Para Inspirar

Chitãozinho e Xororó em “Os bastidores do sucesso”

Na terceira temporada do Podcast Plenae - Histórias para Refletir, conheça a trajetória de companheirismo e trabalho de Chitãozinho e Xororó

20 de Dezembro de 2020


Leia a transcrição completa do episódio abaixo:

[trilha sonora]


Chitãozinho: O meu irmão e eu somos muito diferentes. Eu puxei o nosso pai. Sou sonhador, gosto de comunicar. Faço churrasco no final de semana em casa, tomo meus vinhos, gosto muito de ir pra fazenda e curtir a natureza. O meu irmão já puxou a nossa mãe. Ele não sai de casa, é mais retraído e até eu brinco com ele, falo assim: que ele não quer viver, quer durar. Xororó: O Chitão é coração. Muito alegre, extrovertido, gosta de viver a vida em todos os sentidos. Eu já sou contido, penso mais, gosto de tudo certinho. Mas eu acho que essa diferença nos completa e traz o equilíbrio da dupla. No palco, a nossa parceria deu tão certo, que já se vão 50 anos. [trilha sonora] Geyze Diniz: Irmãos, sócios, amigos. Todas essas relações envolvem dedicação. Manter todas elas juntas com a mesma pessoa e alcançar o sucesso envolve muita sabedoria e amor. Hoje vamos mergulhar na emocionante história de uma das duplas mais conhecidas, amadas e longevas do Brasil: Chitãozinho e Xororó. Ouça no final do episódio as reflexões da professora Lúcia Helena Galvão para ajudar você a se conectar com a história e com você mesmo. Eu sou Geyze Diniz e esse é o Podcast Plenae. Ouça e reconecte-se. [trilha sonora] Chitãozinho: Eu sou o filho mais velho de oito irmãos. O Xororó é o segundo, dois anos mais novo que eu. É lá na cidade de Rondon, no norte do Paraná, a gente morava numa serraria, porque o nosso pai era motorista de caminhão e transportava madeira a semana toda. E a nossa casa era uma casa muito pequena, muito humilde, com fogão a lenha, com lamparina, não tinha eletricidade. E rádio a gente só ouvia à noite, no escritório da serraria. A gente sentava na varanda e ficava ouvindo as duplas sertanejas que faziam o programa nas rádios de São Paulo, então, a gente ouvia Tonico e Tinoco, Jacó e Jacozinho, Tião Carreiro e Pardinho, Zico e Zeca… Muitas duplas que são muito importantes até hoje na história da música sertaneja.  Xororó: Nós tivemos uma infância com muita liberdade de correr, brincar, jogar bola empinar pipa, bolinha de gude, rodar pião. Aquela coisa gostosa do interior, que já não se vê mais, principalmente nas grandes cidades. Eu acho que a minha parceria com o meu irmão começou aos 7 anos, ele 9, né, 2 anos mais velho do que eu. Ele era responsável por me levar pra escola e trazer, claro. E era bem distante de casa, tinha uns 2 quilômetros, eu acho. A gente ia por uma estrada de terra, aqueles dois molequinhos. Chitão: Bem, a influência da música veio do nosso pai, seu Mário. Na adolescência, ele fez a primeira dupla com o João Mineiro, que depois, mais tarde, veio a fazer sucesso com a dupla João Mineiro e Marciano. Nosso pai teve que deixar o sonho de ser artista pra trás, e foi pro Paraná, lá ele construiu a família, mas continua sempre cantando e compondo. E nosso pai passava a semana toda viajando, transportando madeira. Quando ele voltava, ele pegava o violão e cantava com a nossa mãe as músicas que ele ficava ensaiando durante a viagem. Como não tinha gravador, eles repetiam as músicas várias vezes. A nossa irmã, a Rosária, um dia rasgou o caderno de música dele, de composição. Ele queria lembrar uma música e ficou muito bravo. Ele já estava pensando em dar uma surra na Rosária, aí eu falei: “Não, pai, se for a música tal, fica tranquilo que nós sabemos cantar”. Aí a gente começou a cantar. O Xororó que tem a voz aguda, começou imitar a mãe, e eu comecei a imitar a voz do pai, que é mais grave. Aí nós começamos a cantar a música "Cortando a Estrada". Xororó: Quando nosso pai nos ouviu cantando pela primeira vez, ele ficou bobo e falou: “Nossa, vocês sabem cantar direitinho. Quem que ensinou?” Nós falamos: “Pai, foi o senhor e a mãe. Quando vocês cantam aqui em casa a gente fica perto ouvindo, e assim a gente aprendeu”. Aí ele falou: “E o violão? Quem ensinou? Vocês sabem?". "É, a gente também sabe um pouquinho, lá, o ré, o dó." Aí mais uma vez ele falou: “Daqui pra frente, eu vou ensinar pra vocês tudo que eu sei." E assim começou a dupla Os Irmãos Lima. [trilha sonora] Chitão: Bem, o nosso pai começou a mostrar a gente pra todo mundo, né: na escola, na igreja, onde tivesse festa ele tava colocando a gente pra cantar. E tinha um programa de calouro na cidade, lá no clube, lá em Rondon que o prêmio que a gente ganhava dava pra comprar pipoca, dava pra comprar ingresso do cinema. E a gente adorava porque era matinê todos os domingos. A gente ganhava o prêmio e já comprava o ingresso e ia assistir o filme. E eu me lembro que uma vez, a gente tava no meio de um filme do Mazzaropi, um filme muito engraçado, e o nosso pai entrou na sala, assim, de cinema achou nós dois em um cantinho lá, tirou a gente da plateia. Eu falei: "Pai, mas nós 'tamo 'vendo filme". E ele falou: "Não, nós vamos ter uma festa de aniversário na casa de um compadre, o fulano de tal, e eu prometi de levar vocês lá pra cantar. E nós saímos chorando do cinema de tanto que a gente gostava. Aí no caminho ele foi consolando a gente, acabou nosso choro e chegando na casa do nosso cumpadre começamos a cantar. E ele fazia sempre isso com a gente, ele adorava ver a gente cantando e adorava ver a plateia se emocionando com a gente, desde criança.   [trilha sonora] Bem, quando eu tinha 12 anos, a gente teve que mudar pra São Paulo. O nosso pai quis sair do interior porque a nossa mãe, ela tinha uma doença, ela era bipolar, que a gente veio descobrir isso muitos anos depois. Mas, aí ele aproveitou para fazer o tratamento da nossa mãe numa clínica em São Paulo e começar a mostrar a gente nas rádios.  Xororó: Na mudança, a nossa mala era um saco, o cadeado era um nó. Eu me lembro direitinho como se fosse hoje. Nós de calças curtas, que era como os meninos usavam naquela época, final dos anos 60. Viajamos na carroceria de um caminhão de Rondon até Londrina. Pegamos um trem e descemos na Estação da Júlio Prestes, em São Paulo. Nosso pai arrumou emprego como motorista de ônibus na cidade de Mauá, no Grande ABC, e nos mudamos pra lá. Ele canalizou aquele sonho da música na gente. Um dia, seguindo o conselho da nossa avó, a mãe dele, né, a vó Maria, ele nos levou para conhecer Geraldo Meirelles, que era um apresentador de programas de rádio e televisão. Quando ele nos ouviu pela primeira vez, ele falou: "Caramba, vocês são muito afinados, mas Irmãos Lima, nem pensar." E sugeriu Chitãozinho e Xororó, que era o nome de uma música do Athos Campos e do Serrinha, que fala sobre dois inhambus, inhambu chitão e o xororó, dois pássaros que cantam muito  bonito. A gente chegou em casa revoltado. Particularmente eu, né, achei que esse nome era horroroso, muito caipira. Caramba, cantar música sertaneja com nome de Chitãozinho e Xororó, nada a ver. O Chitão, pra me zoar, me chamava de Xororó e eu falava: “Que Xororó o quê, rapaz!? Meu nome é Durval!” [trilha sonora] Chitão: Quando eu fiz 14 anos, a gente era muito pobre e passava muita dificuldade e eu não via a hora de completar 14 anos pra ajudar, pra começar a ganhar um dinheiro. Inclusive, eu até parei de estudar pra começar a trabalhar. E aí, nosso pai me arrumou um emprego de cobrador de ônibus na viação Barão de Mauá. Foi meu primeiro emprego, já fui lá tirei minha carteira de trabalho, eu tenho ela até hoje. Mas esse emprego durou apenas um ano, porque a música já tava tomando espaço na nossa vida, graças a Deus. Xororó: O Geraldo Meirelles tinha um programa na Rádio 9 de julho e arrumou pra gente um horário pra cantar ao vivo às sextas-feiras, às sete e meia da manhã. Nós morávamos em Mauá, a emissora ficava na Vila Mariana. A gente acordava às 4h da manhã, 'caminhava' 20 minutos, pegava um ônibus por mais 20 minutos, depois 40 minutos de trem até a Estação da Luz, mais 20 minutos de ônibus até chegar a rádio. Dois moleques sozinhos, com dois violões. Foi lá que a gente cantou pela primeira vez a música Galopeira. Aí, gravamos um disco e a nossa carreira começou profissionalmente. Isso foi em 1970. [trilha sonora] Chitão: Bem, como eu sou o irmão mais velho, eu sempre tomava a frente de tudo. Era meio que o empresário da dupla, marcava shows, fazia contato, marcava entrevista, programas de rádio… Onde tinha música eu queria colocar a gente pra cantar, e eu acho que aprendi isso com o nosso pai, de correr atrás. Eu não gosto de ficar em casa parado, tô sempre falando com alguém. E o Xororó não, o Xororó é completamente diferente de mim. Ele fica em casa, ele compõe, ele ensaia. Ele tem tempo para ser o profissional bacana que ele é. E isso fez a gente demorar um pouquinho pra gente se ajustar, porque no início, chegou uma época, eu fiquei tão me sentindo importante, que eu fiquei meio que autoritário. E isso eu nem percebia. E na medida que o meu irmão foi crescendo, ele também foi ficando adulto, ele foi entendendo que ele também tinha o espaço dele ali dentro. E ele começou a dar as opiniões dele, coisas que eu fazia que ele não concordava. Ele começou a falar e eu demorei um pouco pra entender que ele também tinha os direitos dele. Mas depois a gente aprendeu a respeitar o espaço de cada um e hoje a gente se respeita muito e ele até fala uma frase que eu acho muito bacana: "O meu espaço termina onde começa o seu". E essa é nossa filosofia até hoje.   [trilha sonora] Xororó: Em 72, Seu Geraldo montou uma caravana e fomos nós fazer o nosso primeiro show em praça pública, pra mais de 10, 15 mil pessoas. Éramos dois adolescentes de 16 e 14 anos. A banda de abertura tocou um baita som. Nós entramos em seguida, só com dois violões acústicos, o som foi lá pra baixo. Quando acabou o show, a gente falou com Seu Geraldo: “Seu Geraldo, não dá pra cantar com dois violões. A gente precisa de instrumentos eletrônicos”. O Geraldo falou: "Eletrônicos?" Sim, e aí veio a ideia de montar a nossa primeira banda, um conjunto, como se falava naquela época. Isso era algo inédito pra música sertaneja. Chitão: Mais ou menos em 1972, por aí, nós conseguimos comprar um fusca e a gente saiu fazendo show em circo com esse fusca. Aí nós fomos pro Paraná em 1975 e lá deu uma geada muito forte e arrasou a economia do estado, então o dinheiro que nós ganhamos lá, a gente gastou lá mesmo. E quando nós chegamos em casa nossos irmãos e nossos pais estavam passando muita necessidade. Aluguel atrasado, não tinha comida em casa … O único bem que a gente tinha era o Fusca. Então a gente pensou assim, vamos dar um tempo na carreira, vamos vender esse Fusca e usar esse dinheiro pra pagar as contas e de repente a gente arruma um trabalho. E esquece um pouco a música porque não tá dando pra sobreviver. Eu ia muito lá no Bar do Café, no Largo do Paissandu, pra encontrar o pessoal de circo que vinha pra contratar shows. Então, eu voltei pra lá, eu e Xororó voltamos pra lá pra ver se a gente encontrava com alguém. E pensando seriamente, dentro do carro, um conversando com o outro, ali por perto da Avenida São João, aí eu falei: "Ai Xororó, vamos ter que vender esse carro, e não tem jeito, nossa vida tá muito difícil." E isso no rádio começou a tocar a música Tente Outra Vez do Raul Seixas, ele 'tava' lançando aquele disco. Xororó: Quando a gente ouviu a letra, parecia um sinal. A gente não podia parar. Precisava tentar mais um pouco. O Chitão teve uma ideia de falar com a gravadora e pedir um adiantamento pro próximo disco. Com aquele dinheiro, conseguimos pagar as contas e encher o tanque do Fusca e tentar de novo. Depois daquele dia, tudo começou a dar certo. [trilha sonora] Xororó: Naquela época, as duplas sertanejas que faziam boas bilheterias nos circos apresentavam uma peça antes do show, pra atrair o público, né. Por mais de três anos, nós também fizemos a nossa, né, que se chamava O Pistoleiro da Ave Maria. O meu personagem era um cowboy bebum que se chamava Johnny. Em paralelo, nós gravamos um disco, e as músicas começaram a tocar muito nas rádios. Chegou ao ponto em que o povo não queria mais a peça, queria música. Era só a gente começar a peça e o povo começava: “Canta! Canta!”. Isso foi em 79 com o disco 60 Dias Apaixonado Foi o nosso primeiro Disco de Ouro. A gente vendeu mais de 250 mil cópias! Antes disso, não passava de 10 mil. A nossa consagração veio mesmo em 82, quando gravamos o nosso oitavo álbum: Somos Apaixonados, que ultrapassou a marca de 1 milhão e meio de cópias vendidas. A gente sabia que a segunda faixa daquele LP seria um sucesso. Mas achou que o nome da música não era, assim, tão sugestivo pro título desse disco. Somos Apaixonados parecia mais vendável do que Fio de Cabelo [trilha sonora] Chitão: Fio de Cabelo foi a primeira música sertaneja a ser tocada nas rádios FM. E nós começamos a ser convidados também para participar de programas de televisão que, até então, nunca tinham levado uma dupla sertaneja. A gente era jovem, tinha uma aparência bacana e se apresentava de uma forma bem profissional. Xororó: Eu me lembro que, naquela época, o Silvio Santos chamou a gente pra fazer um programa no SBT todo domingo e ali a nossa imagem ficou muito muito conhecida. Aí nós fizemos muito sucesso mesmo. Então, foi muito importante a música Fio de Cabelo. E a gente sempre cuidou da nossa carreira. Naquela época na televisão a gente começou a usar cabelo grande, usar umas roupas mais incrementadas. E a gente tinha visto o Rod Stewart no Rock in Rio com aquele cabelo arrepiado e comprido atrás. Nós começamos a imitar e como a gente 'tava' na televisão, o nosso corte de cabelo virou sucesso nacional e as pessoas passaram a ir no cabeleireiro e pedir pra cortar o cabelo igual o do Chitãozinho e Xororó. [trilha sonora] Chitão: O nosso pai ele chegou a ver, assim, um pouco do nosso sucesso porque ele faleceu em 83. Ele morreu muito jovem, com 51 anos, e ele chegou a acompanhar a gente, assim, em alguns shows. Então ele começou a sentir um pouco o sucesso da música Fio de Cabelo e, infelizmente, ele se foi muito cedo, mas ele deixou um legado muito bacana. Ele não só, colocou a gente no caminho da música, como eu acho que essa harmonia, né, que existe entre nós se deve muito ao sonho que nós realizamos do nosso pai, que o sonho dele sempre foi fazer de nós dois uma dupla famosa.  [trilha sonora] Xororó: A nossa parceria deu tão certo que eu nunca me vi fazendo um disco solo. Já tivemos muitas brigas feias, sim. Todo irmão tem, né. A gente pensa muito diferente em muitas coisas, mas o nosso privilégio é ter a música como nosso elo, nossa força, nossa paixão em comum. Esse amor supera qualquer desavença. Nas vezes em que a gente se desentendeu, o ranço fica pra trás quando pisamos no palco. Começamos a cantar, aí tudo muda. A música é o nosso remédio, nossa alma, nossa vida.  [trilha sonora]

Chitão: É muito comum, né, as duplas serem formadas por irmãos, porque é muito mais fácil e quando você aprende tudo junto, né, já vem um pacote mais pronto. Esse vínculo, assim, do convívio de viver a dois, não é uma coisa muito fácil. Mas quando se é irmão, a gente briga em família e não guarda rancor, sabe, não guarda mágoa de ninguém. Eu mesmo sou assim. Eu e meu irmão nós somos muito diferentes. Eu tenho um comportamento, ele tem outro. Eu penso de um jeito, ele pensa de outro, só que na música nós somos muito parecidos. E isso prevalece sempre no nosso convívio, então entre nós, mesmo que a gente tenha uma discussão, às vezes, mais severa por um motivo ou outro, não fica rancor. Dali uma semana já acabou a briga e a gente tá em paz novamente.  Xororó: O principal fator pra longevidade da nossa carreira acredito que seja o respeito que a gente entre nós e, mais ainda, pelo nosso público. As pessoas parecem que consideram a gente como se fosse a família delas. A gente sente esse amor do fã quando ele quer uma atenção, uma palavra, uma foto. Eu acredito que a gente tem como missão usar o nosso dom pra tocar os corações. A música pode transportar o ser humano pra outro lugar, de fazer uma pessoa lembrar de um grande amor, de uma viagem. Faz um bem danado pra alma. Esse amor é o que mantém a gente juntos nesses 50 anos e sabe lá Deus quanto tempo mais. Enquanto nossos fãs curtirem o que a gente faz, a gente vai continuar cantando, vai seguir. [trilha sonora]

Lúcia Helena Galvão: Dá pra gente dizer que o Chitãozinho e o Xororó são duas pessoas que sabem aproveitar o melhor que a vida oferece. Da infância pobre, lembram dos jogos e brincadeiras. Do pai, lembram que passava a semana toda ausente, mas lembram do retorno e da bela cantora em dueto com a mãe. E o pai, seu Mário, não deixou só o sonho de artista e as boas lembranças, deixou o símbolo de paternidade que fez com que os dois irmãos jamais se esquecessem que eram irmãos. E esse sentimento permitiu que passassem por cima de todas as dificuldades de convivência. E se todos nós lembrássemos que também temos um único pai, quem sabe o que poderia acontecer conosco? É, esses dois rapazes não sabem só cantar, são muito bons de ouvido também, sabem ouvir a vida. Ouvem e decoram pra não perder jamais a lição, mesmo que as dificuldades arranquem algumas folhas do caderno. E deve ser por isso que tocam tanto o coração das pessoas com a sua cantoria. É a vida recolhida pelo caminho que canta com eles.  [trilha sonora] Geyze Diniz: Nossas histórias não acabam por aqui. Confira mais dos nossos conteúdos em plenae.com e em nosso perfil no Instagram @portalplenae. [trilha sonora]

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Para Inspirar

Haikaa em "Somos a soma do que vivemos"

A artista conta como a sensação de não-pertencimento melhorou com o amadurecimento e com auxílio da arte.

31 de Outubro de 2022



Leia a transcrição completa do episódio abaixo:

[trilha sonora]

Haikaa: A autoaceitação é um processo universal na trajetória do ser humano. Pra maioria das pessoas, isso vem com o amadurecimento, com o tempo. No meu caso, o processo foi acelerado pelas experiências que eu vivi desde cedo. Eu fui criada sob a influência de três diferentes culturas, que me levaram a refletir sobre quem sou eu.

[trilha sonora]

 

Geyze Diniz: A artista multicultural Haikaa aprendeu na prática a enxergar o belo no diferente. Depois de uma infância e adolescência turbulenta vivida entre Brasil, Japão e Estados Unidos, Haikaa encontrou um denominador comum que a fez sentir emoção novamente. Conheça a história de pertencimento, autoconhecimento e diversidade da Haikaa.

 

Ouça no final do episódio as reflexões do historiador Leandro Karnal para te ajudar a se conectar com a história e com você mesmo. Eu sou Geyze Diniz e esse é o podcast Plenae. Ouça e reconecte-se.

 

[trilha sonora]


Haikaa: O meu pai estudou só até a primeira série do primário. Naquele ano, começou a Segunda Guerra Mundial, e ele passou a ser apedrejado na escola por ser descendente de japonês. O meu pai não estudou, mas teve um grande sucesso profissional. Ele era um visionário das plantas, tinha um feeling muito bom pra agricultura. Ele ganhou bastante dinheiro e decidiu que os filhos iriam pras melhores escolas do mundo, o que na cabeça dele eram as mais caras.

 

[trilha sonora]

Quando eu tinha 3 anos, a minha família se mudou do Paraná pra São Paulo, e a gente foi morar no bairro de Higienópolis. Do campo pra metrópole, de uma fazenda para um apartamento, a partir daí, eu comecei a ter uma vivência de grande diversidade. Em casa, eu falava japonês, porque a minha mãe nasceu e foi criada no Japão. Com os amigos do bairro, muitos deles judeus, eu falava português. E no colégio americano, o idioma oficial era o inglês.

A mistura cultural ficou ainda mais complexa na adolescência, quando eu me mudei pro Japão com os meus irmãos e a minha mãe. Eu fiz o colegial numa escola muito tradicional só de meninas. É o colégio do jet set de Tóquio, onde a imperatriz anterior à atual estudou.

Na adolescência, como é natural, eu fui saindo daquele estado de simbiose com a família. Fui percebendo que eu não era o meu pai, fui percebendo que eu não era a minha mãe. O adolescente geralmente se volta pra tribo, pra entender quem é. No meu caso, eu não tinha um grupo social homogêneo.

No Japão, as minhas amigas eram filhas de embaixadores, de presidentes de grandes corporações, todas trilíngues ou poliglotas… Eu tinha até uma amiga que jogava tênis com a família imperial. No Brasil, pra onde eu vinha todas as férias, era o contrário. A minha melhor amiga era roqueira, usava camiseta de banda de heavy metal e frequentava uns shows nuns lugares bem trash. Como todo adolescente, eu tinha uma necessidade enorme de pertencer, só que o meu meio era muito mutante. Eu era uma pessoa diferente em cada lugar, e vivia uma sensação constante de ser inadequada.

Eu me sentia uma farsa. Quem era eu, de verdade? Eu sou essa pessoa que vai no show de heavy metal ou eu sou a super boa menina que usa sainha quadriculada e estuda na escola de freira? Eu sou a rebelde ou aquela que se quer provar o tempo inteiro com boas notas?

 

[trilha sonora]

Em paralelo a isso, eu não tinha um bom suporte emocional na minha família. Apesar de sobrar dinheiro, faltava harmonia em casa. Minha mãe e meus irmãos, cada um vivia sozinho a sua batalha pessoal. Não conversávamos e a impressão que eu tenho daquela época é que a única coisa que nos unia era o sentimento de culpa. Enquanto isso, meu pai vivia uma vida paralela no Brasil. Eu me sentia insegura, tinha medo, e essas emoções roubaram a riqueza daquela fase, daquela vivência multicultural. O contraste acentuado entre os meus mundos e a falta de alicerces externos fez com que eu mergulhasse num estado de apatia profundo.

Tem um psiquiatra chamado David Hawkins, que descreve os níveis de consciência. São 17, segundo ele. O mais alto é a iluminação, estágio de Jesus Cristo, Maomé, Buda. Um dos mais baixos é a apatia, aquele estado em que a pessoa não sente nada. A tristeza profunda já é um nível acima da apatia, porque pelo menos você sente algo. A minha adolescência foi muito caracterizada pela ausência de emoção. Quem me ajudou a sair desse estado foi o autoconhecimento e a música.

 

[trilha sonora]

A arte era uma coisa extremamente valorizada no colégio no Japão. E, desde criança, eu gosto de cantar. A minha mãe, como uma mãe japonesa, não abraçava, não beijava, não conversava, não dizia que eu era linda, nem que me amava. A maneira dela de expressar afeto era pela música. Ela cantava canções tradicionais infantis pra mim e pros meus irmãos. E assim eu comecei a cantar também.

No Japão, eu me inscrevi em todas as atividades musicais que a escola oferecia. Participei de três corais diferentes e tive a minha primeira experiência como cantora profissional. Aos 16 anos, eu formei uma banda pop com mais 4 amigas, e nós fomos contratadas pela Sony. A gente gravou o disco e fez turnê pela Ásia, mas a banda não estourou e se desfez. Eu não curti a experiência. A minha alma sempre teve um anseio muito grande por liberdade. Eu não queria que alguém decidisse por mim o que cantar, como me vestir, o que falar. O meu caminho seria na música independente.

[trilha sonora]

Eu me formei no colegial e vim passar um ano no Brasil, antes de ir pra faculdade nos Estados Unidos. Nas escolas americanas é bem comum o estudante tirar um sabático entre o colegial e a universidade, o que se chama de gap year. Assim que eu desembarquei, eu peguei o jornal e fui procurar emprego. Ficar um ano sem trabalhar seria inaceitável na cultura americana e japonesa.

E em São Paulo, o meu mundo acabou se cruzando com aquele que foi meu marido por 25 anos. Ele era 14 anos mais velho do que eu e já tinha duas crianças. Aos 20 anos de idade, eu me tornei mãe de coração desses dois filhos, que hoje têm 35 e 30 anos. 

 

[trilha sonora]

 

Meu pai ficou furioso com o relacionamento, e me deu um ultimato: ou eu deixava esse homem e ia fazer faculdade nos Estados Unidos ou eu sairia da família. Eu fui expulsa da família.

Eu costumo dizer que eu morri duas vezes nessa vida, simbolicamente falando. Essa foi a primeira. A pessoa que existia até então, não cabia mais em mim. Por mais doloroso que fosse romper com o meu pai, e foi, eu não aguentava mais interpretar papéis. Eu não aguentava mais ser um fantasma. Tava na hora de eu ser eu mesma.

Nessa época, eu tava começando a seguir uma jornada de autoconhecimento e a escutar a voz do coração. E essa tem sido a minha bússola desde então. Eu refleti sobre o que não mudava na Haikaa que tá no Japão, nos Estados Unidos e no Brasil. E esse denominador comum era a arte. Mas esse tipo de sonho é uma coisa tão complexa, que era difícil de admitir até para mim mesma. E o meu primeiro marido teve o papel fundamental de me fazer acreditar nesse sonho. Ele me falava: “Você nasceu para fazer isso, é o que você ama”.

Eu sou muito medrosa, eu tenho medo de tudo. E, no entanto, quando eu sei que eu preciso fazer alguma coisa, eu vou lá e faço. A Helen Keller, que era uma escritora americana cega e surda do século 19, tem uma frase muito interessante. Diz assim: “A segurança não existe. Adiar o perigo não torna a nossa vida mais segura. Ou você vive como espírito livre ou você não vive”.

Quando eu escolhi a liberdade de ser quem eu sou, eu escolhi aparentemente o caminho mais difícil. Mas eu sentia que era o caminho certo.

 

[trilha sonora]

 

Sem o apoio do meu pai, a minha situação financeira mudou radicalmente, mais um contraste na minha vida. O meu primeiro marido tinha dificuldade pra ganhar dinheiro, e eu me tornei o arrimo da família. Pra pagar as contas, eu fui dar aulas de inglês pra alunos do mercado financeiro. Eu passei dois anos sem comer uma pizza, fazia as compras só no final da feira e não podia nem sair da cidade de São Paulo pra tá próxima da natureza que eu tanto amava, porque não sobrava dinheiro.

Só que a vida sempre tem uma maneira de se certificar que a gente vai seguir no rumo que a gente tem que seguir, pra desabrochar. Dos meus alunos saíram os principais investidores na minha carreira, os meus mecenas. E assim eu consegui realizar o sonho de ser cantora.

Em 2008, 13 anos depois de romper com o meu pai, eu recebi um investimento pra lançar o meu primeiro disco. O não pertencimento, que era motivo de grande confusão na adolescência, acabou se tornando o meu maior tesouro e fonte de inspiração. Eu gravei uma canção chamada I am a Work of Art, que significa “eu sou uma obra de arte”. A letra fala sobre a celebração das diferenças, sobre dialogar com a sombra que existe dentro de nós e sobre autoaceitação. E como essa mensagem é universal, eu gravei a música no máximo de línguas que eu consegui: vinte e duas. Esse projeto teve a participação de mais de 40 pessoas ao redor do mundo, e recebeu uma menção honrosa da United Nations Alliance of Civilizations, o órgão da ONU que promove a diversidade. 

 

[trilha sonora]

Eu já vivia só da arte, quando o meu pai me chamou pra conversar. Foram quase 20 anos de silêncio, até que ele marcou um encontro numa segunda e numa terça-feira, das 8h da manhã às 5h da tarde, preciso assim. Ele me recebeu como se nada tivesse acontecido. Conversamos sobre visões de mundo, eu mostrei os meus discos, fotos dos meus filhos e um livro que eu escrevi. A última frase que ele me disse foi: “Você tá na boa luta”. Foi o mais próximo de me dar uma bênção e dizer: “Eu tenho orgulho de você”. Um mês e meio após esse encontro, ele faleceu.

Pouco tempo depois, o meu primeiro marido foi diagnosticado com câncer, e veio a falecer também. Foi a minha segunda morte em vida. De novo, eu encontrei força na música para seguir em frente. Atualmente, eu trabalho no monólogo I Am a Cat, eu sou um gato, que é uma referência à possibilidade de você morrer, passar por um luto de si própria e nascer de novo.

A arte tem esse superpoder de ressignificar todos os acontecimentos da vida. No meu caso, o canal é a música, porque o meu contexto me estimulou a me desenvolver nessa área. E foi graças ao meu pai, porque ele achava que investir na educação dos filhos era o maior legado que ele podia deixar pra gente.

Às vezes, as pessoas me dizem que eu sou corajosa por seguir o meu sonho. Eu respondo que não é coragem. Na verdade, eu aceitei quem eu sou, com a ajuda  da arte. Na música, eu encontrei uma casa pras diferentes facetas da minha personalidade. Não existia outra possibilidade a seguir, independentemente do que aconteceria depois. Pela arte, eu aprendi a navegar nos altos e baixos da vida, porque a nossa essência não é linear, mas cheia de incongruências. Eu acredito que a autoceitação é um caminho pra felicidade individual e também coletiva. Porque, quando a gente se aceita como é, consegue ter um olhar mais compassivo com relação ao próximo. Nós nos tornamos seres humanos melhores. 

 

[trilha sonora]

 

Leandro Karnal: Haikaa tem uma história de diversidade cultural, origem oriental e os choques com a cultura brasileira, mas a narrativa dela fala muito também da dor. As dores da existência, a rejeição que o pai fez, a escolha dela, a morte da pessoa por quem ela se apaixonou, e a grande questão nesta chave não se trata de pagar aquilo que não pode ser apagado. A morte não pode ser apagada da memória, a rejeição de alguém que amamos não pode ser apagada da memória, mas o que se faz a partir destes dados dolorosos e toda história da Haikaa é como ela trabalha com a dor. Nunca teremos um passado perfeito, nunca teremos uma vida perfeita, jamais as pessoas serão exatamente aquilo que eu gostaria. Elas sempre serão diferentes do meu desejo. Como eu trabalho o enfrentamento com o real? Há pessoas que passam a vida inteira lamentando o que não tiveram ou que fizeram a elas, e outras que pensam: "isto me machucou, isto me feriu, isto me atacou profundamente, isso me provocou lágrima, isto me provocou muita dor". E agora, a partir disto, o que é que eu faço com esta memória? Transformar a dor em impulso, carregar as suas cicatrizes, que são muitas ao longo de uma vida, realmente é um dos grandes processo de superação, de dificuldades e de problemas. Haikaa é o exemplo de que ela transformou, de alguma forma, a sua vida em uma obra de arte, a sua dor em uma inspiração e a sua cicatriz em uma memória de amadurecimento. Não é fácil, mas ela conseguiu. 

 

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