Para Inspirar

Verônica Hipólito em "A zona de conforto é um lugar prazeroso, pena que nada acontece lá"

A sétima temporada do Podcast Plenae está no ar! Confira a história da atleta Verônica Hipólito. Aperte o play e inspire-se!

20 de Fevereiro de 2022


Leia a transcrição completa do episódio abaixo:


[trilha sonora]


Verônica Hipólito: Eu tenho 25 anos e já passei por quatro cirurgias, três no cérebro e uma no intestino. Também sofri um AVC, que deixou uma sequela de paralisia no meu corpo. Mas eu não só isso. Eu também sou campeã mundial nos 200 metros rasos, tenho sete medalhas parapan-americanas, duas medalhas paralímpicas, uma de prata e outra de bronze. Sou uma das oito mulheres mais rápidas do mundo de todos os tempos do esporte paralímpico. Há quem diga que as minhas conquistas são fruto do destino, mas eu não compro essa história. Eu acredito em criar e aproveitar as janelas de oportunidade, se arriscar, sair da zona de conforto. 


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Geyze Diniz: Exemplo de resiliência, a atleta paralímpica Verônica Hipólito, ao longo da sua infância, adolescência e vida adulta, teve sempre que driblar seus problemas de saúde para ultrapassar seus recordes, desafios e, literalmente, correr atrás dos seus sonhos. Verônica se abala com as frustrações como qualquer um de nós, mas não se permite cair no lugar do vitimismo. Para ela, a chave do sucesso é aprender a jogar com as cartas que a vida lhe dá. 


Conheça a história da velocista e orgulho nacional Verônica Hipólito. Ouça, no final do episódio, as reflexões do especialista em desenvolvimento humano, Mark Kirst, para te ajudar a se conectar com a história e com você mesmo. Eu sou Geyze Diniz e esse é o podcast Plenae. Ouça e reconecte-se.


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Verônica Hipólito: O esporte sempre fez parte da minha vida. Por incentivo dos meus pais, pratiquei de tudo um pouco. Natação, volêi, futebol, ginástica, futsal, basquete, tênis de mesa, de quadra, judô, karatê…Ufa! Os meus pais nunca pensaram em me transformar numa atleta profissional. Eles são professores de história e acreditam na educação e no esporte como ferramenta pra formação de caráter. Essa era a motivação deles.


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Eu era ruim em quase todas as modalidades, mas me encontrei no judô. Fui pro campeonato municipal, de lá pro estadual, depois pro estadual do interior e então consegui a tão sonhada vaga pra disputar o nacional. Umas semanas antes da competição brasileira, descobri que eu tinha um tumor na cabeça e precisava operar com urgência. Eu tinha 12 anos.

 

Minha mãe me disse na época pra fazer o que deveria ser feito. Eu operei, e depois da cirurgia soube que não poderia voltar pro campeonato nacional. Na verdade, eu nem sequer poderia lutar judô novamente, nem praticar qualquer modalidade de impacto.

 

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Eu fiquei muito chateada. De uma hora pra outra, eu não podia  fazer mais a atividade que eu mais amava. Ainda na infância, na base da porrada, eu comecei a aprender um conceito que seria vital pra mim até hoje: resiliência.

 

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Resiliência é a capacidade de se adaptar às más condições. Ou, nas minhas palavras, é a vida te derrubar, te encher de porrada e você se levantar. 

 

Meu pai viu que eu tava muito triste e me inscreveu num festival de atletismo, pertinho de casa. Era domingo, umas 7 horas da manhã, e eu não queria ir, mas ele me levou mesmo assim. Eu corri pela primeira vez, e levei uma surra. Não liguei pra derrota e saí de lá falando que queria ser a menina mais rápida da cidade. Meu pai disse: “Então, se esforce para isso”. Parece cena de filme, eu sei, mas aconteceu desse jeitinho.

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Eu comecei a treinar atletismo e me empolguei. Tava indo tudo bem, até que uma noite, aos 14 anos, senti um formigamento no braço e na perna. Eu tava em casa. Tentei falar pro meu irmão, mas a frase não saía da minha boca. Caí no chão e acordei no hospital, com a parte direita do meu corpo paralisada. Me disseram que eu tive um AVC e não poderia voltar a correr, talvez nem caminhar. Na alta, na porta do hospital, meu pai me disse pra eu não aceitar que alguém dissesse o que era possível ou impossível pra mim. Eu voltei pra fisioterapia e pra fonoaudiologia. Reaprendi a falar, a andar, a trotar, a correr e a correr mais rápido.

 

Procurei a melhor equipe de atletismo da cidade, fiz um teste e passei. Mas, por mais que eu treinasse, eu continuava mancando. Eu tinha espasmos e meu braço ficava extremamente rígido. O treinador da época disse que provavelmente eu era uma atleta paralímpica, que estava competindo com os olímpicos. 

 

Aos 16 anos, fiz uma classificação pra saber se eu tinha legitimidade ou não pra entrar no movimento paralímpico. E eu tinha, pela sequela do AVC. No campeonato regional, conquistei 3 medalhas de ouro. Depois, mais três no nacional. E no meu primeiro mundial, me tornei campeã e recordista dos 200 metros rasos. Naquele momento, eu não era só a mais rápida da cidade, eu era a mais rápida do planeta! 

 

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Eu continuei ganhando tudo e, aos 19 anos, faltava só um ano pra competição mais desejada por todos os atletas: as paralimpíadas. Até que eu comecei a me sentir mais fraca, com sono, e descobri que tinha mais de 200 tumores no meu intestino grosso. Não é câncer, mas é uma mutação genética que facilita a produção de tumores benignos em alguns lugares do meu corpo. De novo: problema versus solução. Eu acreditei na ciência e encarei a cirurgia pra retirar 90% do meu intestino grosso. Me recuperei e voltei a correr, conquistei o índice pros jogos paralímpicos e fui pro Rio de Janeiro. Foi a minha consagração. Eu ganhei a medalha de prata nos 100 metros rasos e bronze nos 400. 

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É claro que, como atleta, eu sempre quero mais. Eu tava voando e mirando nos ouros que eu queria conquistar em Tóquio. Mas o tumor no cérebro voltou. Eu operei. Em 2018, tive que repetir a cirurgia, por causa de erro médico. Dessa vez, o baque foi imenso, o maior de todos. 

 

Eu já não tinha uma parte da minha hipófise, que é uma das glândulas que produz hormônios. Por causa dos remédios, o meu peso foi de 47 quilos pra mais de 70. Eu vestia PP com folga e, de repente, passei a usar GG. De repente, eu tava cheia de estrias, com uma barriga enorme. Eu não aceitava aquele corpo.

 

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Foi muito frustrante. Eu me perguntava: por que eu? Se tem tanta gente que faz coisa errada, por que isso acontece comigo? Por que minha família tem que passar por isso de novo? Eu busquei uma resposta em vários lugares: no catolicismo, no protestantismo, na umbanda, no espiritismo, no budismo, em tudo que tinha “ismo”. E não encontrei um por quê. Ninguém desceu do céu pra falar comigo. Eu não queria mais treinar, e eu sentia raiva o tempo todo. Era só raiva, raiva e raiva. Demorou um tempo pra eu entender que aquele não era o melhor jeito de encarar as coisas.

A minha inspiração pra voltar a treinar foi olhar pros meus pais, pra minha saudade de correr, pra minha equipe, pras pessoas que me incentivam. Eu entendi que eu podia sentir raiva, ficar brava, insegura, mas eu tinha que voltar a fazer aquilo que eu sei, aquilo que eu amo: correr. 

 

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A primeira corrida de treino eu me lembro muito bem. Tinha chovido a semana inteira. No dia, fez um sol de rachar a cabeça. Eu já tava me firmando bem em pé, e o meu fisioterapeuta, o Mauro Meloni, falou pra mim: “Tenta correr, mas só um pouquinho”. 

 

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Eu fiquei com medo. Aí refletiu um raio de sol numa placa de vidro e fez um reflexo fortíssimo. Eu sou fã de Star Wars, e o Mauro disse: “Corre em direção à luz”. Eu dei risada, tomei coragem e consegui dar quase um trote.

Depois veio a primeira competição, no Centro de Treinamento Paralímpico Brasileiro, em São Paulo. Era uma prova de 100 metros. Eu só consegui índice pra tá lá, porque pegaram a minha marca do ano anterior. Tinha muita gente assistindo e eu queria que todo mundo fosse embora antes da minha corrida. Mas a galera não foi. Quando eu entrei na pista, a arquibancada tava lotada, lotada de tudo. E aí alguém berrou: “A Verônica vai conseguir, ela sempre consegue”. Aí mais gente gritou palavras de incentivo.

Quando comecei a correr, os 100 metros pareciam mil quilômetros. Meu tempo foi péssimo, mais de 14 segundos, que é muito acima da minha melhor marca, 12 segundos e 80 centésimos. Tomei um coro e cheguei em último lugar. Doeu. Eu chorei de raiva, tristeza, desespero e até felicidade, tudo misturado. Minha mãe tava lá e ela falou: “Agora é trabalhar”.

Fui pro Parapan, em Lima. Como eu não acreditava no pódio, eu não queria que minha mãe fosse comigo. Ela insistiu e disse: “Eu vou porque eu quero te ver, no primeiro lugar ou não”. Na hora da competição, me deram 5 minutos e eu pensei: “Meu, já que eu tô aqui, bora. Minha mãe vai continuar me assistindo, meus amigos vão me assistir, eu vou fazer o que?” Eu ainda tava acima do peso, me recuperando de duas canelas quebradas, mas dei o meu melhor. Na prova de 200 metros, eu saí muito rápido. Faltando 30 metros pra acabar, eu sabia que eu ia conquistar a prata e comecei a chorar de felicidade. Depois meu professor brigou comigo depois. Se eu não tivesse chorado, dava pra tentar o ouro. Mas eu ganhei a prata também nos 100 metros. Eu, que antes desprezava a prata, fiquei MUITO feliz com essas medalhas. O significado delas era gigante.

 

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Mas a minha principal conquista de todas, curiosamente, foi NÃO conseguir ir pros Jogos Paralímpicos de Tóquio. Sabe aquele tumor no cérebro? Ele voltou e interrompeu o meu treino. Dessa vez, parece que virou uma chavinha na minha cabeça. Eu não senti raiva. Eu não perguntei o “por que eu?”, eu nem fui buscar respostas no além. 

 

A gente tem a mania de só considerar o sucesso quando traça um plano e aquele plano dá certo. Eu entendi que não é bem assim. O sucesso não necessariamente vem da maneira que a gente desenhou. E aí entra, de novo, a resiliência. Eu aprendi a jogar com as cartas que a vida me dá. É chato ter operado tantas vezes? É chato. Eu fico chateada? MUITO! Mas a vida não foi feita pra gente ficar chorando e resmungando. Eu sinto a raiva e a tristeza, mas depois enxugo as lágrimas e busco a solução. Para que complicar? De uma maneira inesperada, recebi um convite do canal SporTV pra comentar os Jogos Paralímpicos de Tóquio. Eu me diverti e aprendi MUITO. Foi uma maneira diferente de ir pra competição, sem o peso de antes.

 

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Muita gente brinca que a vida não é uma corrida de 100 metros, mas sim uma maratona. A minha provavelmente é uma maratona, de tantas coisas que acontecem. Mas uma maratona formada por ciclos de 100 metros. E uma corrida de 100 metros não é definida em 12 , ou em 9 segundos, se você for o Usain Bolt. O resultado é definido no dia-a-dia, quando você decide se levantar ou ficar na cama. Quando você decide sentar e chorar ou ir pra cima. Todos os dias, eu coloco um tijolinho na construção da minha final Paralímpica, na medalha de ouro que eu quero buscar em Paris. Eu vou operar o cérebro pela quarta vez e vou voltar aos treinos.

A zona de conforto é um lugar prazeroso, pena que nada acontece lá. Já a zona onde estão os seus sonhos é um lugar cansativo, muitas vezes dolorido e cheio de frustrações. Na zona de conforto você não sente medo e raiva, mas fica estagnado pra sempre. Vive no eterno “e se”, “e se eu tivesse tentado?”

Muitos achavam que seria impossível eu voltar a andar depois do AVC. Eu voltei a correr. Muitos achavam que seria impossível eu conseguir ser reconhecida no mundo esportivo. Eu me tornei a mulher mais rápida do mundo e me tornei medalhista paralímpica. Muitos achavam que seria impossível eu ir pra Tóquio. Eu fui, de uma maneira inesperada, mas fui. Nada é impossível. Trabalho duro, humildade, honestidade e resiliência nos levam para lugares incríveis. Tente.

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Mark kirst: A história de infinitas superações de Verônica é capaz de nos demonstrar, na prática, um dos maiores segredos no uso da nossa mais perigosa e potente ferramenta humana: a mente. Nesta existência atual, duas forças convivem a todo momento. Um pulso evolutivo e expansivo, que nos estimula a crescer, superar os nossos limites e conquistar mais vida a cada oportunidade. A outra força é a da resistência, que busca poupar energia, preservar o conhecido e defender a famosa zona de conforto. 


A mente é o filtro que determina qual dessas forças vencerá a prova de cada dia. O segredo aberto para todos, mas compreendido por poucos, é o poder de decisão que todos temos ao alcance a todo momento. Veronica define a virada de perspectiva com simplicidade: “vou encarar a situação como problema ou solução”? Fomos inspirados a nos permitir sentir a potência da raiva para depois poder transmutar a dor em força de evolução. Independente da magnitude do obstáculo ou desafio, se cedermos a reatividade automática e negativa da mente, cairemos numa espiral descendente que nos leva a questionar a própria capacidade, sabotar as possibilidades e paralisar qualquer ação. Ao encarar desafios de tamanhos inimagináveis para a maioria de nós, e continuar mesmo assim escolhendo pela volta por cima, Verônica nos convida a perceber que a nossa realidade é sim produto da nossa liberdade de interpretação. Qual é a sua corrida? E quais são os seus obstáculos? Sua vitória mora no ouro, ou na capacidade de cair e levantar? 


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Geyze Diniz: Nossas histórias não acabam por aqui. Confira mais dos nossos conteúdos em plenae.com e em nosso perfil no Instagram @portalplenae.


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Para Inspirar

Ingrid Silva em "O ballet clássico precisa evoluir"

A oitava temporada do Podcast Plenae está no ar! Confira a história da bailarina Ingrid Silva. Aperte o play e inspire-se!

5 de Junho de 2022


Leia a transcrição completa do episódio abaixo:


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Ingrid Silva: Eu sempre fui magérrima, com 45 quilos. Mas, como boa brasileira, tenho curvas. Aos 13 anos, ouvi de uma professora de balé a frase que foi o meu primeiro gatilho sobre o meu corpo. Ela disse: “Ingrid, ou você coloca o seu bumbum pra dentro ou nunca mais vou te corrigir”.

Se você fez balé clássico, provavelmente já ouviu algo semelhante. Até hoje eu não descobri como se coloca um bumbum pra dentro. Esse tipo de correção só existe porque o balé foi criado nas cortes da Europa, onde os corpos são muito diferentes dos brasileiros. 


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Geyze Diniz: Carioca, determinada e brilhante. Esses são só alguns adjetivos do nosso orgulho brasileiro: Ingrid Silva. Nos palcos do Rio de Janeiro ou de Nova York, Ingrid dribla com maestria os obstáculos da vida e abre caminhos para um balé e um mundo mais justo e inclusivo. 


Conheça a história da bailarina Ingrid Silva pelos palcos da vida e do mundo. Ouça no final do episódio as reflexões do rabino, escritor e dramaturgo Nilton Bonder para te ajudar a se conectar com a história e com você mesmo. Eu sou Geyze Diniz e esse é o Podcast Plenae. Ouça e reconecte-se.


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Ingrid Silva: Eu venho de uma família humilde. A nossa casa fica na zona norte do Rio de Janeiro. Minha mãe matriculava meu irmão e eu em todos os cursos que tinham na Vila Olímpica da Mangueira, que fica ali pertinho. A gente fez natação, futebol, ginástica olímpica, basquete, artes marciais, capoeira. Quando eu tinha 8 anos, ela me inscreveu em um projeto social chamado Dançando para Não Dançar. Eu nunca tinha ouvido falar de balé, mas passei na audição e o balé nunca mais saiu da minha vida.


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Eu aprendi a dar as minhas primeiras piruetas numa sala pequena, com piso de linóleo, barras nas paredes e o calor abafado do Rio. Aos 11 anos, fiz uma audição na Escola de Dança Maria Olenewa, do Theatro Municipal, e passei a estudar lá também. Foi nessa escola que uma professora me chamou a atenção para um aspecto que eu não tinha percebido em mim mesma. Ela me disse: “Você tem talento, mas não vê a dança como carreira. Sabe por quê? Você não acredita em si mesma”. 


E ela estava certa. Eu não me achava boa o suficiente. Além disso, eu não via ninguém parecido comigo nas grandes companhias de balé do Brasil. Quando eu saí do subúrbio, me dei conta que o balé era (e ainda é) uma arte elitista. Eu sempre fui uma das poucas negras e periféricas de qualquer turma de dança. Olhando pra trás, eu percebo que a ausência de representatividade me trazia um sentimento de não pertencer àquele universo. 


A minha falta de autoconfiança se refletia no palco. Eu não gostava de dançar na frente. Eu tenho 1 metro e 57 de altura e preferia me esconder atrás das outras meninas. Um dia, a Bethânia Gomes me viu dançar numa sala de aula e me deu uma chamada por causa disso. A Bethânia era a primeira bailarina na Companhia Dance Theater of Harlem naquela época. Ela me disse: “Ei, você! Vem pra frente. Você não é alta, não pode ficar atrás. Você tem que se acostumar a ficar na frente”. 


A Bethânia me achou talentosa e sugeriu que eu tentasse uma bolsa de estudos na Dance Theatre of Harlem, a única companhia no mundo a ter mais bailarinos negros no seu corpo de baile. O grupo foi fundado em 1969 pelo Arthur Mitchell, o primeiro bailarino negro a assumir o posto de bailarino principal no New York City Ballet.

Ele queria oferecer às crianças do Harlem, o bairro onde ele cresceu, a oportunidade de mudar o seu futuro. 
Eu fiz um vídeo-audição e mandei pros Estados Unidos pelo correio. Fui selecionada entre mais de 200 concorrentes para participar de um curso de verão na companhia. Eu cheguei a Nova York em 2007. 


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Lembro até hoje da sensação de abrir a porta da Dance Theatre of Harlem e ver todos aqueles bailarinos negros, como eu. Eu senti um acolhimento que, até então, eu não conhecia. Foi emocionante conhecer o Mister Mitchell pessoalmente. Eu estava no estúdio 3, em uma sala ampla e luminosa, e esperava encontrar um cara com roupas de dança. Mas ele entrou de terno e bengala. Ele era um homem muito elegante. Ele se sentou numa cadeira especial e eu senti uma pressão enorme. Tremia que nem vara verde, nervosa, pensando: “Como assim? Ele fundou isso aqui?”. 


[trilha sonora]


Eu não falava inglês, mas entendia os comandos em francês. Em um momento da audição, ele pediu que a gente fizesse um port de bras, um movimento com os braços. Eu fiz, mas sempre acanhada, e ele disse: “Se você não levantar essa cabeça e se impor, te mando de volta pro Brasil”. 


[trilha sonora]


A Dance Theatre of Harlem foi o único lugar onde nenhum professor questionou o tamanho do meu bumbum. O foco das correções eram outros: a minha técnica, o movimento dos braços, a leveza e os passos. Hoje eu tenho consciência que o meu bumbum não atrapalhava em nada os meus movimentos. Só atrapalhava na cabeça de quem dava aula. Mas essa ficha demorou pra cair.


No imaginário das pessoas, existe um corpo ideal da bailarina, que é de uma mulher extremamente magra, alta, com ombros finos, pescoço longo, cabeça pequena, seios pequenos, sem músculos aparentes, sem bunda e com uma certa aparência facial. É um biotipo completamente diferente do meu, que eu nunca atingiria de maneira saudável. 


Eu não acredito nesse corpo extremamente magro, que abre portas para distúrbios alimentares e psicológicos. Em escolas antigas, como o Bolshoi, até hoje é feito um estudo no corpo da criança, para saber se ela pode entrar na escola. Dependendo da abertura do quadril, ela não é aceita. Mas quem garante que o corpo dessa criança não vai mudar? Todos nós estamos em constante mudança. 


[trilha sonora]


Essa paranoia do corpo ficou ainda mais evidente pra mim, depois que eu me tornei mãe. A gravidez é um tabu no balé. Muitas bailarinas clássicas querem ter filhos, mas não concretizam esse sonho, por medo de não conseguirem voltar ao balé.

Existe um mito, não só no balé, de que a mulher não pode ser mãe e profissional de alta performance ao mesmo tempo. Ninguém fala isso para os homens! Eles têm filhos e continuam dando piruetas e dirigindo companhias, mas a mulher não pode? É possível, sim, ter filhos e voltar ao palco. 


[trilha sonora]


A minha consciência sobre o meu corpo negro se estendeu também ao meu penteado. A minha mãe começou a alisar o meu cabelo lá pelos 12 ou 13 anos. Eu só fui assumir os meus cabelos naturais mais de uma década depois. Quando eu fiz a transição capilar, recebi muitos elogios, menos da minha mãe. Ela não gostou muito da ideia não. Quando me viu, perguntou: “Que cabelo é esse, Ingrid? Por que você mudou?”. Eu respondi: “Porque eu sou esta pessoa e eu me amo assim”.


Ela claramente não entendeu e disse que estava feio. Eu expliquei que não me sentia confortável em viver um padrão que não era o meu. Expliquei que, em Nova York, pela primeira vez, eu tinha a liberdade de ser quem eu queria, sem medo e sem vergonha. Essa conversa mudou a mente dela e ela mesma fez a transição um tempo depois. 


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O penteado, obviamente, não atrapalhou em nada na minha dança. Desde que o balé clássico existe, o coque da bailarina precisa ser super esticado, com coque preso na redinha e nenhum fio fora. Eu continuo fazendo isso, mas com um coque afro. Eu mostrei pra outras pessoas que é possível sim ser bailarina clássica e ter um black power.

Virei referência no assunto e fui a primeira bailarina negra brasileira a sair na capa da
Pointe Magazine, uma das revistas mais importantes e respeitadas no mundo da dança. No ensaio de fotos, eu tô com os meus fios soltos e naturais, quebrando as barreiras do conservadorismo. A transição capilar foi uma das coisas mais importantes que eu fiz na minha vida. Se eu soubesse que era tão bom, teria feito antes.


[trilha sonora]


Mas, esse é o tipo de coisa eu não tinha noção quando era mais novinha. Eu também não tinha noção sobre um detalhe que parece pequeno, mas não é: a cor do uniforme do balé. No Brasil, eu sempre usei meia-calça e sapatilhas da cor rosa. O ponto é que pra nós, bailarinos, a meia-calça e a sapatilha são a continuação do nosso corpo. Então, o rosa é o tom mais próximo da pele europeia, por isso foi adotado como modelo.


Quando eu cheguei nos Estados Unidos, aprendi com outros bailarinos a pintar a minha sapatilha com uma base líquida no tom da minha pele. É um padrão que o Mister Mitchell, um homem visionário, implantou nos anos 70 na companhia. Na Dance Theatre of Harlem, o uniforme é da cor da pele de cada bailarino e não rosa.


Eu passei 11 anos fazendo esse ritual de pintar as sapatilhas, até que, em 2019, entrei em contato com um fabricante, perguntando se eles não poderiam produzir um par no tom da minha pele. Eles toparam! Demorou um ano, mas elas ficaram prontas! Foi emocionante a sensação de dever cumprido, de viver na pele a diversidade no mundo da dança.

Mas eu ainda não considero uma super vitória, porque a sapatilha é feita sob medida. Orgulho mesmo, vai ser no dia que eu tiver a minha própria marca. E que as pessoas possam ir até a loja comprar uma sapatilha da cor da sua pele. Aí sim, vai ser um grande marco. 


[trilha sonora]


Em 2020, um par de sapatilhas que eu pintava virou peça de museu. Elas estão expostas no Museu Nacional da Arte Africana Smithsonian, nos Estados Unidos. É uma instituição extremamente importante pra história do povo negro americano. Foi um passo importante pra inclusão da dança nessa mudança de mentalidade que a gente tá vivendo. Mas ainda temos um longo caminho pela frente. 


São poucas, mas muito poucas mesmo, as pessoas que entenderam o significado da pluralidade dos corpos, gêneros e cores no mundo do clássico. Várias meninas negras já me contaram que, quando falaram pro professor de balé que queriam ser bailarinas clássicas, ouviam: “Você não quer fazer aula de dança contemporânea? Jazz? Hip hop?”. Como se o clássico não servisse pra elas.

Muitas obras do balé foram criadas há muito tempo, são antigas mesmo, mas as pessoas que dançam mudaram. O mundo mudou. Ver essas narrativas em corpos diferentes é fazer essa arte evoluir.


[trilha sonora]


Se eu não tivesse vindo pra Dance Theatre of Harlem, onde existe diversidade, talvez eu não teria conquistado uma carreira profissional. Normalmente as companhias de dança só tem 2 ou 3 bailarinos negros entre seus 40 bailarinos! Para mudar essa realidade, eu fundei com Ruan Galdino e o Fábio Mariano, dois colegas de profissão no Brasil, o Blacks in Ballet, um movimento pra dar destaque a bailarinos negros e contar as suas histórias.

A plataforma tem uma biblioteca digital e oferece workshops e bolsas de estudo. Tudo isso para gerar oportunidades pra essas pessoas em companhias profissionais. O nosso grande sonho é um dia realizar o maior festival de dança de bailarinos negros do mundo. Nós queremos mostrar que existem muitos bailarinos negros super talentosos tendo sucesso em companhias de dança importantes e internacionais. Nenhuma ação é pequena quando se trata de mudar o mundo. 


[trilha sonora]


Nilton Bonder: No esforço de lapidar o seu corpo para a excelência da arte do balé, Ingrid modela e aprimora também a sua consciência. E este despertar para um corpo maior, um corpo que não é apenas o físico, mas o corpo percebido no espaço social e cultural, lhe oferece a oportunidade não apenas de uma coreografia no palco, mas na vida. Esta nova consciência permitirá que tudo que em seu corpo parecia ser uma deficiência, uma imperfeição nos padrões do balé, se tornem um ativo, uma potência nova. 


Nossa lição maior é sobre acreditar em si mesmo. Esse é o conselho inicial que põe em andamento sua carreira. A inadequação de não configurar os padrões de corpo e pele, precisa ouvir “sai da linha de trás e vem pra frente”. E o encolhimento de não corresponder ao biotipo esperado, precisava ouvir “levanta a cabeça e se impõe”. Ir pra frente ao invés de esconder o bumbum e as curvas resultou no empoderamento de sua graça, levantar a cabeça ou invés de se envergonhar do cabelo e da pele, a investe de sua beleza.

Habilitada de sua graça e beleza, se abrem não só os caminhos do sucesso, mas da autenticidade. Essa é a chave para não só abrir caminhos para si, mas para todos os outros bailarinos, que seja por cor de pele, especificidade física, ou qualquer outra convenção que não esteja vinculada à própria arte, tenham maior oportunidade. 
Ingrid lutando por si, acabou lutando por todos. O seu progresso não é apenas o de sua biografia, mas é o progresso do mundo. A lição é clara, saber encontrar o corpo, o seu sujeito autêntico, permite dançar a vida. 


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Geyze Diniz: Nossas histórias não acabam por aqui. Confira mais dos nossos conteúdos em plenae.com e em nosso perfil no Instagram @portalplenae.


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