Para Inspirar

Regina Ramos em "De psicóloga para paciente"

Um câncer de estômago colocou em perspectiva toda sua vida e uma mudança de rota posterior foi necessária.

21 de Novembro de 2022



Leia a transcrição completa do episódio abaixo: 

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Regina Ramos: Durante uma fase da minha vida, eu entrei numa pilha de ter sucesso profissional, trabalhar demais e só correr atrás de dinheiro. Eu buscava a felicidade fora de mim e, sem perceber, fui me afastando da minha essência. Eu precisei adoecer gravemente para me reencontrar. Eu coloquei a vida nos trilhos novamente e, hoje, ajudo as pessoas a encontrarem a felicidade dentro de si mesmas.

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 Geyze Diniz: A psicóloga Regina Ramos, que sempre buscou entender porque as pessoas ficavam doentes, adoeceu gravemente sem perceber. Vivendo em piloto automático, ela depositava sua felicidade no sucesso profissional e financeiro. Mas ao descobrir um câncer de estômago, Regina colocou seus objetivos em perspectiva e desenvolveu resiliência e uma força interna que a ajudou a se reconectar com ela mesma.

Ouça no final do episódio as reflexões do historiador Leandro Karnal para te ajudar a se conectar com a história e com você mesmo. Eu sou Geyze Diniz e esse é o Podcast Plenae. Ouça e reconecte-se.

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 Regina Ramos: Por que as pessoas ficam doentes? O que acontece dentro delas a ponto de desenvolverem uma doença? Essas perguntas me intrigam desde o início da minha carreira como psicóloga. Quando eu me formei na faculdade, eu poderia ter seguido por vários caminhos profissionais. Só que eu senti um chamado para trabalhar numa instituição hospitalar. Eu passei em um concurso do Hospital das Clínicas, o HC, em São Paulo, e escolhi atuar junto a uma equipe multidisciplinar no departamento da gastroclínica. Não sei explicar o porquê, mas eu decidi atender pacientes com câncer de estômago.

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O câncer é uma doença multifatorial, ele é ligado à genética, ao ambiente e aos hábitos, por exemplo. Mas eu acredito que a doença também pode estar relacionada a dificuldades em você lidar com o estresse e com as emoções. Eu observava isso no HC. Todos os meus pacientes, ao sentirem a iminência da morte, refletiam sobre as suas vidas. Eram pessoas em estado de muito sofrimento psíquico e com histórias de vida pelas quais eu tinha muito carinho, cuidado e respeito.

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 Eu trabalhei no HC por 6 anos. Eu saí de lá porque eu senti um outro chamado. Eu queria trabalhar na área de desenvolvimento humano, com treinamentos em empresas. Mas a pergunta interna ainda me perseguia: por que que as pessoas adoecem? No mundo corporativo, ficou claro que o estresse e a corrida insana em busca do sucesso afastavam as pessoas de si mesmas. Elas buscavam a felicidade fora, não dentro de si. Sem perceber, eu fui me tornando uma dessas pessoas, vivendo totalmente longe de mim. Eu trabalhava muito, me alimentava mal, não me exercitava e focava toda a minha energia em ganhar dinheiro.

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 Um dia, uma colega da empresa perguntou se eu conhecia o trabalho biográfico. Eu nunca tinha ouvido falar, mas fui pesquisar. A metodologia biográfica é baseada na teoria dos setênios e nas leis biográficas que regem os grandes ciclos da vida humana em ritmos de 7 em 7 anos. Cada fase tem um papel no nosso desenvolvimento. O propósito do trabalho biográfico é você resgatar tudo o que aconteceu na sua vida de 0 a 7 anos, de 7 a 14, 14 a 21 e assim sucessivamente, até chegar na sua idade atual. A gente une o passado e  o presente pra que o futuro aconteça com escolhas pessoais mais conscientes. Em resumo: “Tomar a vida nas próprias mãos e decidir a direção que queremos dar a nossa vida”.

Quando eu fiz a minha retrospectiva biográfica, eu estava com 42 anos. A partir dessa idade, segundo a teoria da biografia humana, o plano espiritual começa a se tornar mais importante que o físico. E aí eu percebi que tinha alguma coisa fora do eixo. Eu estava mais materialista do que nunca. No fundo, eu sabia que eu precisava corrigir a rota. Mesmo assim, eu liguei o piloto automático e segui na minha rotina de executiva de RH. Continuei depositando a minha felicidade no sucesso profissional e financeiro.

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 Passaram-se alguns meses, até que um dia eu senti uma forte pontada no estômago. Foi durante uma partida de futebol dos meus filhos. Foi só uma pontada, mas o suficiente pra me acender um alerta. Eu telefonei pra um gastroenterologista, amigo meu desde os tempos do HC, e ele pediu uma endoscopia. Eu fiz o exame e abri o resultado numa sexta-feira à noite, sozinha, em casa. Na segunda seguinte, eu fui ao consultório do médico e falei: “André, eu estou com câncer, por favor não me esconda nada”. Após ler o laudo, ele muito emocionado, se expressou assim: “Rê, é a primeira vez que um paciente me dá o diagnóstico. Eu tenho que te operar amanhã”.

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 O câncer de estômago não tem sintomas tão claros e eu tive sorte por ter conseguido um diagnóstico precoce. Porque - como todo câncer - quanto mais cedo a gente descobrir a doença, maior a chance de cura do paciente. Só que meu caso era gravíssimo e eu entendi que precisava de uma ajuda superior, porque o sucesso da operação não dependeria só de mim e da equipe do André.

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No dia seguinte à consulta, fui à igreja Nossa Senhora de Fátima, sentei no primeiro banco e supliquei: “Nossa Senhora de Fátima, eu preciso da sua ajuda. Eu entrego a minha vida nas suas mãos”. Na véspera da operação, eu tive uma sessão com a minha psicóloga e perguntei pra ela: “Márcia, e se não der certo?”. Tipo assim: se eu morrer amanhã? Ela, muito carinhosamente, com o olhar fixo me respondeu: “Tem coisas na nossa vida que estão acima de nós!”.

Eu entendi a minha limitação e aí, eu fui aprendendo o meu lugar em relação a Deus. Na véspera da cirurgia, eu rezei com os meus filhos, de 9 e 6 anos, antes de dormir. A gente fazia aquele ritual sempre, mas aquela oração foi muito forte e especial para mim porque, ao final, eles disseram: “Papai do céu proteja a nossa mamãe amanhã”.

Neste mesmo dia, ao final da tarde, eu estava preocupada com o André, pois sabia que me operaria e que seria um desafio por eu ser sua amiga. Queria falar alguma coisa para ele e não sabia o quê. Foi então que fui a uma papelaria comprar uns cartões pois eu queria escrever alguma coisa pra minha família, pros meus filhos e pros meus amigos.

Quando cheguei no caixa para pagar, tinha um livrinho desses pequenos, e ao abrir estava escrito um diálogo entre um médico e Deus. O médico perguntava: “Deus, o que eu faço para salvar minha paciente?”. E Deus respondeu: “Você faz a parte do médico e eu faço a parte de Deus”. Foi isso que eu falei para ele no centro cirúrgico e pra minha felicidade, todo mundo fez a sua parte.

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 Eu fui submetida a uma gastrectomia total, exatamente uma semana após ter aberto o laudo do exame. O meu estômago inteiro foi retirado. Os médicos fizeram uma ligação direta entre o intestino e o esôfago. A minha prima e a minha irmã, que cuidaram de mim no hospital, colocaram uma foto dos meus filhos sorrindo, bem em frente à cama. Quando eu acordava, a primeira imagem que eu via era essa. E eu pensava: “Eu quero encomendar os santinhos da primeira comunhão, como também eu quero dançar a valsa de formatura com eles”.

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 A esperança de ver meus filhos crescerem me deu muita força pra encarar o pós-operatório, a quimio e a radioterapia. Foi um período de bastante reflexão e muitos desafios. Eu, que a vida toda busquei entender porque que as pessoas ficavam doentes, adoeci gravemente. A minha sorte foi que, quando o câncer chegou, eu já tinha começado a ter uma visão espiritualizada da saúde.

 A biografia humana e a teoria dos setênios fazem parte da antroposofia, uma ciência humanística criada pelo filósofo Rudolf Steiner. Ela tem um olhar ampliado pro ser humano, que inclui o aspecto da espiritualidade. Pros médicos antroposóficos, uma doença não vem pra nos matar. Ela vem pra nos curar quando não estamos alinhados ao nosso propósito de vida e a nossa missão.

Em nenhum momento eu me vitimizei. A minha grande pergunta interna não era “por que” isso aconteceu comigo, mas sim “para que” estou passando por isso. Qual aprendizado que eu devo tirar dessa experiência? Afinal, sem querer, eu tinha mudado de lado: eu passei de psicóloga a paciente. Comecei a perceber que, quanto mais eu buscava meu autoconhecimento, mais eu tinha clareza nas respostas. As explicações estavam dentro de mim e não fora. Eu me dei conta que tudo isto que estava acontecendo era para me ajudar a colocar em ordem tudo aquilo que estava em desordem. O que parecia o fim, foi só o começo.

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 A possibilidade de morrer me fez entender o que que era importante na minha vida. Eu aprendi rapidamente a valorizar o que eu tinha, não o que eu deixei de ter. Aprendi a ser menos verniz e a ser mais raiz. Pouco tempo depois da cirurgia, um repórter me perguntou como é não ter estômago e ouviu como resposta: “Eu não estou preocupada em não ter estômago. Pra mim, o que importa é poder ir na formatura dos meus filhos”. E não é que os dois estão formados? Dançar a valsa com um deles, ouvir o juramento na colação de grau do outro e ganhar de presente  “Obrigado, mamãe, obrigado” me fazem ter a certeza de que tudo valeu a pena!

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 A minha vida passou a fluir realmente depois desse processo. Sem estômago, eu fui obrigada a reaprender a comer e parei de me alimentar com besteiras. Comecei a me exercitar. Eu fiz pilates, caminhada, corrida e zouk. Na vida afetiva, saí de um casamento que já não estava legal havia tempo.

Eu diminuí o ritmo de trabalho e me tornei pesquisadora junto a uma equipe de médicos antroposóficos na Escola Paulista de Medicina. Há 13 anos, eu estudo a teoria da Salutogênese. “Salus” quer dizer saúde, e gênese origem, ou seja, como encontrar dentro de nós as forças que nos blindam diante do estresse para que não cheguemos a adoecer.

Essa abordagem foi criada por um sociólogo chamado Aaron Antonovsky. Ele pesquisou o que havia em comum entre os sobreviventes do Holocausto que se adaptaram às mudanças,  reconstruíram as suas vidas e não adoeceram. Ele constatou que essas pessoas não se colocavam na posição de vítima e tinham um olhar positivo para a vida, mesmo passando por adversidades. Elas tinham também internamente o que ele denominou “senso de coerência”: um equilíbrio psíquico entre o que pensavam, sentiam e como agiam. Mas, o mais importante, ele ressaltou, é que elas sempre encontravam um sentido maior no sofrimento, um significado para poder continuar adiante.

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 Eu mergulhei na Salutogênese e me tornei especialista no tema da resiliência. Resiliência tem a ver com fé, com esperança, com você olhar para o problema e pensar: eu vou passar por isso, eu já passei por outras fases difíceis, os problemas não irão durar para sempre, eu posso fazer alguma coisa e eu também posso pedir ajuda. E aí, com o impulso dessa força interna, seguimos adiante, temos uma melhor proteção diante do estresse, não deprimimos e o nosso sistema imunológico não sofre alteração e, então, não adoecemos.

O segredo é a gente ter flexibilidade e não ficar nos extremos, nem ser totalmente vulnerável nem se achar a Mulher Maravilha ou o Super-Homem, que enfrenta tudo que aparece. Com o autoconhecimento, a gente conhece os nossos limites e sabe até onde podemos ir. O conceito de resiliência que eu acho legal é passar pela situação difícil e sair mais fortalecido dela. É como um músculo que você trabalha na academia, só que um músculo emocional, que você sempre pode fortalecê-lo.

Quando eu dou uma aula, palestra ou um treinamento, eu compartilho o meu exemplo. O pessoal se espanta de saber que eu vivo bem sem um estômago. Eu sempre digo para eles uma frase de uma meditação: “Nada terá valor se a coragem nos faltar”.

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 Eu tenho gratidão por ter conseguido aprender na minha vida com os momentos de adversidade e ter me fortalecido. Meus colegas brincam que meu nome devia ser “Regiliência”. Eu uso o meu aprendizado para ensinar outras pessoas que elas não precisam chegar ao ponto de desenvolver uma doença. Tem muita coisa que a gente pode fazer antes.

Com o trabalho biográfico, eu ajudo as pessoas a encontrarem a resiliência na sua própria história de vida e a entenderem que essa força interna aparece nos momentos mais difíceis. Quando a gente se apropria dela, temos mais habilidades para enfrentar os problemas que possam surgir. Descobrir essa força interna que cada um de nós tem e muitas vezes não percebe é o caminho para viver com saúde.

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 Leandro Karnal: O caso da Regina Ramos é muito interessante. Como muitos de nós, somos estimulados a buscar na carreira um grande eixo da vida. Uma pessoa que está ganhando dinheiro, que é citada profissionalmente, que tem muitos clientes ou pacientes, é uma pessoa respeitada. Ela ganha prestígio social, vai recebendo um retorno positivo desse esforço e vai se sentindo bem. Só que às vezes este bem funciona como uma espécie de anestésico que, sim, evita a dor, mas não impede que a doença progrida.

Ela precisou ter um grave caso de câncer de estômago, fazer uma cirurgia delicadíssima que obriga a uma reeducação absoluta depois da cirurgia pra que ela pudesse acordar para outros valores que ela já tinha, mas que agora terá um outro olhar, e vai parar de pensar que a vida é feita exclusivamente do sucesso e da aplicação do sucesso profissional.

A Regina foi descobrindo como paciente o que talvez ela dissesse para seus outros pacientes: que ela de fato tinha que reinventar propósitos, tinha que reinventar na mente  seus valores, tinha que redefinir metas, que não podia ficar apenas focada em um campo. E foi redescobrir-se profissionalmente, foi revalorizar coisas da família, passou a desenvolver muito esse conceito de resiliência e conseguiu redefinir as coisas a partir de uma experiência impactante que é o câncer no estômago. Muitas vezes, a dificuldade tem esse poder de epifania, de revelação de quem nós somos de verdade, que é o que aconteceu com a Regina.

Geyze Diniz: Nossas histórias não acabam por aqui. Confira mais dos nossos conteúdos em plenae.com e em nosso perfil no Instagram @portalplenae.

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Para Inspirar

Henri Zylberstajn em "As boas surpresas do acaso"

O episódio de estréia da nossa primeira temporada do Podcast Plenae, "Histórias para Refletir", está no ar!

21 de Junho de 2020


Leia a transcrição completa do episódio abaixo: 

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Introdução: Bem-vindo ao Podcast Plenae, um lugar onde você encontra histórias reais para refletir. Ouça e reconecte-se. 

 

No episódio de hoje, o engenheiro e fundador da ONG Serendipidade, Henri Zylberstajn conta como a sua vida deu uma guinada a partir do nascimento do Pepo. Mais do que um filho, Henri ganhou um propósito, o pilar que ele representa neste podcast. No final do relato, você ouvirá reflexões do monge Satyanatha, nosso convidado especial dessa temporada, para ajudar você a se conectar com o seu momento presente. Aproveite este momento, observe seus sentidos e abra-se para uma nova visão sobre o mundo e sobre você mesmo.

 

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Henri Zylberstajn: A Marina e eu temos um ritual desde que a gente começou a namorar, em 2007. Entre o Natal e o Ano Novo, em um jantar a dois, a gente escreve bilhetes com os nossos desejos pro ano que vai chegar. Em voz alta, a gente lê também o que a gente pediu no ano anterior. Na virada de 2017 para 2018, os dois pediram pela saúde do bebê que ia nascer. A gente já tinha a Nina, de 5 anos, e o Lipe, de 2, quando ficamos grávidos do Pedro, o Pepo. Eu sempre quis ter três filhos. A Marina também. O que não escrevemos naquele fim de ano, e a gente nem poderíamos imaginar, era o presente que estava por vir.

 

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A gravidez do Pepo, como as outras duas, foi normal, sem nenhum tipo de intercorrência. A gente fez todos os acompanhamentos com a mesma médica, no mesmo consultório. Fizemos todos os exames possíveis e imagináveis que nos foram apresentados e nenhum deles apontou nenhum risco de anormalidade. Éramos pais jovens, saudáveis, que não consumiam drogas e nem bebidas alcoólicas, ou seja, todo um cenário pra que tudo caminhasse dentro do que são as situações mais típicas. 

 

Quando a Marina tava de 36 semanas, a gente começou a ter um acompanhamento um pouquinho mais de perto, porque ela passou a ter contração. A médica falou: “O fluxo do cordão umbilical de oxigênio não é que tá ruim, mas ele não tá como eu gostaria.” Dois dias depois, a mesma médica disse: “Já tem um pouquinho de dilatação, vamos induzir pro Pedro nascer de parto normal, se ele quiser”.

 

Esse foi o único dia da gestação que a Marina teve um feeling ruim. Eu lembro que, quando a gente saiu da médica e entrou no carro, a Marina desabou, começou a chorar. E eu falei: “Fica tranquila, tá tudo bem”. Mas, por maior a confiança que a gente tivesse na obstetra, essa história de que o fluxo de oxigênio não tá bom, vamos adiantar o parto, tudo isso trouxe dúvidas: será que tá tudo bem com ele mesmo?

 

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Era meio de carnaval, 5 horas da tarde de uma segunda-feira, dia 12 de fevereiro de 2018. O Pedro nasceu prematuro, com 43 centímetros e 2 quilos e 200 gramas. A Marina ficou com ele no colo. Ele era tão pequenininho... 

 

Também percebi que a pediatra ficou examinando ele com um pouco mais de atenção, com um pouco mais de cuidado do que nos partos da Nina e do Lipe. Mas até aí tudo bem. Você tá eufórico, nasceu teu filho, é uma explosão de alegria! Toquei o hino do Corinthians. A gente recebeu a família, ficamos debatendo com ele parecia, com quem ele não parecia, como foi o parto...

 

A gente nem se preocupou quando a enfermeira levou ele pra UTI. A obstetra já tinha falado que, por ele ser prematuro, talvez tivesse que ficar uns diazinhos por lá, pra poder se reabilitar. Nesse dia, eu dormi do lado da Má, no sofazinho do quarto.

 

[trilha sonora]

 

No dia seguinte, acordei umas 6h da manhã e desci pra tomar um café. Quando eu tô voltando, encontro a obstetra no corredor: “Você tá indo pra onde?”, ela perguntou. “Ah, tô indo pro quarto”. “Então tá bom, vou lá com você”. 

 

Voltei pro quarto com a doutora, sentei na cama e ela disse: “Então”... E mudou o tom. “Vocês acreditam que o hospital tá desconfiando que o Pedro tem Síndrome de Down?” Eu me lembro como se fosse ontem do quente que me veio aqui dentro, uma sensação de calor, desespero. Eu falei: “como é que é?”

 

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Meu nível de informação sobre a trissomia do cromossomo 21, o nome técnico da Síndrome de Down, era praticamente nulo. Eu não tinha a menor ideia do que era. E o pouco que eu sabia não me deixava muito animado, pra dizer o mínimo. A real é que a minha primeira sensação foi a pior possível.

 

Eu falei, tremendo: “Doutora, como assim?”. E ela também assustada não tava acreditando. Acho que, apesar de tecnicamente ser magnífica, nessa hora ela vestiu o casaco de mãe. Aí me baixou o espírito de engenheiro e eu falei: “Calma. Quem falou que ele tem Síndrome de Down?”. E lá fui eu pelos corredores do hospital atrás da pediatra neonatal que tinha dito.

 

Quando ela me vê, ela para e petrifica. Eu cheguei perto e falei: “Doutora, eu sou o pai do Pedro. Ele tem Síndrome de Down?”. Ela se assustou com a pergunta e falou: “vamos ali no quarto conversar?”. Eu falei: “Não. Eu só quero saber o seguinte: além de você, alguém examinou ele?” 


E ela falou: “Examinou”. Quem? "Outros médicos, pediatras". Mas pediatras neonatais? "Sim" Quantos? "Mais cinco." Alguém teve alguma dúvida? "Não". Voltei pro quarto e falei: Marina, o Pedro tem síndrome de Down. 

 

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Eu nunca vi uma morte de perto. A não ser dos meus avós, que já estavam bem velhinhos e aí eu acho que é diferente. Receber a notícia de que o filho que você imaginou não é exatamente assim certamente foi o momento mais difícil da minha vida. Eu não sabia onde eu tava. 

 

Eu entrei na UTI e comecei a enxergar no Pedro - pela primeira vez - os traços da Síndrome de Down. Aí veio o pediatra da família. Ele chegou perto da incubadora e precisou de um segundo e meio, não mais do que isso, pra dizer: “Henri, a gente vai ter que esperar um exame de confirmação, mas o Pedro tem Síndrome de Down”.

 

Ele começou a me dar uma série de elementos no meu filho: Falta de tônus muscular, uma linha na mão, a orelhinha implantada mais baixa, os olhinhos amendoados, a falta de osso nasal ou o osso nasal muito pequeno, a língua pra fora...

 

Quando os meus pais chegaram no hospital, eu levei eles na salinha da UTI neonatal e dei a notícia. A minha mãe é que nem eu: chorona, emotiva. Se um neto tocar DO RE MI FA, ela vai chorar, então, eu já estava acostumado. Mas meu pai, que estava prestes a fazer 70 anos, eu nunca tinha visto chorar. Nem quando o pai dele morreu. Eu acho que os avós sentem em dobro, pelos netos e pelos filhos.

 

Eu até me arrepio, porque talvez tenha sido um momento tão difícil quanto o de receber a notícia. A médica tinha conversado comigo umas 7 horas da manhã, isso já eram 3h da tarde. Então, eu já tinha de alguma forma absorvido o baque, nem que fosse um pouquinho. Mas quando eu vi o meu pai chorar pela primeira vez, foi muito, muito, muito difícil. Me veio uma sensação de culpa.

 

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A primeira vez que eu fiquei no quarto só com a Má, a gente se abraçou e chorou muito. E essa cena se repetiu por várias vezes, até o Pepo sair da UTI, 22 dias depois. Desde antes do Pedro nascer, a gente não planejava anunciar o nascimento dele nas redes sociais. Porque a gente não estava querendo no terceiro filho receber muita gente no quarto. Tanto é que não tinha nem brigadeiro, lembrancinha, nem nada.

 

Só que eu comecei a encontrar pessoas, conhecidos no corredor do hospital. E passei a ficar incomodado com o fato dessas pessoas poderem imaginar que eu estivesse escondendo a Síndrome de Down do meu filho. Então, decidi postar um texto no Facebook.

 

E a partir de então eu comecei a receber muitas mensagens. Muitas clichês, do tipo:  “Filhos especiais são para pessoas especiais”; “Deus não confia missões mais difíceis do que as pessoas podem carregar”; “Vocês são uma família do bem, então nada vem por acaso”;

 

Só que essas mensagens, apesar de me confortarem, não tocavam o meu íntimo. Até então - eu confesso - eu estava encarando aquilo como um castigo. Eu questionei Deus muitas vezes. Do por que que ele tinha me mandado um filho com Síndrome de Down, se eu me considerava uma pessoa boa? Eu não tenho vergonha de falar isso, porque é a verdade, era como eu estava encarando a situação.

 

Até que chegou a mensagem da Silvia, uma amiga que também tem uma filha com Síndrome de Down. E a Silvia me falou, baseada na experiência dela que, na verdade, ter um filho com Síndrome de Down não é uma coisa ruim. É o contrário, é uma oportunidade de vida. De poder tê-lo do nosso lado e poder enxergar o mundo através de uma outra perspectiva. Poder valorizar as pequenas coisas. Poder respeitar as individualidades alheias. Poder entender que talvez o mundo não seja como a gente enxerga e que existam outras possibilidades. E que tudo isso fazia a vida valer a pena. Eu fiquei em prantos quando ela falou isso para mim. E foi ali, oito dias depois que o Pepo nasceu, que tudo começou.

 

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Pedro saiu do hospital, tomou as vacinas e a gente começou a levá-lo pra passear, pra ver gente. Parte dos meus amigos não conseguia me olhar no olho. Não conseguia tocar no assunto “Pedro”. A outra parte nos abraçavam como se a gente tivesse de luto. Foram muitos abraços, tapinhas nas costas, falando: “Que barra, conta comigo”. E eu pensava: conta comigo para quê?

 

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Apesar de ninguém escolher ter um filho com deficiência, a gente tava tentando extrair o melhor daquela situação. Eu acredito que as pessoas vão encarar o teu filhos da mesma forma como você encara ele. Então, se eu estava encarando o Pedro como alguém capaz, repleto de possibilidades, era muito provável que as pessoas também iam enxergá-lo da mesma maneira. 


Aí então a gente resolveu abrir uma conta de Instagram pra dividir um pouco do nosso dia a dia. Eu queria que a gente fosse no clube e as pessoas não precisassem falar: “Ah, ele tem Síndrome de Down”, diminuindo o volume quando falassem a palavra Síndrome de Down no final da frase. 

 

Eu não queria que os outros tivessem dedos para falar da deficiência do meu filho. Porque a deficiência faz parte da personalidade dele, faz parte das características dele, mas não é o que o define. Eu e a Má criamos a conta de Instagram dentro de um táxi, indo pro aeroporto. Um dia depois, tínhamos 3.500 seguidores. Em cinco dias, 10.000. E hoje, são mais de 115 mil.

 

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Eu nasci numa família que sempre me educou a respeitar a diversidade, mas ela não fazia parte do nosso dia a dia. Eu nunca tive preconceito, no sentido ruim da palavra, mas ao mesmo tempo eu achava que aquilo não me pertencia. Quando você vive uma vida inteira com pessoas da mesma cor de pele que a tua, da mesma classe social e com as mesmas condições físicas e cognitivas, você pode até não ter preconceito, o que já é um bom começo. Mas certamente você vai sentir uma barreira quando cruzar com alguém que não se encaixe nesses padrões.

 

Então, eu fico aflito quando eu penso que meu filho vai sofrer com essas barreiras. Porque eu sei que ele vai encontrar algumas. E, por mais racional, por mais preparado que você esteja, imagino que deva ser algo que te tire do prumo. 

 

Depois que o Pepo nasceu, eu tirei um sabático de 6 meses pra me dedicar a estudar a deficiência intelectual. Comecei a contribuir na APAE São Paulo e ter contato com a realidade brasileira do tema. Eu e a Má criamos uma ONG, chamada Serendipidade, que vem do inglês Serendipity, que quer dizer o ato de descobrir coisas boas ao acaso. Foi exatamente o que aconteceu conosco quando o Pedro nasceu. 

 

A gente fala de uma maneira leve e positiva sobre o tema, sem esconder nada e sem falar que é a melhor coisa do mundo ter um filho com deficiência. Mas a gente mostra que, se isso acontece, dá para você viver e enxergar um outro lado incrível da vida.

 

A nossa missão é fazer com que a inclusão não seja encarada como uma caridade, mas sim como algo bom para todos que se envolverem com ela. A gente atua para que as pessoas não tenham que ter um filho com Síndrome de Down ou esperar 38 ou 70 anos, como foi o caso do meu pai, para conhecer mais sobre o assunto.

 

Eu não tenho a menor dúvida de que o contato com a inclusão engrandece a nossa essência, faz com que as pessoas abram a mente. A diversidade nada mais é que a liberdade que as pessoas têm de viver como elas são ou como elas querem ser. O Lipe ainda é pequeno pra entender o que é a Síndrome de Down, mas a Nina já entende. Outro dia, ela me perguntou se o Pedro vai ter filhos. Aí eu falei: “Filha, ele vai ter se ele quiser e se ele puder. Mas se ele tiver, você gostaria que o filho dele nascesse com ou sem Síndrome de Down?”. Ela me disse: “Papai, tanto faz”.

 

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Satyanatha: Chegamos ao fim do relato do Henri. A gente costuma achar que o futuro é perigoso. Por isso, criamos um cenário hipotético e se convence de que é o único panorama viável e seguro. Mas a vida tem uma criatividade extraordinária. Muitas vezes ela nos conduz para um caminho diferente - e melhor - do que imaginávamos. Os temperos de alegria, de criatividade e de propósito são muito superiores a qualquer dor causada - até porque não existe caminhada sem dor. 

 

A solução pra evitar o sofrimento não é imaginar vários futuros, e sim viver o agora. Se hoje eu for aberto, verdadeiro, amoroso e dedicado ao que eu sinto, eu vou criar um futuro positivo. Foi isso que o Henri começou a descobrir, quando transformou a condição do Pepo em um propósito. 

 

Muita gente vê o propósito como uma tarefa. Na verdade, ele é um estado de espírito, no qual você se predispõe a estar alinhado com um tema e a vibrar, no presente, aquilo que você quer para o futuro. 

 

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Finalização: Nossas histórias não acabam por aqui. Acompanhe semanalmente novos episódios e confira nosso conteúdo em plenae.com e no perfil @portalplenae no Instagram.

 

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