Para Inspirar

Veruska Boechat em “O amor que cresce com a dor”

Na terceira temporada do Podcast Plenae - Histórias para Refletir, conheça a jornada de luto e autoconhecimento de Veruska Boechat

22 de Novembro de 2020


Leia a transcrição completa do episódio abaixo:

[trilha sonora]

Veruska Boechat: Meu marido foi o meu maior garoto propaganda. Por causa dele, todo mundo acha que eu sou a pessoa mais doce da Terra. Doce… É como ele me chamava. Ele me colocou esse apelido quando a gente se conheceu. Nunca mais parou de me chamar assim. Ainda hoje me param na rua e perguntam: você que é a Doce Veruska? Sou eu. Doce Veruska Boechat.

[trilha sonora]

Geyze Diniz: Não é por acaso que o apelido dela é "doce". Uma mulher que mistura ternura e garra, que possui uma trajetória de força de vontade e resiliência. Compartilhar a história da jornalista Veruska é compartilhar uma história de amor, de discernimento assertivo e sabedoria instintiva. Uma história de conexão entre mente e coração. Lembrar do passado e ressignificar o presente é um pouco do que ela compartilha com a gente. Ouça no final do episódio as reflexões da professora Lúcia Helena Galvão para ajudar você a se conectar com a história e com você mesmo. Eu sou Geyze Diniz e esse é o Podcast Plenae. Ouça e reconecte-se.

[trilha sonora]
Veruska Boechat: Todas as pessoas próximas da gente, quando viram a notícia da morte do meu marido, o jornalista Ricardo Boechat, achavam que eu também estava naquele helicóptero. Se o acidente tivesse acontecido em outros mil eventos que ele fez, eu certamente estaria junto. Porque eu sempre acompanhava meu marido em compromissos realizados durante o horário de aula das nossas filhas, a Valentina, na época com 12 anos, e a Catarina, que tinha 10. Mas da mesma forma que era pra eu ter perdido meu marido naquele horroroso dia 11 de fevereiro de 2019, não era pra eu estar no helicóptero.

[trilha sonora]
Na véspera, um domingo, ele me disse que teria um compromisso na segunda. Mas  nem lembrava direito o que era, pra quem, onde, a que horas iria ou quando voltaria. Era a cara dele não saber nada da agenda. Ele era brilhante, mas muito muito desorganizado e só sabia funcionar daquele jeito confuso. E me confessou: não queria ir.

Ele apresentava o programa na rádio BandNews FM de manhã e o Jornal da Band na TV, à noite. Eu nunca gostei que ele assumisse muitos outros compromissos além desses. Achava que ele se desgastava demais e passava pouco tempo em casa. Mas já que ele aceitava participar desses eventos, dar palestras, esse tipo de coisa, eu ia junto pra ajudar. Porque, se eu não fosse, eu sabia que ele daria atenção pra todo mundo e não almoçaria, por exemplo.
Qualquer um que já foi casado ou é casado sabe que nem todos os dias são maravilhosos. Tem dia que você briga e o outro sai de casa bravo ou triste. E uma das coisas pelas quais eu sou mais grata é que naquela segunda-feira, ele se despediu de mim como se a gente fosse namorado. Eu nem sei, nem quero saber como é sofrer uma perda dessas que eu sofri sem estar bem com a pessoa. Por isso ficou claro pra mim que é preciso viver cada dia sem deixar arestas pra aparar, contas pra acertar, coisas por serem ditas.  [trilha sonora] Naquele dia, ele beijou a mim e as meninas e foi pra rádio, às sete horas da manhã. Esse carinho da manhã, com elas acordadas, foi uma conquista nossa. Há alguns anos atrás, na hora de renovar o contrato com a Band, ele abriu mão de aumento de salário por meia hora a mais em casa. Começaria o programa às 7h30, em vez de 7 horas. E com esse tempo ele passou a pegar as meninas acordadas e se despedir delas antes de sair pra trabalhar. O sucesso profissional, ele é uma pegadinha. Muitas vezes você é seduzido por ele e acaba não tendo tempo para outras coisas importantes da vida. A gente sempre teve esse cabo de guerra. Eu dizia: de que que adianta ter tanto reconhecimento, ajudar tanto os outros e não aparecer em casa?  [trilha sonora] Naquela segunda-feira, eu acordei de manhã, planejei a minha vida como se fosse um dia normal. Eu decidi realizar um sonho da nossa mais velha, a Valentina, que era ir ao show da cantora Ariana Grande.  Depois de comprar os ingressos eu tomei banho e, quando eu saí, eu vi no Instagram da Bandnews FM um post sobre a queda de um helicóptero. Eu liguei a TV, comecei a ligar pra algumas pessoas do evento pra onde meu marido tinha ido, em Campinas. Uma pessoa da produção me disse que tava tentando falar com o piloto… Me deu um frio na espinha. Eu liguei pra um amigo que tem helicóptero. Eles têm grupos de Whatsapp e eles sempre sabem de quem é o helicóptero e quem tava dentro. Ele ficou de me ligar de volta em 5 minutos. E obviamente não ligou. Telefonei pro Fernando Mitre, diretor de jornalismo da Band, e ele me disse que tava tentando falar com o Boechat. E tentou me acalmar: “Veruska, a gente sabe que ele não atende mesmo”. Eu sentei na minha cama e liguei pros dois irmãos do meu marido, que moravam em São Paulo, naquela época. Falei: “Vem aqui agora, pelo amor de Deus”. Ninguém telefonou pra me dar a notícia. Só começou a chegar gente, gente e mais gente na minha casa. Durante uma hora, eu fiquei bem perdida, sem querer acreditar, achando que alguém ia me contar que não era verdade. Eu estava em negação. Mas, pra quem quiser saber, o pior momento da minha vida, naquele dia horroroso, não foi descobrir sobre a morte do meu marido, esse foi o segundo pior momento. O pior momento foi dar a notícia pras minhas filhas.  [trilha sonora] Eu mandei buscar as meninas na escola, sem saber como contar que o pai tinha morrido. Mas eu sou uma pessoa privilegiada e eu pude pedir orientação a uma psicóloga. Quando eu falei pra ela por telefone que eu pensava em conversar com as meninas no próprio quarto delas, ela falou: “Não, no quarto não”.  Até passar pelo luto, eu não me dava conta de que a cena do momento em que você recebe uma notícia como essa nunca mais sai da sua cabeça. Ainda mais sendo uma criança. Ainda mais perdendo o pai. Ainda mais de maneira trágica. Então, eu decidi levar as duas pro escritório, que é um lugar que a gente não tem a obrigação de ir toda hora. Há alguns anos, eu reuni um grupo de amigas e crianças na minha casa pra tomar a vacina da gripe. As pessoas iam uma por uma no escritório, onde uma funcionária da clínica aplicava a vacina. No dia da morte do meu marido, quando as meninas foram tiradas no meio da aula, chegaram em casa, viram aquele monte de gente e foram levadas pro escritório, quando eu sentei pra contar sobre o acidente, uma delas falou: “Já sei, mamãe, é pra tomar vacina, né?” [trilha sonora] A comoção nacional causada pela morte do meu marido me surpreendeu. A gente sabia que ele era querido, conhecido e que a opinião dele repercutia muito, pro bem e pro mal. Mas não sabia que ele era tão amado.  [trilha sonora] Eu tenho certeza que, onde quer que ele esteja, ele ficou muito feliz. Meu marido nunca quis velório, sempre teve pavor. Só fiz porque foi caixão fechado. Mas principalmente, porque ele se realizava na vida fazendo bem para os outros e eu tenho certeza de que merecia todas aquelas homenagens.  A cerimônia foi no Museu da Imagem e do Som, o MIS. As pessoas diziam pra eu ficar numa sala reservada, pra ter privacidade, pra não ficar lá no meio da multidão recebendo abraços de cada um. E eu pensava: pra quê? Era muito melhor eu receber o abraço de uma pessoa que saiu de casa para me dar carinho. E eu descobri que a simples presença é mais importante do que qualquer coisa que se diga. As pessoas ficam aflitas em saber o que falar. Na verdade, quanto menos você falar numa hora dessa, melhor.  [trilha sonora] Por sorte, aparecem um anjos na vida da gente. Pra mim, um deles foi a minha amiga Rosana Saad. Dois ou três dias depois da morte dele, ela disse que precisava me entregar uma coisa e chegou com uma caixinha de um brinde de carregador de celular da Band. Quando eu abri… quase morri. Dentro estava a aliança do meu marido. Eu não tinha esperança de recuperá-la. Nas circunstâncias em que as pessoas disseram que aconteceu o acidente, pensei que nem a aliança eu ia conseguir de volta. Eu não enterrei meu marido. Eu não o vi morto. Aquele anel significa muita coisa. Pra mim, era um pedacinho dele. [trilha sonora] O luto público, como o que eu vivi, ele tem vantagens. Eu não precisei cancelar uma consulta, uma aula das meninas, nada. Mas também ele tem a desvantagem de falar sobre isso o tempo todo. Quando eu finalmente conseguia levantar, me arrumar e botar o pé pra fora de casa, as pessoas vinham me dizer: “eu era fã dele, eu adorava ele…” Eu sei que é por amor, mas eu estava exausta de chorar e só queria poder falar: “Nossa, tá bonito o dia”. As primeiras semanas e meses foram de um vazio imenso. O pior horário, por incrível que pareça, não era a hora de dormir, mas o almoço pra mim. Por exigência minha, meu marido almoçava em casa. Era um momento só nosso, porque as meninas comiam na escola. A cadeira vazia escancarava  o buraco que eu sentia por dentro com a ausência dele. No primeiro mês, eu até tinha a companhia da minha mãe, da minha irmã, do meu irmão, da minha sogra. Mas ninguém é ele. Eu passei a comer fora, com amigas ou sozinha mesmo. Além dessa mudança na rotina, a fé me ajudou demais. Aprendi não só com a minha, mas com a fé dos outros. Tenho várias amigas judias e fiquei encantada com uma tradição chamada Shivá. Nos primeiros sete dias de luto, não é pra uma pessoa resolver nada prático, nem cozinhar, por isso os judeus levam comida pra quem perdeu alguém. O enlutado pode se dedicar a chorar as suas lágrimas e sofrer a sua dor. Voltar a trabalhar fora, depois de 14 anos afastada da carreira de jornalista, também ajudou a ocupar a cabeça. Quem olha pro enlutado não vê que, além da tristeza, os boletos chegam normalmente. Você perde o seu marido num dia, no outro você tem que ir ao cartório pegar a certidão de óbito. Ninguém me disse isso. Eu tive que aprender na marra. Eu tinha tantas tarefas burocráticas pra resolver, que eu não conseguia mais dormir direito. Um dia, peguei um desses caderninhos tipo moleskine, de brinde, e comecei a anotar tudo que eu precisava fazer. Assim eu dormia melhor, porque eu sabia que na manhã seguinte eu não teria esquecido o que eu tinha pra fazer. E no dia seguinte, mesmo sem vontade nenhuma, eu escolhia a tarefa mais idiota tipo “trocar a titularidade da conta de luz” e riscava da lista. Resolver uma coisa simples dessa me dava um pouquinho mais de força pra ir em frente.  [trilha sonora] Eu queria que todo mundo tivesse a oportunidade de ter um amor na vida, como o que eu tive, e que lidasse com a questão da morte de uma forma tão nobre como o meu marido. Como ele era 21 anos mais velho do que eu, ele sempre falou de morrer antes de mim. Claro que ninguém imaginava que seria tão cedo, nem de uma maneira tão trágica, mas ele deixou claro e por escrito, o que ele queria caso alguma coisa acontecesse. Eu tenho na minha cabeça muito nítido tudo o que ele esperava pra mim depois da morte dele. Isso é libertador. Somos uma sociedade que não fala sobre o luto, porque ninguém quer nem imaginar a possibilidade de morrer. Mas falar sobre a morte ajuda pra quem fica. Então eu digo pras pessoas: conversem sobre isso, digam o que esperam.  [trilha sonora] Eu ainda me me considero uma pessoa enlutada. Mas eu já consigo respirar sem aparelhos. Dizem que quando faz dois anos da morte da pessoa que a gente ama, a saudade fica maior que a dor. Eu tô esperando essa data. Enquanto isso, eu deixo o tempo fazer a parte dele. Eu aprendi que o luto não é linear: você tá péssima, depois fica média e depois fica boa pra sempre. Não é assim. Um dia você tá bem, no outro você tá mal, no outro você pode ficar bem de novo. Eu aprendi também que o luto não precisa ser congelante. A minha vida não parou. Às vezes eu posto uma foto com o Boechat e alguém comenta: “Chega, deixa ele descansar, para de falar dele”. Eu nunca vou parar de falar dele. E isso não quer dizer que a minha vida não esteja andando pra frente. Ela está andando, tenho com ele duas filhas que ele amava profundamente, que são a razão da minha vida e que dependem muito de mim. Nosso amor vive nelas.  [trilha sonora] Lúcia Helena Galvão: Eu não preciso dizer para vocês que a prova que a Veruska viveu é uma das mais fortes e doloridas que o ser humano possa viver. E, no entanto, ela não perdeu a cabeça. Soube trazer os seus sentimentos para essa espécie de centro de tratamento interno, que todos nós temos para serem cuidados e curados com muito carinho. Mas ao mesmo tempo disparou uma série de ações e reflexões perfeitas. Primeiro, foi capaz de pensar. Era pra ter sido hoje e não era para eu estar lá. Que bom que podemos nos despedir com carinho. Logo depois, ela procura uma psicóloga, orienta-se da melhor maneira possível e dá a notícia às crianças da forma mais apropriada. Tem paciência com a necessidade das pessoas de um velório público e com a forma desajeitada de quererem consolá-la que alguns usam, apesar de sua boa vontade. Aliás, saber o que dizer nestas horas nunca é fácil. Então, ela escalona os compromissos e necessidades que vão surgindo depois disso, de uma forma que fiquem suportáveis e possíveis de serem cumpridos. Muda a sua rotina para amenizar a dor, alimenta a fé, volta a trabalhar. Chora, quando é necessário chorar, mas se mantém em movimento. E você pode dizer: nossa, mas que rotina perfeita, impecável. Mas como alguém que está sofrendo tanto pode pensar dessa maneira, com tanta lucidez. Não só pode como deve. Isso é também um ato de amor para com aquela pessoa que a gente perdeu, preservando o seu mundo e para com aqueles que ficaram, preservando os seus sentimentos. E mesmo para com aqueles que ouvem essa história, para que percebam que dá para passar pelas situações mais difíceis sem se desumanizar, perder a cabeça, sem deixar que o mal que ocorreu transborde de suas fronteiras e provoque mais mal ainda. Mesmo ainda convalescente de tanta dor, a Veruska consola e aconselha. Trata-se de uma excelente e belíssima reflexão, um presente da Veruska para todos nós, um ato de generosidade. [trilha sonora] Geyze Diniz: Nossas histórias não acabam por aqui. Confira mais dos nossos conteúdos em plenae.com e em nosso perfil no Instagram @portalplenae. [trilha sonora]

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Para Inspirar

Felipe Dib em "Gratidão é mais do que agradecer, é fazer"

O empresário conta como ressignificou toda sua vida e seus valores depois de sobreviver a dois acidentes de carro,

7 de Novembro de 2022



Leia a transcrição completa do episódio abaixo: 

[trilha sonora]

 

Felipe Dib: Eu pesquisei os princípios da prosperidade nas escrituras sagradas das três maiores religiões do mundo: o hinduísmo, o cristianismo e o islamismo. O princípio número um é a gratidão. E eu descobri que a gratidão deve ser demonstrada não só com pensamento e palavras. Mas, principalmente, com atitudes. É na atitude que mostramos a gratidão.

 

[trilha sonora]

 

Geyze Diniz: O professor Felipe Dib aprendeu desde jovem a importância de ser grato por estar vivo. Depois de sofrer dois acidentes de carro, ele mudou a sua maneira de enxergar o mundo. O sonho de criança de se tornar milionário foi substituído pelo desejo de retribuir as bênçãos que recebeu na vida. 

 

Ouça no final do episódio as reflexões do Historiador Leandro Karnal para te ajudar a se conectar com a história e com você mesmo. Eu sou Geyze Diniz e esse é o Podcast Plenae. Ouça e reconecte-se.

 

[trilha sonora]

 

Felipe Dib: Hello, my friend! Desde pequeno, eu tinha uma meta na vida: ser milionário. Eu sonhava grande, queria comprar um avião, relógios caros… Só coisas assim. Eu me dediquei muito pra isso acontecer. Comecei a trabalhar aos 13 anos, no restaurante dos meus pais, lavando copos, servindo bebidas, às vezes cuidando do caixa. Nessa época, eu ainda ganhava dinheiro como comerciante informal. Eu vendia bonés, que uma amiga da minha mãe trazia dos Estados Unidos e também vendia tacos de "bet" em sociedade com meu primo. "Bet" é um jogo de rua que a gurizada de Campo Grande gostava muito. Nós passávamos fita isolante no cabo de um pedaço de madeira e oferecíamos aos vizinhos que quisessem comprar. Tudo que entrava, eu juntava. 

 

[trilha sonora]

 

Aos 16 anos, fui pra Nova Zelândia fazer intercâmbio depois de reprovar no curso de inglês e já cheguei trabalhando. Dei aula de capoeira na escola, cuidei do jardim da diretora do colégio, lavei pratos num café e varri cimento em obras. Para economizar, meu gasto diário eram 2 miojos por dia. 

 

Quando eu voltei pro Brasil, fui dar aulas de inglês. Prestei vestibular para Relações Internacionais e, no primeiro semestre, comecei a lecionar no centro de idiomas da universidade. Eu seguia no meu plano de ser milionário, juntando dinheiro sem parar. Até que um acontecimento mudou meu jeito de pensar. Na verdade, foram dois eventos: dois acidentes de carro no intervalo de um mês. Eu tinha 24 anos e, a partir dali, a minha vida tomou outro rumo. 

 

[trilha sonora]

 

No primeiro acidente, eu estava dirigindo sozinho de Campo Grande a Três Lagoas, uma cidade no interior daqui de Mato Grosso do Sul. Eu ia participar de uma troca de cordas de capoeira para receber a minha graduação de professor. Eram umas 5h15 da manhã. O céu estava cinza, meio amarronzado, começando a amanhecer. Eu dirigia a 180 quilômetros por hora, quando, de repente, eu vi uma moto a uns 100 metros na minha frente. Naquele segundo, minha decisão foi frear, porque se não, eu passava por cima do cara.

 

Eu freei com tanta força que o carro derrapou e começou a girar. O movimento parecia em câmera lenta. Enquanto o carro capotava naquele asfalto duro, eu grudei no volante e comecei a falar uma frase em árabe que toda família de muçulmanos conhece: "Bismi lérri rahmane rahim", que significa “Em nome de Deus, Clemente, Misericordioso”.

 

Eu aprendi essa frase com o meu pai, Elias Gazal Dib, e com a minha avó, Rosa, mãe dele. A minha sitê, como se diz avó em árabe, nasceu no Líbano. E  meu vô veio da Síria, fugindo de uma perseguição. Eu cresci acordando todos os dias da minha vida ouvindo meu pai rezar. Todas as manhãs, todos os dias, não importa qual seja, ele amanhece lendo em voz alta o Alcorão, o livro sagrado dos muçulmanos. Isso é constante até hoje. Eu me levanto às 5h30 da manhã pra treinar. Depois da academia, eu passo na casa dos meus pais e, quando eu chego, meu pai está lendo o Alcorão. Ele lê o livro de capa a capa, várias e várias vezes ao ano.

 

O muçulmano usa em diversas situações aquela frase que eu falei no momento da batida, em momentos tensos, para entrar em casa, para sair de casa, para começar uma oração, para fazer uma refeição, para ter uma conversa importante, antes de começar um jogo… Essa frase "Bismi lérri" é a mesma frase que começa as 114 suratas, ou capítulos, do Alcorão. 

 

Eu não sei se foi o poder dessas palavras, mas o fato é que eu não me machuquei no acidente. O carro capotou várias vezes e parou com as rodas pra cima, a uns 100 metros da pista, do outro lado da rodovia. Minha porta não abria, eu consegui sair pelo lado do passageiro e eu ficava pensando: “Meu Deus do céu, o que foi isso? Obrigado, Senhor!”. 

 

Aí eu escuto uma voz vindo lá da beira da rodovia: “ tá vivo?”. Era o cara da moto! Ele ouviu o barulho da pancada e voltou pra ver o que tinha acontecido. Eu falei pra ele: “Meu irmão, você tá com o farol apagado!”. Aí ele falou pra mim: “ quer carona?”. Eu perguntei pra ele: “ tem outro capacete?”. Aí ele falou pra mim: “Não tenho, mas não dá nada não, vambora”. Eu comecei a balançar a cabeça e dar risada. Falei pra ele: “Oh, meu irmão… Deus acabou de me livrar de uma, eu não vou pedir outra chance agora, não”.

 

[trilha sonora]

 

Peguei carona com um caminhoneiro de volta até Campo Grande e, quando eu cheguei em casa, meus pais ainda estavam dormindo, tranquilos da vida. Eu pensei comigo: "Obrigado, meu Deus". Dei um beijo neles e eles estranharam minha presença ali. "Ué, você ainda não foi?". Quando eu falei que já tinha ido e capotado o carro, os dois se levantaram da cama. Fomos pro hospital e eu fiz um monte de exames… E eu realmente não tinha machucado nada.

 

Naquele dia eu senti que eu precisava retribuir aquela bênção de alguma maneira. Eu estudei nas escrituras sagradas das três maiores religiões do mundo quais são os valores que trazem prosperidade. O valor número um é a gratidão.

 

Nos Vedas, do hinduísmo, está escrito: "Só através do serviço devocional indiviso é possível compreender-me tal como Eu Sou, como estou diante de você, e assim é possível ver-me diretamente". No Alcorão, do Islamismo, a surata das mulheres, versículo 86, diz: "Quando fordes saudados, retribuí com uma saudação melhor, ou pelo menos igual". Na Bíblia, está escrito na Epístola de Colossenses, capítulo 3, versículo 14: "E sobre tudo isto, revesti-vos de caridade, que é o vínculo da perfeição, e sede agradecidos".

Eu queria mostrar a minha gratidão com palavras e, principalmente, com ação. O que eu sabia fazer melhor era ensinar inglês, então eu decidi dar aulas de graça na internet, pra qualquer pessoa no mundo que quisesse aprender o idioma.

Com a indenização do seguro do carro que capotou, eu comprei um carro popular, bem mais simples que o anterior e paguei a produção de 300 vídeo-aulas que iríamos gravar para oferecer grátis online. Eu planejei essas aulas pensando em um aluno como eu, alguém que não tem facilidade de aprender. Nossas aulas são passo a passo. A aula 1 é como dizer “oi, bom dia, boa tarde, boa noite” em inglês. Aula 2, como se apresentar: “I’m Felipe Dib”, “Nice to meet you”. Aula 3: “How are you?”. Aula 4: “What's your name? First name, middle name, last name”. E assim nós vamos evoluindo.

 

Nós gravamos 20 aulas, mas tivemos que interromper as filmagens, porque um mês depois do acidente, eu bati o carro de novo. E dessa vez eu me machuquei MUITO. 

 

[trilha sonora]

 

Era uma sexta-feira, depois do almoço. Eu estava no quarto respondendo e-mails, quando os meus pais me convidaram para fazer um passeio. Eles iam com uns amigos até Ponta Porã, uma cidade na fronteira com o Paraguai, onde muita gente da região faz compras. É um passeio comum para quem mora em Campo Grande.

 

Eu animei de ir, inclusive porque eu queria colocar um "toca-CDs" no meu carro "novo" entre aspas, que não tinha nem som. Meus pais foram na frente e eu combinei de pegar a minha namorada e ir com o meu carro.

 

Era a primeira vez que eu pegava estrada depois do acidente. Eu estava com muito medo, muito inseguro por causa da batida anterior. Eu fui bem devagarzinho. Eu dirigia a 60 quilômetros por hora, e o tempo começou a fechar, começou a chover forte. O limpador do parabrisa estava na velocidade máxima e, mesmo assim, a visibilidade era ruim. Essa viagem normalmente dura 3 horas, mas naquela velocidade e com aquela chuva, eu falei pra minha namorada: “Meu amor, nós vamos chegar lá só amanhã”. Ela falou pra mim: “Se a gente chegar pro café da manhã, eu já tô feliz”. 

 

Aí, numa curva onde já aconteceram alguns acidentes, nosso carro aquaplanou e atravessou a pista. Dessa vez, eu não rezei. A única coisa que saiu da minha boca foi: “Caraaa…”. E aquela palavra foi interrompida pelo maior barulho que eu já ouvi na minha vida. O meu carro bateu de frente com outro, que vinha no sentido contrário. Foi uma pancada tão violenta, que eu apaguei. A frente do carro amassou igual a uma sanfona e me espremeu pra dentro do carro, que virou uma bola de ferro amassado. Eu admito que no primeiro acidente eu estava errado, eu tive 100% de culpa, mas no segundo não. 

 

Quando eu acordei, acho que alguns segundos depois da batida, a Cy, hoje minha esposa, já tinha sido retirada do carro. Só que eu estava preso nas ferragens. Com o impacto da batida minhas pernas dobraram até ficarem grudadas no meu peito, com os meus pés em cima do volante. O meu primeiro pensamento foi checar se eu tinha ficado paraplégico. Eu tinha pouquíssima mobilidade naquela posição, mas consegui me mexer um pouquinho e percebi que eu não tinha fraturado a coluna. Naquele instante, eu comecei a agradecer a Deus. Morrendo de dor nas pernas, nos pés, o corpo inteiro queimando, ardendo, mas eu já estava agradecendo. 

 

[trilha sonora]

 

Enquanto os bombeiros tentavam me soltar das ferragens, alguém pegou o meu celular e ligou pros meus pais. Eles, que também estavam na estrada, só que mais à frente, voltaram em direção a Campo Grande. Mas o acidente tinha bloqueado a rodovia, então eles desceram do carro e caminharam um tempão até chegar no local da batida. De repente, eu vejo minha mãe, chegando desesperada e gritando: “Meu filho! Meu filho!” Eu fiz um sinal de joia pra ela com o polegar, sinalizando que estava tudo bem, mas não estava. 

 

Deve ter demorado umas 3 horas até os bombeiros conseguirem me soltar das ferragens. Quando eles esticaram o meu corpo na maca, o grito que eu dei deve ter chegado a Campo Grande. A dor era insuportável. No hospital, descobriram que eu fraturei 6 costelas, calcâneo, fêmur, um osso na face. Minha boca não se mexia, meus olhos ficaram pretos. Depois, eu soube que eu tinha fraturado um osso na coluna também.

 

[trilha sonora]

 

Eu passei 29 dias internado, sentindo dor sem parar um minuto, sem conseguir dormir. Por causa das fraturas, eu não conseguia me mexer, talvez em alguns meses eu conseguiria me levantar. Eu tinha que fazer as necessidades na cama. O código para fazer o "number 2" era chocolate. Minha mãe colocava um lençol como cortina e eu ficava um tempão pra conseguir, precisando de ajuda para me limpar… E aí eu fui tendo a constatação de que o dinheiro não compra as coisas que têm mais valor na vida. A grana que eu tinha no banco não tirava a minha dor, não me dava mobilidade, não me ajudava a dormir. O dinheiro é fantástico para um monte de coisas, mas ele não seria a causa da minha felicidade, como até então eu acreditava.

 

[trilha sonora]

 

A minha vontade de devolver todas as bênçãos que eu tinha recebido veio com mais força ainda. Eu me lembro de uma noite lá no hospital, segurando as mãos dos meus pais e chorando, eu falei pra eles: “Deus foi muito bondoso comigo. A partir de agora eu vou dedicar minha vida pra agradecer, vocês vão ver. Enquanto eu não fizer a diferença na vida de cem mil pessoas, eu não vou sossegar”. 

 

Quando eu tive alta, fui levado de maca pra casa dos meus pais, ainda sem me mexer da cintura pra baixo. Eu liguei pro produtor que eu tinha contratado antes, pedindo pra gente dar sequência nas gravações. Eu não podia sair da cama, e por isso ele ia em casa. Eu gravava as aulas ali, sentado na cama dos meus pais. Segundo nossos alunos eu estava muito arregalado e muito amarelo naquelas primeiras aulas. E eles têm razão, eu estava feio demais.

 

Depois de meses de fisioterapia, dedicação, graças a Deus eu voltei a andar. Eu sabia que esse gesto de gratidão duraria pra sempre, não seria algo passageiro. Já se passaram 10 anos desde que eu comecei a postar as aulas na internet. De lá para cá, a equipe cresceu e nós criamos uma plataforma própria, o Você Aprende Agora.com. Já são 41 milhões de aulas lecionadas para alunos em 181 países. 

 

[trilha sonora]

 

Há dois anos, nós começamos a produzir conteúdo do currículo de inglês da BNCC pro Ensino Fundamental e Médio. Nosso curso hoje é transmitido pela TV aberta, chegando a milhões de pessoas que não têm nem celular, muito menos internet.  Meu sonho é levar o Você Aprende Agora pros estudantes das escolas públicas. Eu ainda não consegui, mas um dia eu chego lá.

 

Eu trago o exemplo que eu tive em casa, de me preocupar em como eu posso ajudar as pessoas, o que eu posso fazer para retribuir a bênção de estar vivo. Eu sou um muçulmano que crê que todas as religiões pregam a mesma mensagem, com palavras diferentes. Todas buscam uma ligação com algo superior, que cada um chama do jeito que quiser: Cristo, Jeová, Krishna, Alá… Tanto faz. O importante é se conectar com essa força e agradecer pelo nosso bem mais precioso: a vida. Thank you very much. I'm Felipe Dib. See you next class!

 

[trilha sonora]

 

Leandro Karnal: Interessante a história do Felipe, porque ele começa com um sonho, um sonho bastante comum, talvez o mais comum, que é a prosperidade material. Muitas pessoas acham que se tiverem muito dinheiro as coisas serão absolutamente fáceis, absolutamente tranquilas.

Como o mundo é um lugar perigoso, o mundo é um lugar que machuca, o dinheiro é também uma fantasia de proteção. Eu vou ter uma casa forte, protegida do mundo, eu vou ter um carro blindado, eu vou viajar com meu jato privado e assim, o mundo não vai me machucar.

Mas o mundo machuca inclusive quem tem muito dinheiro. A história dele envolve um esforço, esforço de viajar, de aprender inglês, Nova Zelândia … A história dele envolve  a dedicação, a capoeira, um esporte, e a busca de um sentido no estudo das grandes religiões. Não apenas um estudo intelectual, não apenas um estudo de religião por religião, mas uma vivência de diferentes concepções religiosas. E isto é muito importante.

O que o Felipe traz é uma história que mostra que, nos momentos de crise mais aguda, os momentos de risco de vida, nós valorizamos muito mais o que somos e o que temos. A vida é um bem que quando flui com saúde, com abundância, ela não é muito percebida e de repente um acidente, como ele descreve, um risco, a morte nos acenando de perto, faz com que muita gente perceba que a vida é um dom muito precioso, é um dom muito especial.

E a história do Felipe é uma história de ser grato por aquilo que a maior parte das pessoas sequer tem consciência cada dia, cada nova experiência, cada dia que desperta é uma chance, é uma oportunidade, é um novo capítulo, é uma página virada. E a gratidão é um sentimento muito interessante pra eu me conectar com o mundo e com a vida.  

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Geyze Diniz: Nossas histórias não acabam por aqui. Confira mais dos nossos conteúdos em plenae.com e em nosso perfil no Instagram @portalplenae.


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