Você tem algum ritual para se renovar?

Chega um novo ano e vemos, no mundo todo, rituais dos mais diversos para marcar essa passagem simbólica.

17 de Janeiro de 2023



Você tem algum ritual para se renovar?
O que você vai encontrar por aqui: 
  • O papel dos rituais em nosso cotidiano
  • O poder do símbolo
  • Como atos simbólicos afetam nossa saúde
  • 5 dicas para começar a ritualizar sua vida
Boa leitura! 
Chega um novo ano e vemos, no mundo todo, rituais dos mais diversos para marcar essa passagem simbólica. Usar branco, pular sete ondas, comer 12 uvas nas badaladas do relógio, criar uma lista de resoluções para o ano novo, jogar móveis pela janela: dos mais conhecidos aos mais peculiares, todas as culturas expressam seus valores e desejos por meio de gestos repletos de intenção e significado. Buscamos dar sentido à nossa existência a partir da ritualização de momentos importantes e o ano novo, sem dúvida, nos mobiliza coletivamente na busca dessa renovação. 

A palavra ritual vem do latim e pode ser compreendida como sinônimo de cerimônia. Apesar da conotação religiosa, os rituais fazem parte da nossa cultura para além dos espaços sagrados. São atos praticados com uma intenção e evidenciam o que nos é essencial. Das tradições festivas aos processos de luto, passando pelos ritos religiosos e as simpatias individuais, os rituais nos dão estrutura e fazem parte da nossa história desde o início da nossa civilização. Eles servem para assinalar pontos de transição e de mudança, concretizar propósitos, trazer significado ao cotidiano, dar profundidade aos sentimentos, ampliar nossa conexão com os outros e ajudar na travessia de momentos difíceis. 
Neste sentido, os rituais são de grande importância para nossa subjetividade e podem ser utilizados como uma poderosa ferramenta para gerar bem-estar. Por isso, acreditamos que vale a pena entender um pouco mais sobre o papel dos rituais na vida cotidiana e como eles atuam em nossa mente e nossas emoções. Esperamos com isso te inspirar a não só participar dos rituais e tradições que fazem parte da sua comunidade, mas também a encontrar pequenos rituais pessoais que possam renovar seu espírito e trazer mais conexão consigo mesmo. 
Fundo no assunto
O rito na origem de tudo


Desde que evoluímos de Neandertais para Sapiens, somos dotados de uma impressionante capacidade de imaginação. Para Yuval Harari, autor do best-seller “Sapiens: uma breve história da humanidade”, essa talvez tenha sido a habilidade mais importante e crucial na expansão e consequente dominação da nossa espécie em todos os cantos do planeta. A Revolução Cognitiva possibilitou a evolução da nossa linguagem e a criação de realidades imaginadas que influenciam nossas vidas nos mais diversos aspectos e nos unem enquanto comunidade humana.

A partir desta nova capacidade inventiva, criamos mitos para explicar a nossa existência e ritos para expressar os valores e crenças adquiridos enquanto sociedade. Segundo a professora Esther Jean Langdon, a vida social foi e segue sendo estruturada pelos ritos e, citando os estudos da antropóloga Mary Douglas, “o homem é um animal ritual e os ritos permeiam a interação social, criando uma realidade que não seria nada sem eles”. Os rituais são, assim, um tipo especial de evento, mais formalizados e estereotipados, que criam uma ruptura no fluxo das ações cotidianas, desenhando um marco temporal e, de alguma maneira, manifestando simbolicamente ideais sobre o mundo. 

                 


Ritos estão sempre permeados de símbolos, seja por meio da linguagem, de gestos ou objetos. Os símbolos possuem uma importância elevada pois comunicam mais do que somente seu significado manifesto, eles possuem um aspecto oculto, transcendente, que está fora do alcance da razão, como coloca Carl Jung em um de seus livros mais famosos, O homem e seus símbolos. Nesse sentido, os símbolos possuem uma enorme riqueza de sentidos, inerentes ao inconsciente coletivo e aos arquétipos, que explicamos em mais detalhes aqui, com um potencial transformador da psique. 

    

A mente humana ainda é um grande mistério para nós. Mas já é ponto pacífico que nossa psique contém uma parte consciente e outra totalmente inconsciente, ambas afetando profundamente nossos pensamentos, sentimentos e ações. Para Jung, nossa parte inconsciente se comunica através de símbolos e podemos ter acesso a este campo interpretando os símbolos que nos apresenta a partir dos sonhos, ou enviando mensagens a esta parte oculta a partir de atos simbólicos. E é aqui que os rituais e seus símbolos podem realizar verdadeiros feitos “mágicos”. Eles mudam nossa forma de perceber as coisas, criam novos sentidos, e isso influencia de forma significativa nosso inconsciente. 

Já falamos pra vocês, nesta matéria, sobre as doenças psicossomáticas, ou seja, como as emoções e pensamentos afetam nosso corpo físico e podem, ao longo do tempo, desenvolver doenças crônicas. Inclusive mostramos o exemplo da Wanessa Camargo em nosso podcast, que desenvolveu uma síndrome do pânico a partir do medo da morte. A origem destas emoções pode, muitas vezes, estar em nosso inconsciente. Dessa forma, é possível imaginar que, se mudarmos a semente que deu início nesse efeito dominó, é possível curar uma série de condições que nem tínhamos consciência que estavam causando tanto estrago. 


Após viver anos em meios aos “curandeiros” e “bruxos” do México, presenciando todo tipo de ritual de cura, Alejandro Jodorowsky, cineasta, ator, poeta, escritor e psicólogo (psicomago como ele se autodenomina) passou a se perguntar se aqueles “feitiços” sempre muito criativos e repletos de simbolismo, teriam o mesmo efeito sobre os pacientes sem toda a fé e misticismo que envolvia tais rituais. 

Em seu livro Psicomagia, que hoje se tornou também um filme, ele nos conta sobre o desenvolvimento de sua terapia "psicomágica", em que receita atos teatrais para a cura de diversos males, a partir do entendimento do papel do inconsciente na saúde e como ele pode atuar voluntariamente como nosso aliado, quando acessado através de atos simbólicos, ou seja, de rituais. 

Ele entende que o inconsciente aceita tais atos como se fossem acontecimentos reais, de modo que um ritual “mágico-simbólico-sagrado” poderia modificar o comportamento do inconsciente e, portanto, se bem aplicado, curar certos traumas psicológicos. Logo, a  partir de ações que estimulam a mente a cruzar a ponte entre realidade e sonho, a pessoa é capaz de vivenciar metaforicamente seus traumas e inserir um novo elemento, uma ação nunca antes realizada, que a libera da antiga narrativa criada. 


Mesmo pequenos estresses do nosso cotidiano podem ser aliviados com rituais. Estudos realizados pela Harvard Business School mostraram que a realização de um ritual antes de uma situação de incerteza e potencialmente estressante ajuda o cérebro a recuperar seu senso de controle e previsibilidade, assim como aumenta nossa autoconfiança, reduzindo os batimentos cardíacos, a ansiedade e, consequentemente, melhorando nossa performance diante da situação. 

É por isso que muitos atletas são conhecidos por seus estranhos rituais pré-jogos, como Rafael Nadal, famoso também por sua lista de pequenos rituais praticados na quadra. Te contamos neste artigo ainda algumas pequenas superstições de torcedores e jogadores que, em uma leitura geral, envolvem muito do universo ritualístico que estamos debatendo nessa newsletter.  

Afinal, o que torna uma atividade qualquer em um ritual, um ato simbólico, é o olhar que colocamos nela, são os sentidos mais profundos que lhe proferimos. E isso tem poder, pois nos traz estrutura, novos propósitos, esperança e nutrem nosso ser, ainda que seja de forma ficcional. Como coloca Maria Homem em entrevista à Revista Gama, “o simbólico não é nem verdadeiro nem falso, mas uma ferramenta de ancoragem, de ordenação”. Assim, não importa se o ritual vai funcionar ou não, mas como ele te faz sentir e quais os significados mais profundos que ele desperta em você.
O que dizem por aí
Um verdadeiro legado da humanidade


           

Em 2018, a BBC lançou uma série documental que explorou rituais extraordinários ao redor do mundo. Ainda sem tradução para o português, a série percorreu rituais singelos, como as canções de amor, datadas do século VII, que até hoje são cantadas por adolescentes chineses em um ritual de namoro, mas também falou sobre os grandes ritos de passagem que exigem extrema coragem, já que chegam ao limiar da resistência humana. Nas mais diversas culturas, realizamos rituais que vão desde cerimônias íntimas até grandes peregrinações em massa que reúnem milhões de adeptos.

Das mais antigas tradições aborígenes e suas cerimônias de fogo com mais de 50 mil anos, aos modernos templos construídos no festival Burning Man, onde 70 mil pessoas deixam suas memórias dolorosas para serem queimadas como um ritual de libertação, mantemos vivos ritos ancestrais que contam nossa história, fazemos releituras e adaptamos alguns elementos e estamos constantemente criando novos rituais que se tornarão as tradições do futuro.  

O antropólogo Wade Davis já esteve duas vezes no Ted Talks compartilhando seus estudos e nos mostrando a impressionante diversidade de rituais que nos tornam humanos. Segundo ele, é essencial conservar essa riqueza, um dos maiores legados deixado por nossos ancestrais, que hoje se perde junto à extinção de idiomas, ferramentas essenciais para a transmissão da cultura. Só no Brasil, 215 idiomas estão ameaçados de extinção. Precisamos desses rituais, eles nos inspiram, nos unem e mantêm nossas comunidades vivas. 
Um ritual para chamar de seu

Em nossa vida frenética, os rituais são como respiros, marcos temporais que nos ajudam a satisfazer necessidades da alma, a renovar. Trazem instantaneamente nossa atenção para o momento presente, quebram a automação, nos fazem valorizar o pequeno e o essencial, conectam. Podem ser simples e modestos, como grandes e pomposos, a chave para receber seus efeitos positivos é honrar sua significância. Até mesmo a filosofia japonesa do IKIGAI, que te contamos aqui, acredita que esses pequenos rituais diários podem ser uma espécie de propósitos diluídos no dia a dia. 

Você pode adotar um ritual já conhecido ou até mesmo criar seu próprio ritual: não importa, os resultados no seu bem-estar estão garantidos, já que eles nos ajudam a desfrutar da jornada e proporcionam senso de propósito na vida. Crie rituais que sejam só seus, assim como faça parte também de rituais coletivos, para receber todos os benefícios que eles podem oferecer. Deixamos aqui 5 dicas para começar a ritualizar sua vida desde já:

    
Quer saber mais? Separamos alguns conteúdos que podem te ajudar
a fazer um mergulho ainda mais profundo, não deixe de conferir!

Livro: Rituais de poder para a vida: encontre sentido em seus momentos cotidianos - Meera Lester


Série: O poder dos rituais - Globoplay

Podcast: A importância dos rituais - A gente vai se falando, episódio #36 



Vídeo: 10 tradições interessantes no mundo que ainda são praticadas hoje

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Para Inspirar

Veruska Boechat em “O amor que cresce com a dor”

Na terceira temporada do Podcast Plenae - Histórias para Refletir, conheça a jornada de luto e autoconhecimento de Veruska Boechat

22 de Novembro de 2020


Leia a transcrição completa do episódio abaixo:

[trilha sonora]

Veruska Boechat: Meu marido foi o meu maior garoto propaganda. Por causa dele, todo mundo acha que eu sou a pessoa mais doce da Terra. Doce… É como ele me chamava. Ele me colocou esse apelido quando a gente se conheceu. Nunca mais parou de me chamar assim. Ainda hoje me param na rua e perguntam: você que é a Doce Veruska? Sou eu. Doce Veruska Boechat.

[trilha sonora]

Geyze Diniz: Não é por acaso que o apelido dela é "doce". Uma mulher que mistura ternura e garra, que possui uma trajetória de força de vontade e resiliência. Compartilhar a história da jornalista Veruska é compartilhar uma história de amor, de discernimento assertivo e sabedoria instintiva. Uma história de conexão entre mente e coração. Lembrar do passado e ressignificar o presente é um pouco do que ela compartilha com a gente. Ouça no final do episódio as reflexões da professora Lúcia Helena Galvão para ajudar você a se conectar com a história e com você mesmo. Eu sou Geyze Diniz e esse é o Podcast Plenae. Ouça e reconecte-se.

[trilha sonora]
Veruska Boechat: Todas as pessoas próximas da gente, quando viram a notícia da morte do meu marido, o jornalista Ricardo Boechat, achavam que eu também estava naquele helicóptero. Se o acidente tivesse acontecido em outros mil eventos que ele fez, eu certamente estaria junto. Porque eu sempre acompanhava meu marido em compromissos realizados durante o horário de aula das nossas filhas, a Valentina, na época com 12 anos, e a Catarina, que tinha 10. Mas da mesma forma que era pra eu ter perdido meu marido naquele horroroso dia 11 de fevereiro de 2019, não era pra eu estar no helicóptero.

[trilha sonora]
Na véspera, um domingo, ele me disse que teria um compromisso na segunda. Mas  nem lembrava direito o que era, pra quem, onde, a que horas iria ou quando voltaria. Era a cara dele não saber nada da agenda. Ele era brilhante, mas muito muito desorganizado e só sabia funcionar daquele jeito confuso. E me confessou: não queria ir.

Ele apresentava o programa na rádio BandNews FM de manhã e o Jornal da Band na TV, à noite. Eu nunca gostei que ele assumisse muitos outros compromissos além desses. Achava que ele se desgastava demais e passava pouco tempo em casa. Mas já que ele aceitava participar desses eventos, dar palestras, esse tipo de coisa, eu ia junto pra ajudar. Porque, se eu não fosse, eu sabia que ele daria atenção pra todo mundo e não almoçaria, por exemplo.
Qualquer um que já foi casado ou é casado sabe que nem todos os dias são maravilhosos. Tem dia que você briga e o outro sai de casa bravo ou triste. E uma das coisas pelas quais eu sou mais grata é que naquela segunda-feira, ele se despediu de mim como se a gente fosse namorado. Eu nem sei, nem quero saber como é sofrer uma perda dessas que eu sofri sem estar bem com a pessoa. Por isso ficou claro pra mim que é preciso viver cada dia sem deixar arestas pra aparar, contas pra acertar, coisas por serem ditas.  [trilha sonora] Naquele dia, ele beijou a mim e as meninas e foi pra rádio, às sete horas da manhã. Esse carinho da manhã, com elas acordadas, foi uma conquista nossa. Há alguns anos atrás, na hora de renovar o contrato com a Band, ele abriu mão de aumento de salário por meia hora a mais em casa. Começaria o programa às 7h30, em vez de 7 horas. E com esse tempo ele passou a pegar as meninas acordadas e se despedir delas antes de sair pra trabalhar. O sucesso profissional, ele é uma pegadinha. Muitas vezes você é seduzido por ele e acaba não tendo tempo para outras coisas importantes da vida. A gente sempre teve esse cabo de guerra. Eu dizia: de que que adianta ter tanto reconhecimento, ajudar tanto os outros e não aparecer em casa?  [trilha sonora] Naquela segunda-feira, eu acordei de manhã, planejei a minha vida como se fosse um dia normal. Eu decidi realizar um sonho da nossa mais velha, a Valentina, que era ir ao show da cantora Ariana Grande.  Depois de comprar os ingressos eu tomei banho e, quando eu saí, eu vi no Instagram da Bandnews FM um post sobre a queda de um helicóptero. Eu liguei a TV, comecei a ligar pra algumas pessoas do evento pra onde meu marido tinha ido, em Campinas. Uma pessoa da produção me disse que tava tentando falar com o piloto… Me deu um frio na espinha. Eu liguei pra um amigo que tem helicóptero. Eles têm grupos de Whatsapp e eles sempre sabem de quem é o helicóptero e quem tava dentro. Ele ficou de me ligar de volta em 5 minutos. E obviamente não ligou. Telefonei pro Fernando Mitre, diretor de jornalismo da Band, e ele me disse que tava tentando falar com o Boechat. E tentou me acalmar: “Veruska, a gente sabe que ele não atende mesmo”. Eu sentei na minha cama e liguei pros dois irmãos do meu marido, que moravam em São Paulo, naquela época. Falei: “Vem aqui agora, pelo amor de Deus”. Ninguém telefonou pra me dar a notícia. Só começou a chegar gente, gente e mais gente na minha casa. Durante uma hora, eu fiquei bem perdida, sem querer acreditar, achando que alguém ia me contar que não era verdade. Eu estava em negação. Mas, pra quem quiser saber, o pior momento da minha vida, naquele dia horroroso, não foi descobrir sobre a morte do meu marido, esse foi o segundo pior momento. O pior momento foi dar a notícia pras minhas filhas.  [trilha sonora] Eu mandei buscar as meninas na escola, sem saber como contar que o pai tinha morrido. Mas eu sou uma pessoa privilegiada e eu pude pedir orientação a uma psicóloga. Quando eu falei pra ela por telefone que eu pensava em conversar com as meninas no próprio quarto delas, ela falou: “Não, no quarto não”.  Até passar pelo luto, eu não me dava conta de que a cena do momento em que você recebe uma notícia como essa nunca mais sai da sua cabeça. Ainda mais sendo uma criança. Ainda mais perdendo o pai. Ainda mais de maneira trágica. Então, eu decidi levar as duas pro escritório, que é um lugar que a gente não tem a obrigação de ir toda hora. Há alguns anos, eu reuni um grupo de amigas e crianças na minha casa pra tomar a vacina da gripe. As pessoas iam uma por uma no escritório, onde uma funcionária da clínica aplicava a vacina. No dia da morte do meu marido, quando as meninas foram tiradas no meio da aula, chegaram em casa, viram aquele monte de gente e foram levadas pro escritório, quando eu sentei pra contar sobre o acidente, uma delas falou: “Já sei, mamãe, é pra tomar vacina, né?” [trilha sonora] A comoção nacional causada pela morte do meu marido me surpreendeu. A gente sabia que ele era querido, conhecido e que a opinião dele repercutia muito, pro bem e pro mal. Mas não sabia que ele era tão amado.  [trilha sonora] Eu tenho certeza que, onde quer que ele esteja, ele ficou muito feliz. Meu marido nunca quis velório, sempre teve pavor. Só fiz porque foi caixão fechado. Mas principalmente, porque ele se realizava na vida fazendo bem para os outros e eu tenho certeza de que merecia todas aquelas homenagens.  A cerimônia foi no Museu da Imagem e do Som, o MIS. As pessoas diziam pra eu ficar numa sala reservada, pra ter privacidade, pra não ficar lá no meio da multidão recebendo abraços de cada um. E eu pensava: pra quê? Era muito melhor eu receber o abraço de uma pessoa que saiu de casa para me dar carinho. E eu descobri que a simples presença é mais importante do que qualquer coisa que se diga. As pessoas ficam aflitas em saber o que falar. Na verdade, quanto menos você falar numa hora dessa, melhor.  [trilha sonora] Por sorte, aparecem um anjos na vida da gente. Pra mim, um deles foi a minha amiga Rosana Saad. Dois ou três dias depois da morte dele, ela disse que precisava me entregar uma coisa e chegou com uma caixinha de um brinde de carregador de celular da Band. Quando eu abri… quase morri. Dentro estava a aliança do meu marido. Eu não tinha esperança de recuperá-la. Nas circunstâncias em que as pessoas disseram que aconteceu o acidente, pensei que nem a aliança eu ia conseguir de volta. Eu não enterrei meu marido. Eu não o vi morto. Aquele anel significa muita coisa. Pra mim, era um pedacinho dele. [trilha sonora] O luto público, como o que eu vivi, ele tem vantagens. Eu não precisei cancelar uma consulta, uma aula das meninas, nada. Mas também ele tem a desvantagem de falar sobre isso o tempo todo. Quando eu finalmente conseguia levantar, me arrumar e botar o pé pra fora de casa, as pessoas vinham me dizer: “eu era fã dele, eu adorava ele…” Eu sei que é por amor, mas eu estava exausta de chorar e só queria poder falar: “Nossa, tá bonito o dia”. As primeiras semanas e meses foram de um vazio imenso. O pior horário, por incrível que pareça, não era a hora de dormir, mas o almoço pra mim. Por exigência minha, meu marido almoçava em casa. Era um momento só nosso, porque as meninas comiam na escola. A cadeira vazia escancarava  o buraco que eu sentia por dentro com a ausência dele. No primeiro mês, eu até tinha a companhia da minha mãe, da minha irmã, do meu irmão, da minha sogra. Mas ninguém é ele. Eu passei a comer fora, com amigas ou sozinha mesmo. Além dessa mudança na rotina, a fé me ajudou demais. Aprendi não só com a minha, mas com a fé dos outros. Tenho várias amigas judias e fiquei encantada com uma tradição chamada Shivá. Nos primeiros sete dias de luto, não é pra uma pessoa resolver nada prático, nem cozinhar, por isso os judeus levam comida pra quem perdeu alguém. O enlutado pode se dedicar a chorar as suas lágrimas e sofrer a sua dor. Voltar a trabalhar fora, depois de 14 anos afastada da carreira de jornalista, também ajudou a ocupar a cabeça. Quem olha pro enlutado não vê que, além da tristeza, os boletos chegam normalmente. Você perde o seu marido num dia, no outro você tem que ir ao cartório pegar a certidão de óbito. Ninguém me disse isso. Eu tive que aprender na marra. Eu tinha tantas tarefas burocráticas pra resolver, que eu não conseguia mais dormir direito. Um dia, peguei um desses caderninhos tipo moleskine, de brinde, e comecei a anotar tudo que eu precisava fazer. Assim eu dormia melhor, porque eu sabia que na manhã seguinte eu não teria esquecido o que eu tinha pra fazer. E no dia seguinte, mesmo sem vontade nenhuma, eu escolhia a tarefa mais idiota tipo “trocar a titularidade da conta de luz” e riscava da lista. Resolver uma coisa simples dessa me dava um pouquinho mais de força pra ir em frente.  [trilha sonora] Eu queria que todo mundo tivesse a oportunidade de ter um amor na vida, como o que eu tive, e que lidasse com a questão da morte de uma forma tão nobre como o meu marido. Como ele era 21 anos mais velho do que eu, ele sempre falou de morrer antes de mim. Claro que ninguém imaginava que seria tão cedo, nem de uma maneira tão trágica, mas ele deixou claro e por escrito, o que ele queria caso alguma coisa acontecesse. Eu tenho na minha cabeça muito nítido tudo o que ele esperava pra mim depois da morte dele. Isso é libertador. Somos uma sociedade que não fala sobre o luto, porque ninguém quer nem imaginar a possibilidade de morrer. Mas falar sobre a morte ajuda pra quem fica. Então eu digo pras pessoas: conversem sobre isso, digam o que esperam.  [trilha sonora] Eu ainda me me considero uma pessoa enlutada. Mas eu já consigo respirar sem aparelhos. Dizem que quando faz dois anos da morte da pessoa que a gente ama, a saudade fica maior que a dor. Eu tô esperando essa data. Enquanto isso, eu deixo o tempo fazer a parte dele. Eu aprendi que o luto não é linear: você tá péssima, depois fica média e depois fica boa pra sempre. Não é assim. Um dia você tá bem, no outro você tá mal, no outro você pode ficar bem de novo. Eu aprendi também que o luto não precisa ser congelante. A minha vida não parou. Às vezes eu posto uma foto com o Boechat e alguém comenta: “Chega, deixa ele descansar, para de falar dele”. Eu nunca vou parar de falar dele. E isso não quer dizer que a minha vida não esteja andando pra frente. Ela está andando, tenho com ele duas filhas que ele amava profundamente, que são a razão da minha vida e que dependem muito de mim. Nosso amor vive nelas.  [trilha sonora] Lúcia Helena Galvão: Eu não preciso dizer para vocês que a prova que a Veruska viveu é uma das mais fortes e doloridas que o ser humano possa viver. E, no entanto, ela não perdeu a cabeça. Soube trazer os seus sentimentos para essa espécie de centro de tratamento interno, que todos nós temos para serem cuidados e curados com muito carinho. Mas ao mesmo tempo disparou uma série de ações e reflexões perfeitas. Primeiro, foi capaz de pensar. Era pra ter sido hoje e não era para eu estar lá. Que bom que podemos nos despedir com carinho. Logo depois, ela procura uma psicóloga, orienta-se da melhor maneira possível e dá a notícia às crianças da forma mais apropriada. Tem paciência com a necessidade das pessoas de um velório público e com a forma desajeitada de quererem consolá-la que alguns usam, apesar de sua boa vontade. Aliás, saber o que dizer nestas horas nunca é fácil. Então, ela escalona os compromissos e necessidades que vão surgindo depois disso, de uma forma que fiquem suportáveis e possíveis de serem cumpridos. Muda a sua rotina para amenizar a dor, alimenta a fé, volta a trabalhar. Chora, quando é necessário chorar, mas se mantém em movimento. E você pode dizer: nossa, mas que rotina perfeita, impecável. Mas como alguém que está sofrendo tanto pode pensar dessa maneira, com tanta lucidez. Não só pode como deve. Isso é também um ato de amor para com aquela pessoa que a gente perdeu, preservando o seu mundo e para com aqueles que ficaram, preservando os seus sentimentos. E mesmo para com aqueles que ouvem essa história, para que percebam que dá para passar pelas situações mais difíceis sem se desumanizar, perder a cabeça, sem deixar que o mal que ocorreu transborde de suas fronteiras e provoque mais mal ainda. Mesmo ainda convalescente de tanta dor, a Veruska consola e aconselha. Trata-se de uma excelente e belíssima reflexão, um presente da Veruska para todos nós, um ato de generosidade. [trilha sonora] Geyze Diniz: Nossas histórias não acabam por aqui. Confira mais dos nossos conteúdos em plenae.com e em nosso perfil no Instagram @portalplenae. [trilha sonora]

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