borracha pra fugir da guerra ou da miséria, eu quero que do outro lado do mar tenha alguém pra me receber com um abraço.  [trilha sonora]

Geyze Diniz: A ativista Gabriela Shapazian se dedica a ajudar refugiados desde os 16 anos. Ela se apaixonou pela causa quando trabalhou como voluntária na Grécia ao lado da mãe, Kety. As duas recepcionavam pessoas que atravessavam o mar em condições precárias vindos do Oriente Médio, da África e da Ásia. Nessa viagem, Gabi mudou a sua visão de mundo. A vida confortável que ela levava em São Paulo deixou de fazer sentido pra ela. E para financiar o trabalho da filha nessa missão humanitária, Kety criou um negócio: o Flores para os Refugiados. Ouça no final do episódio as reflexões da especialista em desenvolvimento humano, Ana Raia, para te ajudar a se conectar com a história e com você mesmo. Eu sou Geyze Diniz e esse é o Podcast Plenae. Ouça e reconecte-se.

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Kety Shapazian: Em 2015, as notícias sobre a crise dos refugiados na Europa me abalaram muito. Eu me sentia impotente vendo milhares de pessoas atravessando o mar em barcos precários. Vendo crianças morrendo afogadas. Vendo autoridades de braços cruzados. A minha filha, Gabriela, de tanto me ouvir reclamar, falou: “Faz alguma coisa, mãe, compra a passagem e vai pra lá ajudar”. 

A gente começou a pesquisar sobre o assunto. Encontramos no Facebook um grupo de voluntários na ilha de Lesbos, na Grécia. Comprei uma passagem pra dezembro e reservei um hotelzinho numa praia chamada Skála Sykamineas. Naquela época, a maioria dos barcos com refugiados chegava naquele ponto. 

Na mesma época em que eu ia pra Grécia, a Gabi tava de viagem marcada pra Itália. Ia passar duas semanas de férias em Roma e Milão, com a minha mãe. Mas ela começou a se empolgar muito mais com a minha viagem do que com a dela. Queria ir comigo de qualquer jeito. 

Eu não estava pronta pro que eu ia ver na Grécia. E me perguntava: será que era certo levar uma menina de 16 anos junto comigo? Mas Gabi me convenceu e eu resolvi arriscar. Ela foi passear na Itália e depois pegou um voo sozinha pra me encontrar em Lesbos. O plano era a gente passar 10 dias juntas trabalhando. [trilha sonora]  Gabriela Shapazian: Skála Sykamineas é uma vila de pescadores, com cerca de 100 moradores, a maioria idosos. Fica só a 10 quilômetros de distância da Turquia. Quando você olha pro mar, dá pra ver a Turquia do outro lado. A vila tem uma ruazinha com um hotel pequeno, um café, um restaurante e um mercadinho. Essa rua termina na praia e, à esquerda, vira uma estradinha paralela à costa. A vila estava lotada, o que não era normal, por ser inverno.

Eu cheguei num fim da tarde. E na manhã seguinte, me vi no meio da linha de frente da maior crise humanitária desde a Segunda Guerra Mundial. Os voluntários estavam divididos em dois grupos. Uma parte ficava na terra e outra em barcos de resgate. Era ilegal tirar os refugiados do bote e colocar eles no barco de resgate. Voluntários já foram presos por salvar pessoas que estavam morrendo afogadas. Então, o jeito era encontrar o barco clandestino no meio do caminho e acompanhar ele até a praia. 

Eu fiquei no grupo da terra. Por rádio, o pessoal do mar avisava: “Tem um barco vindo pra praia de Skala. Vai chegar daqui a 20 minutos. Tem outro indo pra praia tal”. Eu lembro quando vi meu primeiro barco. Na verdade, foram dois, que chegaram quase ao mesmo tempo. Primeiro, vi um pontinho preto lá longe. Depois, outro. Quando chegaram mais perto, identifiquei que eram botes de borracha. Escutei grito, chora, reza. Era uma média de 100 pessoas em um barco feito pra caber umas 20. Na primeira vez que eu vi essa cena, eu quase comecei a chorar. 

Quando o barco chegou, não sei muito como explicar, bateu um negócio em mim que aquela emoção se transformou em foco. Eu não podia entrar em desespero. A meta era tirar o povo do barco o mais rápido possível, sem que ninguém caísse na água. No nervosismo, as pessoas pulavam do barco e ficavam 100% encharcadas. Muita gente chegava literalmente morrendo de frio, com hipotermia. A temperatura variava entre 5 e 10 graus. Em alguns dias, fazia 0 graus, menos 1, menos 2. Por ser ilha, ventava muito, um vento gelado.  Fui lá e ajudei a tirar primeiro as crianças, depois as mulheres e por último os homens. O procedimento é colocar todo mundo em terra firme e checar se alguém precisa de médico. Depois, ajudar a tirar os coletes salva-vidas e acalmar as pessoas, porque elas chegam super nervosas. Quando todo mundo percebe que tá bem, que os filhos estão bem, a mulher, o marido, os irmãos... É uma felicidade muito grande. Eu nunca vi felicidade que nem aquela e provavelmente nunca mais vou ver.  [trilha sonora]

Kety Shapazian: Em um dos meus primeiros barcos, uma família chegou e quando viu que estava em terra firme, eles se abraçaram. E eu estava ali do lado e fui abraçada junto com eles, pai, mãe e filho. Eles choravam, gritavam, agradeciam a Deus por estarem vivos. Foi um momento lindo. Muita gente falava: “Vocês são as primeiras pessoas boas que a gente encontra no caminho”. A trajetória deles é longa. Esses refugiados não saíram da Turquia, eles saíram da Síria, saíram do Afeganistão, atravessaram todo o Irã e depois atravessaram a Turquia. Saíram do Paquistão, que é mais longe ainda. Tinha gente que chegava do Sri Lanka, de Bangladesh, de países africanos. As pessoas demoravam meses pra chegar naquela praia onde nós estávamos e finalmente pisar em solo europeu. [trilha sonora]

Gabriela Shapazian: Na cabeça dos refugiados, atravessar o mar era a parte mais difícil. E a gente sabia que eles ainda iam ter muitos desafios pela frente. 

[trilha sonora]

Eles iam ter que ir pro campo de refugiados, que é um lugar horrível. Iam ter que dormir lá, passar frio, esperar autorização, depois atravessar não sei quantas fronteiras a pé até chegar na Alemanha, onde pediam asilo. É uma jornada longa. Mas, naquele momento, eles estavam muito felizes e aliviados por estarem vivos.

A nossa prioridade, depois de tirar todo mundo do barco, era levar as pessoas para um campo de transição, construído pelos voluntários no meio da estrada, e dar roupa e sapato seco para todo mundo. Depois a gente distribuía comida, água e chá. Os refugiados ficavam ali umas 2 ou 3 horas, antes de serem levados pro campo onde podiam se registrar. 

Enquanto um grupo de voluntários cuidava de quem tinha acabado de chegar, outro já corria pra receber os barcos. Eu olhava pro mar e dava pra contar: um, dois, três, quatro, tudo ao mesmo tempo. A gente chegou a receber dez barcos, com cem pessoas dentro de cada um, no intervalo de uma hora, em uma praia minúscula. Minha mãe e eu acabamos ficando 45 dias, não dez. Não tinha a menor possibilidade de eu ir embora e passar janeiro inteiro de férias em casa, fazendo nada.

Por mim, eu largava a escola e nem voltava pro Brasil. Mas a minha mãe fez questão que eu terminasse o Ensino Médio. Eu voltei pra casa chorando e decidida a retornar para Europa na primeira oportunidade que eu tivesse. A minha cabeça tinha virado do avesso. Eu estava 100% focada na causa dos refugiados e só pensava em voltar para a Grécia. 

[trilha sonora]

Kety Shapazian: Quando a Gabi falou: “É isso que eu quero fazer da minha vida”, eu comecei a pensar numa forma de ganhar dinheiro pra bancar o sonho dela. Ser voluntário é caro, porque você paga pra trabalhar. Eu tinha saído de um emprego e estava perdida, procurando o que fazer. Até que o destino se encarregou de me dar uma luz. 

A Gabi estava enlouquecida em São Paulo, querendo ajudar os refugiados. Aí a gente foi até uma ocupação de palestinos e sírios, no centro da cidade. Na primeira porta que a gente bateu, conheceu um rapaz e a mulher dele, grávida de 6 meses. Ela não estava fazendo pré-natal, não tinha enxoval. Aí eu levei ela no médico, organizei um chá de bebê na minha casa. E nesse chá de bebê, eu ganhei uma garrafinha com umas florzinhas. Na hora eu falei: “Nossa, é isso que eu vou fazer. Eu vou vender flor."  [trilha sonora]

Só que eu não sabia nada sobre arranjo de flor. As únicas vezes que eu comprei flor na vida foi pra enfeitar numa casa em festa de Natal. Eu não sabia quanto pagar, quanto cobrar, nem onde vender. Aí eu comprei umas garrafinhas, umas florzinhas, montei os arranjos e fui vender por 15 reais num farol perto de cada. Aí pronto. Por causa disso, a minha mãe parou de falar comigo. O rapaz que passeava com os cachorros me viu e perguntou se eu estava bem. Um menino da escola comentou com a Gabi que tinha me visto vendendo flor na rua. A Gabi achava o máximo, e foi isso que me deu força. Porque estar no farol foi uma experiência alucinante. As pessoas fechavam o vidro na minha cara, faziam sinal de “não” com a mão. Eu me sentia muito mal. Hoje, eu tenho receio de fechar a janela do carro e magoar alguém na rua. 

[trilha sonora]

Muita coisa aconteceu dessa experiência pra cá. Os arranjos viraram um negócio oficial. Eu criei uma marca chamada Flores para os Refugiados. A Gabi é minha sócia na empresa e parte do lucro financia o trabalho dela. Transformei a minha casa num ateliê, formei uma clientela, criei uma identidade própria, usando folhagens diferentes, cores vibrantes.

Eu sempre falo: eu preciso fazer um arranjo tão bonito quanto o trabalho da minha filha. O Flores para os Refugiados não existe sem a Gabi. E o trabalho dela não existe sem o Flores para os Refugiados. São duas coisas que andam de mãos dadas. Tem cliente que nem quer saber sobre o projeto. Mas também tem gente que compra e fala: “O arranjo é lindo, mas o trabalho da sua filha é maravilhoso e eu quero apoiar”.

[trilha sonora]

Gabriela Shapazian: Eu voltei pra Europa várias vezes. Muitas das pessoas que foram pra Grécia em 2015 fundaram organizações não-governamentais. Como eu conheço elas, sou convidada pra vários projetos. Já trabalhei em escolas, dei aulas de inglês, ajudei os refugiados a fazer currículo, dei informações, organizei logística para receber doações… Enfim, várias atividades. 

Em 2017, trabalhei em campos de refugiados na Sérvia. As pessoas eram torturadas pela polícia quando tentavam cruzar a fronteira para sair do país. Elas chegavam com braço, perna, costela quebrados, com mordidas de cachorro no corpo inteiro. A maioria era formada de menores desacompanhados. Eu não aguentei ficar lá. Nessa viagem, descobri que eu preciso fazer pausas, de tempos em tempos. Tenho que sair de cena pra esfriar a cabeça. Tudo isso é muito pesado emocionalmente. [trilha sonora] Mesmo com todas as dificuldades, eu sou muito feliz no meu trabalho. Os meus valores mudaram completamente. Fico super brava quando a minha mãe reclama que não tem dinheiro. Penso 6 meses antes de comprar qualquer coisa. Eu reflito: “Preciso mesmo disso?” Vi famílias prontas pra atravessar a Europa a pé com uma sacola de plástico, porque perderam absolutamente tudo. E dentro da sacola tinha uma garrafa de água e uma fruta.

Trabalhar com refugiados abriu o meu olhar para todo o resto, como o morador de rua que mora perto da minha casa desde sempre. A gente nunca tinha conversado com ele. E quando voltamos de Lesbos pela primeira vez, minha mãe foi perguntar se ele precisava de alguma coisa. No convívio com pessoas tão diferentes de mim, eu aprendi que o estranho não é ruim. Ele é só desconhecido.

[trilha sonora]

Kety Shapazian: Uma vez me perguntaram: “A Gabi não vai pra faculdade? Não vai um dia dar entrada no apartamento? Comprar carro? Ficar noiva?” Eu falei: “Não sei, pode ser. Mas isso não tem importância pra gente”. Eu me sinto muito sortuda de ser mãe da Gabi, mas eu também permiti que ela se tornasse esse ser humano maravilhoso que ela é. Eu vejo muito pai e mãe reclamando de filho, mas só exige do filho que ele vá pra faculdade. E de repente o futuro daquele jovem não tá numa sala de aula. 

A coisa mais certa que eu fiz na vida foi ter levado a Gabi comigo pra Grécia. Eu me arrependeria profundamente se ela não tivesse ido. Hoje, eu vejo que era ela que tinha que estar lá, não eu. [trilha sonora]

Ana Raia: Se colocar nos sapatos de outra pessoa, compreender os sentimentos e perspectivas alheias e usar isso para guiar nossas ações é o real significado de empatia. E empatia cria um lugar sem julgamentos, é capaz de promover grandes transformações individuais e sociais. Há quem defina a empatia como a habilidade mais valiosa e funcional do nosso século e eu concordo. A história de Gabriela é um bom exemplo da potência da empatia. A jornada empática que ela trilha começou com a mãe e se estendeu para o mundo. A mãe de Gabriela, a Kety, é empática com os sentimentos e desejos da filha e na empatia encontra coragem para desviar de padrões e alimentar o propósito de sua filha. Já a Gabriela, ao se colocar no lugar dos refugiados e sentir com eles os seus roteiros de vida, se permitiu mudar a rota de sua vida. A empatia dela salva o mundo que salva o mundo dela. Pesquisas mostram que nascemos com empatia, mas precisamos praticá-la ao longo da vida e sabe como? Uma dica é praticar a escuta ativa, sem julgamentos e livre de preconceitos. Eu gosto muito dessa frase: Você julga a dor do outro como tempestade em copo d'água porque não viu como essas nuvens se formaram. Você só pode entender as pessoas e ajudá-las se senti-las na pele e entender de onde elas veem, como pensam e pelo que passaram. Nesse lugar, a conexão verdadeira floresce e soluções ativas podem surgir para reparar qualquer conflito. E Gabriela confirma isso. Com a sua vivência, ela experimenta a verdadeira conexão com o outro e com o mundo. Por onde passa, gera transformação social, revoluciona as relações humanas porque empatia é amor.  [trilha sonora]

Geyze Diniz: Nossas histórias não acabam por aqui. Confira mais dos nossos conteúdos em plenae.com e em nosso perfil no Instagram @portalplenae. [trilha sonora]

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